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Maria João, Teresa Salgueiro e Filipa Pais – “Três Cantoras Debatem Música Portuguesa No Feminino – Cantos Da Alma Sentida”

pop rock >> quarta-feira, 03.02.1993


Três Cantoras Debatem Música Portuguesa No Feminino
CANTOS DA ALMA SENTIDA



Reunimos o trio de ouro das vozes portuguesas. Para Maria João, Teresa Salgueiro e Filipa Pais, o prazer de se saberem cúmplices juntou-as quase imediatamente nos cantos que encheram os corredores do PÚBLICO. Em jeito de antecipação de um projecto antigo de Filipa Pais e Teresa Salgueiro, baseado nos temas populares recolhidos por Michel Giacometti. Maria João, por seu lado, vai continuar a cantar pelo mundo fora com músicos de excepção: Aki Takase, Lauren Newton, Marilyn Mazur e Bobo Stensson. Alheias ao tempo e ao lugar, quando finalmente, se sentaram para falar das coisas que bordam a sua música, as horas anteriores já tinham acendido a chama. Entre a descoberta de dificuldades e entregas comuns, afirmaram-se intérpretes rodeadas de excelentes profissionais e defenderam a dignidade da música que lhes sai da alma e das vísceras. Entre a diversidade das suas imagens e personalidades, a felicidade de estar em palco arrebata-as para lá da indústria e dos seus contos imorais. Vozes de corpo inteiro partilhadas com quem as ouve, esquecidas da pequenez de um país provinciano.
No final deste encontro de raparigas, entre a promessa de um jantar e a troca de gravações de temas queridos, Maria João, Teresa Salgueiro e Filipa Pais tinham afirmado com emoção a intenção de abrir caminhos. É isso que anima os seus cantos. Soltos, instintivos, cristalinos e interiores. Porque de cantoras e mulheres de alma à superfície.

Maria João, Teresa Salgueiro e Filipa Pais contaram ao PÚBLICO segredos, riscos e estratagemas. E algumas fraquezas. Falaram de si e dos homens. Do que é ser mulher e cantora em Portugal, um país provinciano, reconheceram, onde “fica tudo uma coisa caseira”. E onde nem tudo é o que parece.
PÚBLICO – Em Portugal, na música popular, há poucas compositoras. O homem compõe e a mulher interpreta?
FILIPA PAIS – A mim, neste momento, apetece-me mais interpretar que mostrar as minhas coisas. Não me sinto ainda pronta para mostrá-las… Os homens se calhar são mais libertos…
MARIA JOÃO – É mais uma questão de pessoas, de sensibilidades. Há mulheres muito brutas e homens muito sensíveis. Eu componho quando estou a cantar. Quando improviso estou no fundo a compor. Agora, pegar num tema desde o princípio da composição, acho um disparate. Como estou rodeada de músicos excepcionais, tudo o que eu possa compor será sempre inferior ao que eles podem fazer e fazem excelentemente. Muitas vezes os temas nem sequer são para mim mas eu agarro neles e “roubo-os”…




TERESA SALGUEIRO – É isso. E talvez venhamos todas a compor nos tempos mais próximos. Era uma coisa que eu gostava de fazer. Não sei é quando…
M. J. – Os meus ídolos são três mulheres que nunca foram compositoras – a Maria Callas, a Maria Teresa de Noronha e a Elis Regina, que são apenas intérpretes.
P. – As instrumentistas também se contam pelos dedos… Uma questão de educação? De comodismo?
F. P. – Penso que é uma questão de educação. Eu vejo agora, que estou no Conservatório, que há imensas raparigas com boas vozes, com vontade, mas que não arriscam, estão sempre à espera de qualquer coisa…
M. J. – A voz é um instrumento como outro qualquer. Eu não toco piano, pois não, mas toco cordas vocais.
F. P. – Leva-se para todo o lado…
T. S. – O pior é que enquanto num piano afinado se toca um “mi” e sai um “mi”, nós, se estivermos cansadas, queremos cantar o “mi” e às vezes sai um “ré” sustenido…
P. – Em Portugal as grandes vozes pertencem a mulheres?
T. S. – Existe uma tradição de música portuguesa cantada por mulheres. Muitos mais do que por homens. Embora haja o caso do Alentejo, dos fadistas de Coimbra…
M. J. – Acho que sim, vozes femininas é que é! [Risos.] Em Portugal há mais boas vozes femininas do que masculinas. Não no conceito que normalmente ouço dizer – “o fulano tem um vozeirão, uma extensão enorme e não sei quê”. Por exemplo, o Carlos do Carmo, que é um excelente cantor, tem uma extensão pequenina, mas diz tudo, está lá tudo…
P. – Haverá da parte da mulher uma identificação mais fácil entre a voz e o corpo? Será a voz o instrumento ideal feminino?
T. S. – Isso acontece em qualquer cantor, penso eu. O que conta é a interpretação que se consegue dar às palavras, aos sons, seja ao que for. A alma com que se entrega ao que está a fazer.
M. J. – Olha, o Marco Paulo tem uma excelente voz…
F. P. – Dentro do estilo é o maior!
M. J. – Um cantor tem que ser como um atleta, tem que estar preparado. É o corpo todo que nós usamos como se fosse um instrumento.

Aquecimentos

P. – Vocês desde que chegaram ao jornal não pararam de cantar, como se fosse a coisa mais natural do mundo. É difícil imaginar cantores homens a fazerem o mesmo…
F. P. – Talvez nos envolvamos mais…




M. J. – Uma vez perguntei a Lauren Newton (com quem ando a trabalhar) como é que ela aquecia a voz. Ela procede de maneira diferente da habitual. Já a Jay Calyton faz o aquecimento de uma forma tradicional. Depois quis saber como é que faz o Bobby McFerrin. A Lauren respondeu-me: Ele não aquece, está sempre a cantar, o dia todo!” E é o gajo que faz aquelas acrobacias todas… Está sempre quente!
T. S. – Embora o masculino e o feminino tenham diferentes sensibilidades.
P. – As mulheres entregam-se mais? Há maior interiorização no canto?
M. J. – Se calhar nós temos mais cuidado com o instrumento… Ou será porque somos umas tagarelas? [Risos]. Porque gostamos de abrir a boca e dizer coisas?

Pernas Ao Léu E Os Manéis De Bigode

P. – Em palco vocês são cantoras mas também mulheres. Será possível existir uma Madonna à portuguesa?
M. J. – Eu acho a Madonna altamente, uma excelente profissional, curto imenso o que ela anda a fazer.
F. P. – Ninguém a critica, ela dá a volta…
P. – Não responderam à questão…
T. S. – A Madonna é mesmo Estados Unidos.
M. J. – É, os Estados Unidos funcionam muito nessa base, do produto, da encenação, do que se vê e do que se diz.
P. – Mas ela liga de forma explícita a sexualidade e a voz. É possível fazer o mesmo em Portugal?
M. J. – Mas cá há cantoras que também fazem isso. Normalmente cantoras mais ligadas à área do nacional-cançonetismo que andam sempre impecavelmente de perna ao léu, maminhas bem feitinhas, todas a mostrarem-se… É a tal componente sexual. A Cândida Branca-Flor, a Alexandra… Se repararmos bem, elas têm um cuidado extremo com o que vestem, como se apresentam, mini-saias não sei quê. Muito mais do que nós.
T. S. – Eu nunca seria capaz de cantar de mini-saia.
P. – De vocês as três, a Maria João parece ser quem mais assume essa componente…
F. P. – Perfeitamente! Tu és m ais liberta.
M. J. – Eu? Eu? [Risos]. Às vezes não é nada bonito de se ver – faço caretas…
F. P. – Mas isso é que é bonito.
M. J. – Muitas vezes a gente vê na televisão o malfadado “playback”, e as pessoas depois notam. O leigo, que está em casa, diz: “Ah, aquela está tão bonita, tão agradável de se ver!” Depois vem um concerto ao vivo e é terrível, a pessoa torce-se, tem as veias salientes…
T. S. – Quando canto determinadas coisas sinto-me diferente, mais “sexy”, mais triste, mais contida, mais atrevida, conforme a música.
P. – … A Teresa tem uma imagem discreta, mais sóbria…
T. S. – Mais quietinha!… Mas tem a ver com o tipo de música e com a personalidade.
M. J. – Mas aquilo que eu faço não é de propósito. Estou lá e é assim que sai. Sinto uma felicidade tão grande por estar em palco…
P. – Quando estão em palco, têm consciência dos olhares que recaem sobre vocês? Dos olhares masculinos, por exemplo?
M. J. – Masculinos e femininos, atenção! Mas eu nunca olho para o público. Imagina que estás a cantar uma coisa incrível e olhas para um Manuel à tua frente que se está a assoar… [Risos]
F. P. – Eu prefiro nem olhar para um Manuel de bigode! [Risos.]
T. S. – Não estou a pensar se aquele está a olhar para mim, a reparar na minha cintura… Mas penso se são homens ou mulheres que me estão a ver.
F. P. – É uma massa enorme e assustadora…
M. J. – … Que nos dá uma pressão e uma felicidade imensas!
F. P. – Eu estou ali no meio daqueles quatro irmãos Salomé, dos Lua Extravagante, de bigode (risos). São uns companheiros fantásticos e meus amigos. Mas é evidente que sinto qualquer coisa quando entro em palco.
M. J. – No vosso espectáculo da Aula Magna levaram bastantes assobios (risos).
F. P. – Eu ouvi.

Contos Imorais

P. – Quem as ouvir falar, assim amigas diria que não existe qualquer rivalidade entre quem trabalha neste ramo. É mesmo assim, não há competição?
T. S. – Cada vez mais as pessoas se querem juntar para aprender umas com as outras.
M. J. – É saudável. Não há competição, é na boa. Fulana está a cantar e pensa “Não sou ninguém se não cantar como ela canta.” Mas rivalidade, rivalidade, acho que não existe.
P. – Dentro da indústria, quais são os vícios e virtudes?
F. P. – Virtudes, a existência de bons compositores e grandes ideias. E estão a criar-se condições para que as pessoas possam trabalhar cada vez melhor.
M. J. – Vícios, de venda e de mercado. Acho que a indústria está viciada em certos padrões de comprar, vender e promover, o que acaba por condicionar os músicos e os cantores. Embora no meu caso as coisas sempre tenham sido mais fáceis, justamente por ser mulher.
F. P. – Às vezes é complicado, porque… não sei se quero dizer isto…
M. J, T. S. e PÚBLICO – Diz lá!
F. P. – Às vezes há coisas que acontecem mais facilmente se…
P. – Como? Propostas, digamos, de índole não propriamente artística?
F. P. – Por exemplo. Há coisas que parecem tomar um caminho porreiro até certa altura, a amizade e não sei que mais, até que chega um momento em que afinal é mais qualquer coisa. Se tu dizes que não, deixam-te cair.
M. J. – Nesses casos também não interessa. Se alguém te quer usar para fazer não sei quê, esse alguém também não te vai servir para mais nada.
P. – Não chegando a casos tão extremos, poderá dar-se o caso de a indústria pensar em primeiro lugar numa imagem apelativa que possa vender – e menos na música?
F. P. – Evidentemente que pensam logo nisso.
T. S. – A mim não me passa pela cabeça.
M. J. – Ai é, pensam não sei quê? Fixe! Vou aproveitar-me disso. Se alguém acha que me pode vender porque sou mulher, por uma imagem, não me vai pôr as mãos em cima de certeza absoluta, se eu não quiser. Então vou aproveitar-me dessa ingenuidade para poder fazer as minhas coisas. Se uma pessoa olha para nós e diz: “Vou comer esta querida” (risos), eu só tenho é que lhe dar a volta. Se, por exemplo, um produtor me disser: “Vou promover esta mas quero algo em troca”, eu, na troca, não lhe vou dar coisa nenhuma. Se calhar não devia estar a dizer isto.
F. P. – Acho que é uma questão de tacto. Se apostarem em mim, não vou dar nada em troca que não seja o meu trabalho. As coisas depois avançam ou não.

Primeiro Passa-se A Roupa A Ferro

P. – Em Portugal assiste-se presentemente ao fenómeno da reciclagem musical – pessoas que já andam nisto há muito e se juntam para formar novos agrupamentos. É possível acontecer um equivalente feminino?
M. J. – Era bom as pessoas juntarem-se. Lá vou eu ter que falar nos Resistência, dos quais não gosto nada. Penso que é uma forma inteligente de sobrevivência, de sobrevivência a um alto nível, pois aquilo vende imenso. Mas há outras hipóteses das pessoas se juntarem. Por exemplo, aquilo que nós fizemos [espectáculo de Maria João com Lena d’Água, Xana, Teresa Salgueiro e Anabela Duarte realizado em Novembro de 1991, no Teatro São Luiz, integrado nos Festivais de Lisboa]. Foi diferente – um encontro por prazer.
F. P. – Há um projecto meu com a Teresa, mas não quero falar antes de as coisas acontecerem.
P. – Conseguem conciliar a vossa carreira, cheia de “timings” e digressões, com a vida familiar?
M. J. – Tenho uma criancinha, um rapaz quase com três anos, e é muito difícil para mim estar longe dele. E ele começa também a sentir a minha falta. Passada uma semana fora fico doente de tristeza, começo a embirrar com toda a gente, sou mal educada, chego mais atrasada que o costume…
T. S. – Atrasada? Tu também?…
M. J. – Uuii!…
T. S. – Ah, que alívio…
F. P. – Eu estou a melhorar.




M. J. – Mas a gente não chega atrasada por falta de respeito. Eles [os músicos] quando chegam tarde é porque ficaram sentados na cama a ver televisão (risos). Sei que é assim porque tive essa experiência na minha última “tournée”. Eles, coitados, já estão mais que escaldados com os meus atrasos, de maneira que eu chegava a horas, num esforço sobrehumano, e acabava por ficar à espera que eles viessem. E eles, naquela: “Ela deve estar atrasada.”
P. – O atraso sistemático é o arquétipo feminino desconhecido?…
M. J. – Nós temos mais coisas para fazer do que os homens. Os homens fazem a barba, tomam banho já está. Nós tomamos o banhinho, secamos o cabelo, que é comprido, pintamos os olhos, estamos quase a sair e pensamos: “Será que estamos bem, será que vou vestir isto ou não vou”…
F. P. – A mim o que me acontece é que arranjo sempre qualquer coisa – não gosto de sair de casa e deixar a cama por fazer. O homem está-se nas tintas.
M. J. – Eles chegam aos concertos, fazem o ensaio de som, depois vão para o quarto, vestem-se em cinco minutos e estão prontos. Enquanto nós, eu pelo menos, deixamos a roupa na cama, dobrada e passada a ferro com um ferrinho minúsculo, o que dá umas dores nas costas atrozes, numa posição não de todo ideal para quem vai cantar a seguir. Depois, lavar a cabeça, as pinturas… É um “stress” enorme (risos).
F. P. – Eu começo sempre a preparar-me umas duas horas antes…
T. S. – Também eu.
M. J. – Nem tenho tempo para comer.
F. P. – Normalmente eles vão jantar enquanto eu me vou pintar. Até porque cantar com a barriga cheia… Eles também não gostam.
M. J. – As pessoas pensam que os cantores, os músicos, levam uma vida altamente, vão curtir, vão ver o país – “rica vida, rica vida!”
F. P. – Mas é deitar cedo e cedo erguer!

As Luzes

P. – Afinal sempre dão uma importância decisiva à imagem…
T. S. – Evidentemente. Arranjo-me e pinto-me para me sentir bem.
F. P. – Nos tempos que correm, a imagem é cada vez mais importante. Por altura do 25 de Abril, em 74, lembro-me que as pessoas cantavam como se fosse uma luta. Hoje isso está um bocado morto. As pessoas agora querem é luzes, grande espectáculo.
M. J. – Num concerto estamos em frente das pessoas e temos que nos sentir bem connosco próprios.
T. S. – É uma espécie de máscara que resulta para eu estar à vontade em frente a uma multidão que está a olhar para mim, e que não possa dizer mal dos sapatos ou achar o penteado esquisito…
P. – Nesse aspecto, as cantoras portuguesas também não primam pela ousadia…
F. P. – Não concordo. A Xana, por exemplo, não tem uma imagem clássica.
M. J. – A Anabela Duarte é bastante extravagante.
P. – O negócio, e não só, da música em Portugal poderia comportar excessos do tipo dos cometidos por Sinead O’Connor?
F. P. – Se for uma coisa que faça sentido…
M. J. – O que é isso de excesso?
P. – No sentido de provocação. Lá fora há uma mediatização e assimilação por parte da indústria. Mas num país de brandos costumes como é o nosso?…
M. J. – Se aparecesse cá uma mulher assim, na província chacinavam-na! Quanto à indústria, é Lisboa e Porto e pouco mais.
P. – Somos um país de provincianos?
F. P., M. J. e T. S. – (em coro) – Acho que sim!
M. J. – Somos um país pequeno, conhecemo-nos todos uns aos outros. Conhecemos os críticos, eles conhecem mais não sei quem, fica tudo uma coisa caseira.

Maria João – “Maria João Apresenta ‘Convidadas’ Em Lisboa – A Música Suspensa Do Corpo” (concerto | antevisão)

Secção Cultura Segunda-Feira, 02.12.1991


Maria João Apresenta “Convidadas” Em Lisboa
A Música Suspensa Do Corpo


A cantora Maria João actua hoje à noite no Teatro S. Luiz em Lisboa. Com a presença de “convidadas” ligadas a outras áreas musicais: Lena D’ Água, Teresa Salgueiro (Madredeus), Anabela Duarte (ex-Mler Ife Dada) e Xana (Rádio Macau). Adivinham-se surpresas. Maria João prefere guardar segredo.



Em princípio, tudo pode acontecer. Acompanhada pelos habituais Mário Laginha, piano, Carlos Bica, contrabaixo, José Peixoto, guitarra e José Salgueiro, bateria, Maria João, uma vez mais, preferiu o prazer inesperado, o confronto com a novidade – “a ideia é justamente pegar em pessoas que não fazem o mesmo que eu, construir qualquer coisa com elas e ver a que é que isso soa. Isto é que é divertido e estimulante”. “Uma ideia deliciosa” – nas suas próprias palavras.
Quem quiser pormenores, o melhor que tem a fazer é deslocar-se logo às 22h00, ao Teatro S. Luiz, e ouvir para crer. Que vai acontecer qualquer coisa diferente, é garantido, mas o quê? “Isso é surpresa” – a cantora fecha-se em copas e apenas adianta que “como de costume, vai haver lugar para a improvisação”. Trata-se, para Maria João, de uma necessidade vital de movimento, de constante mudança: “Seria extremamente aborrecido se fosse uma coisa fixa. Gosto muito de mudar as coisas. Até ao último minuto.”
A solo, sabe-se que cantará temas do seu mais recente álbum, “Sol”, gravado na Alemanha com o selo Enja e os mesmos músicos do espectáculo de hoje à noite. Além de “outras pequenas coisas que não estão lá, e as convidadas, claro”. Claro. Logo à noite se verá qual o segredo que permite juntar, no mesmo palco, a pureza ascética de Teresa Salgueiro, o jovial cançonetismo de Lena d’ Água, a excentricidade de Anabela Duarte e a energia rock de Xana, com o discurso libertário de Maria João

Entrega Total

A ideia de recrutar outras cantoras, aquelas de que “mais gosta”, surgiu a partir de um projecto que desde há algum tempo vem mantendo no estrangeiro, um trio vocal feminino do qual fazem parte ela e duas americanas, a experimentalista Laura Newton e a cantora de ópera, residente da Filarmónica de Berlim, Catherine Geyer. Refira-se a propósito que Maria João ainda tem tempo para se integrar num quarteto “com um programa especial”, ao lado de Mário Laginha, a já citada Lauren Newton e o guitarrista alemão Thomas Hortsmann. Já para não falar das aventuras em duo com a pianista japonesa Aki Takase, das quais resultaram o magnífico “Looking for Love”, e em trio, com Takase e o contrabaixista dinamarquês Niels-Hanning Orsted Pedersen, no álbum “Alice”.
Seja qual for o contexto, o que mais impressiona nesta cantora que, de uma maneira quase sôfrega, não para de evoluir, é a paixão com que se entrega de corpo inteiro à música, numa relação que tem muito de sexual. Tinham razão John Coltrane e John McLaughlin quando defendiam que fazer música é deixar-se possuir e tocar por ela e que ao intérprete se exija que seja o seu instrumento afinado. Afinação que exige uma total transparência e a máxima tensão / atenção. Fazer música é saber ouvir a voz que vem de dentro, o movimento cósmico que em cada indivíduo se manifesta e traduz numa forma particular. No caso de Maria João essa capacidade passa pela dimensão física, pela sensualidade dos gestos, pelo desnudar interior. Seria isto o jazz se “isto” não fosse mais qualquer coisa.

Jazz Ou Algo Mais?

Eis-nos chegados ao pomo da discórdia, para os que estão do lado de fora. Maria João é uma cantora de jazz ou não é uma cantora de jazz? Ela não se importa nada com isso, desde que as pessoas a ouçam e gostem do que ouvem. O termo “jazz”, há quem o jure a pés juntos, é uma derivação fonética do verbo francês “jaser” – “tagarelar, conversar animadamente e um pouco à toa sobre diversos assuntos”, segundo a “Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira” (ilustrada com cerca de 15 mil gravuras), que era a que estava mais à mão.
À primeira vista poderá parecer ao auditor médio português, habituado a ouvir Phul Collins e Madonna, que Maria João canta “à toa”, isto é, “como uma maluca” a vociferar “coisas sem sentido”, frequentemente “sem letra”, em suma, “esquisitas”. Mesmo quando essas “coisas” são um tema de música tradicional portuguesa ou um “standard” de Billie Holiday. É neste sentido que Maria João pode ser comparada, na atitude e na maneira como vive e dramatiza a vibração musical, a Bobby McFerrin. Em ambos existe o amor pela liberdade e uma fé. Ou a consciência, no caso feminino quase táctil, de um acto mágico que só o verdadeiro músico vive e compreende, no qual a ordem dos sons, a Harmonia como que se organiza por si própria, cabendo ao Intérprete, com “I” grande, centrar-se, coincidir, dizer e dizer-se, dançar e dançar-se, e às vezes consumir-se, nesse fogo que dizemos vir de “cima”, ou de “dentro”, quando queremos significar a transcendência.
Diz-se por outro lado, muito por força do hábito, que o jazz é “música de negros”. A “Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira” (ilustrada com cerca de 15 mil gravuras) faz mesmo questão de acentuar a “natural disposição dos negros para a arte musical”. É verdade. Em Maria João corre, do lado materno, sangue africano. É o pólo energético complementar: a natural apetência pelo ritmo, a assunção das forças da terra que sobem dos pés até ao cérebro e os põem a dançar. É ainda a sensualidade e, se levada ao extremo, a dor, alegria insana dessa entrega. E no limite do humano, a loucura.
Talvez por isso Maria João (como Meredith Monk ou Shelley Hirsch) saiba a exigência do método (o “haikido” – não, não é porrada – que praticou, ajuda muito), da justa medida, a necessidade de equidistância entre o oceano e o raio. Decerto que sabe.

Madredeus – “Os Madredeus No Coliseu Dos Recreios, Em Lisboa – Canções Do Quinto Império” (concerto)

Secção Cultura Quinta-Feira, 02.05.1991


Os Madredeus No Coliseu Dos Recreios, Em Lisboa
Canções Do Quinto Império


Para os Madredeus foi a consagração. Para os milhares de pessoas que encheram o Coliseu, a oportunidade de reencontro com uma música que aprenderam a amar. Teresa Salgueiro cantou como só os anjos sabem. Carlos Paredes juntou-se ao grupo para “mudar de vida” e seguir com “o navio” pela noite fora.



Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Noite de terça-feira. Sala a abarrotar de gente de todas as idades, ansiosa para assistir à prova de fogo da banda de Teresa Salgueiro, Pedro Ayres Magalhães, Rodrigo Leão, Francisco Ribeiro e Gabriel Gomes – os Madredeus – a meio de uma digressão iniciada em Março na cidade de Braga e que os levará, já dia 4, ao Porto, e, no Verão, aos Açores, Rio de Janeiro, Florença e Macau.
Sobre o palco, desenhado pelo escultor António Campos Rosado, uma escada e uma casa, pequena, sem paredes. Escada por onde se sobe para chegar ao céu. Cá em baixo, na terra, a casa, transparente, portuguesa, com certeza. Iluminação discreta e eficaz. A luz colorida contrastando com o negro das vestes dos músicos. Som límpido e potente, permitindo ouvir distintamente as palavras, projectando bem alto as notas e a clareza dos arranjos, na nave majestosa do Coliseu. Acontecimento único que a televisão, felizmente, gravou.

A Voz E A Guitarra

A sequência de canções seguiu o alinhamento prometido, a mostrar que nada foi deixado ao acaso. “Matinal”, “A Saudade”, “A Península”, “Cuidado” e o hino “O Ladrão”, num ápice, conquistaram o público. Ovações estrondosas, estrelinhas e isqueiros acesos, palmas de acompanhamento, a festa, enfim. E no entanto a música dos Madredeus sabe guardar um espaço de silêncio. As canções de Pedro Ayres são capazes de mover multidões ao mesmo tempo que parecem ter sido compostas especialmente para cada um de nós. Música fraterna e solidária. Esquece-se a vida a fingir, o ruído da turba, a espuma dos dias e fica-se sozinho. Na companhia extasiada de uma voz transcendente ao corpo feminino que a sustenta, a voar nas cadências, nossas desde sempre, de um violoncelo, um teclado, uma guitarra acústica e um acordeão. O uno e o múltiplo, juntos na mesma pessoa e na mesma música. “Existir” no Quinto-Império.
Quando Carlos Paredes, acompanhado por Luísa Amaro, tímido como sempre e é característico da sua pessoa excepto na música que faz, subiu ao palco, sentiu-se no ar a emoção dos grandes momentos. Só, dobrado sobre o seu corpo verdadeiro – a guitarra – interpretou “Mudar de Vida”. A seguir, já acompanhado por todos os músicos da banda, improvisou ao sabor do “Canto de Embalar” (música sua, letra de Pedro Ayres) e de “O Navio”. Retirou-se debaixo de uma monstruosa salva de aplausos. Haveria de voltar. Antes do intervalo, a extroversão e alegria de “O pastor”, canção vivida pelo crítico de forma apocalíptica, rendido à força da música e ao magnetismo da multidão, enquanto um “arrumador de retardatários” lhe apontava um foco de lanterna aos olhos e berrava obscuras séries algébricas. Aos ouvidos aturdidos chegavam, incertas, as palavras do poema: “ao largo ainda arde a fila L, números 22 e 24, a barca da fantasia / e o meu sonho mostre-me os seus bilhetes por favor acaba tarde / acordar é o lugar ao lado que eu não queria”.
“As Ilhas dos Açores”, instrumental de colorações eruditas, abriu serenamente a segunda parte do espectáculo. Rui Machado, poeta açoriano, escreveu a propósito: “Na ilha o (deus do tempo dorme entre pedras e flores”. Ilhas dos Açores, do Espírito Santo, Ilha dos Amores. Depois, sempre em crescendo, as canções guardadas no coração: “Vontade de Mudar”, a suite “A Sombra” / “Solstício” (instrumental com novo e inspirado arranjo) / “Estrada do monte” e finalmente a explosão da “Vaca de Fogo” – vaca deleite.

Interpretação Sublime

Carlos Paredes regressou no “encore”, para a segunda interpretação da noite de “As Ilhas dos Açores”, fazendo contrastar o tom arrebatado e as cicatrizes da sua guitarra com a fluência e o vigor jovial dos outros instrumentos. Já no segundo regresso ao palco, Teresa Salgueiro, iluminada por um foco intenso de luz branca e bem apoiada pela guitarra de Pedro Ayres e o violoncelo de Francisco Ribeiro, interpretou de forma sublime, “O Menino” – momento de pura religiosidade, com a multidão, suspensa do canto de uma mulher, escutando-se e vivendo-se a si própria no corpo crístico do infante.
“Mindelo” e de novo “Vaca de Fogo” fecharam em apoteose um concerto inesquecível. Depois da noite de anteontem a música portuguesa ficou um pouco mais próxima de Deus.