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Vários – “Solidariedade Junta Músicos De Jazz Portugueses – ‘Vivos E De Boa Saúde'” (jazz | portugueses | concerto))

cultura >> quarta-feira >> 21.04.1993
Solidariedade Junta Músicos De Jazz Portugueses
Vivos E De Boa Saúde

Cerca de três dezenas de músicos portugueses provaram na Aula Magna, em Lisboa, que o jazz é linguagem universal mas também sinónimo de diferença. Em concerto de solidariedade com os doentes mentais, no meio da qualidade das várias propostas musicais, o som acabou por ser o principal deficiente.



Sem quantidade não pode haver qualidade, disse António Curvelo, um dos apresentadores do Concerto Jazz de Solidariedade com os Doentes Mentais, a propósito dos cerca de trinta músicos de jazz portugueses que participaram na iniciativa. Sem um som e condições à altura é mais difícil, acrescentamos nós. Os milhares de pagantes que na noite de segunda-feira encheram por completo a Aula Magna da reitoria da Universidade de Lisboa não se resignaram com o incomodativo zumbido de fundo que acompanhou todo o concerto. “Problemas de terra”, desculpou-se a representante da AEIPS – Associação para o Estudo e Integração Psicossocial. De terra ou da lua, tanto faz, as prestações dos músicos saíram prejudicadas. Se bem que o concerto fosse de solidariedade com os doentes mentais não era necessário que o som fosse também deficiente. Ninguém se conformou. Os Idefix preparavam-se para atacar o primeiro tema da noite mas os gritos da audiência não deixavam – “Não comecem!”, “adiem o concerto!”, “Olha o ruído!”, “Não queremos barulho, queremos música!”. Pudera, a cinco mil escudos o bilhete tem-se o direito de querer tudo e mais alguma coisa. Só faltou o tradicional “Ó marreco, olha o sonoro!”.
Com ou sem ruído de fundo (avançou-se com) os Idefix deram início à função. Dois longos temas, “Random Walk” e “Time lines” não deram aso a grandes entusiasmos. Os Idefix têm para já um par de bons solistas, Sérgio Pelágio, na guitarra, e Paulo Curado, nos saxofones soprano e tenor, e um projecto de fusão que faz tangente com a “dowtown” de Nova Iorque e o jazz conceptual de grupos como Orthotonics, Doctor Nerve ou Uludag.
Maria Viana actuou a seguir. A intérprete do álbum acabado de editar “A Viana” mostrou que não chega armar a pose de cantora de jazz para se ser uma cantora de jazz. Claro que a provocante minissaia preta que trazia vestida ajudou um pouco. Mais que não seja para desviar as atenções. Sobrou-lhe em perna o que lhe faltou em voz. Um descalabro, com os “scats” de trazer por casa e os instrumentos de acompanhamento a tocar cada um para seu lado, numa salganhada sem alma nem sentido.
Fechou a primeira parte do espectáculo o Quarteto (na ocasião, terceto, dada a ausência do percussionista José Salgueiro) de Bernardo Sassetti, primeira banda a espalhar pela Aula Magna o sabor e o perfume do jazz de corpo inteiro. Sem grandes ousadias, é certo, mas com segurança e a assimilação correcta das formas tradicionais. De encher o coração e o ouvido, as conversas a dois mantidas entre o piano de Sassetti e o contrabaixo de Bernardo Moreira.
Depois do intervalo foi outra loiça. Luís Villas-Boas, o senhor jazz, fez a apresentação, muito “cool”, do gripo de Carlos Martins, sendo de imediato mimoseado com um carinhoso “morte ao Villas!” gritado da plateia, mantendo-se uma tradição que remonta aos Festivais de Jazz de Cascais. Carlos Martins e o seu quinteto decidiram, e bem, dispensar a amplificação assassina, optando por um “set” acústico. Surpreenderam a progressão da linguagem desenvolvida pelo grupo que encontrou no saxofone tenor do seu líder uma reserva inesgotável de força e de lirismo aos quais respondeu de forma categórica o trompete de Laurent Filipe, solista de grande categoria, na escola dos grandes Miles e Marsalis. Precioso o contraponto rítmico oferecidopelo contrabaixo de Carlos Barreto e a bateria de Manuel Barreiros. A surpresa veio do pianista João Paulo Silva, possuidor de um estilo rendilhado, pleno de contenção, sugestivo de cadências e caminhos a desenvolver pelos restantes músicos. Grande jazz.

Templários

Maior e mais alto ainda foi o templo erigido pela dupla Maria João / Mário Laginha. A cada encontro com a sua música, espanta a evolução sem fim, o aprofundamento do discurso, a coesão e entendimento perfeito entre ambos. São dois em um e um em dois. Caso rarao de simbiose de talentos e sensibilidades complementares que não param de crescer. Distingue-os a entrega e a atenção ao que flui de dentro. A compreensão de que a música, no grau mais elevado, é ascese.
Maria João manipula o espaço e as suas linhas de energia, com o gesto de uma tocadora de harpa. Separa-se de si própria e mira-se no reflexo. Alice do outro lado do espelho. Muda a cor da pele, no modo como encarna as vozes e os corpos brasileiros, africanos, astrais. Atravessa o rio, da margem do terror à margem da ternura. Maria João canta como se nadasse na música. Organismo vivo. Perpetuum Mobile.
Mário Laginha desempenha a função de construtor do templo em cujas colunas se anela o canto-hera. Diferentemente de Bernardo Sassetti e João Paulo, ambos excelenetes pianistas, que engendram narrativas aina regidas pelos cânones do romantismo, Laginha é pitagórico, pedreiro-livre e livre pensador de geometrias fractais. Serve-se do piano para esculpir o silêncio, para pesquisar os intervalos, as notas no interior das notas, big-bangs microscópicos, no centro da fragmentação. Dizia Nietzsche que o caminho mais curto entre duas montanhas faz-se de cume a cume.
Junto ao sopé, para que conste: Maria João e Mário Laginha deram vida aos temas “O vox omnis”, “Várias Danças”, “Saudosa Maloca” e “Um dia inteiro”, a incluir no próximo disco do duo, “Danças”.
Encerraram este concerto de solidariedade com os doentes mentais os dezassete instrumentistas da Orquestra do Hot Clube de Portugal, sob a direcção de Pedro Moreira. Com eles o jazz regressou a casa e ao conforto das origens. Sem quantidade não pode haver qualidade. Sem as raízes bem fixas no solo, a árvore não pode estender os seus ramos para o céu.

Orquestra Sons da Lusofonia atua hoje e amanhã no S. Luiz – “Caminho Longe”

1 de Junho 1998


Orquestra Sons da Lusofonia atua hoje e amanhã no S. Luiz

Caminho longe


sl

“Nos últimos três anos cerca de duas dezenas de músicos dos sete países lusófonos têm-se reunido regularmente para fazer música. Aos sons resultantes desses encontros chamámos, por não encontrar melhor nome para aquilo que fazemos, Sons da Lusofonia”. É uma justificação modesta de Carlos Martins para a pluralidade de músicas que se encontram e polinizam no seu projecto Sons da Lusofonia. Uma orquestra que poderia ser de jazz se não dançasse tanto em torno dos hemisférios do mundo, um grupo que poderia ser de “world music” se não retivesse tanto as prédicas e os silogismos de estilo da grande música negra. Assim como é, cabem nestes sons grandes e polidas auto-estradas urbanas e veredas perdidas entre rios e florestas tropicais, que Carlos Martins soube organizar num prolífico sistema de vasos comunicantes.
Sons da Lusofonia é um “Caminho Longe” – genérico do espectáculo -, que ata e desata as raízes e a historia do jazz, a música ligeira, a poesia declamada e o folclore dos países lusófonos africanos, do Brasil e do Oriente. Estimula-se “a investigação no campo da etnomusicologia, a experimentação musical e a prática de uma itinerância que amplie a cooperação artística entre os países lusófonos”. Por outras palavras, promove-se o diálogo. Colorindo-o com muitas cores.
“Caminho Longe” está estruturado em sete módulos musicais e coreográficos distintos. Uma viagem. Entre rituais étnicos, delírios “free” de “big band”, versos que desenham lugares e a imaginação desses lugares, e canções pop. Não se procurem grandes feitos ao nível da coreografia.
Participam nos dois espectáculos, entre elementos fixos da banda e convidados, Alcides Gonçalves, Alexandre Frazão, Alexandre Dinis, Artur Fernandes, Beto Monteiro, Dalu, Dany Silva, Edu Miranda, Filipa Pais, Filipe Larsen, Guto Pires, Loni Seiva, Mário Delgado, Mário Reis, Miguel Gonçalves e Rui Gonçalves. Ainda a participação especial de Ângelo Torres, o coro Cramol, Filipe Mukenga, Marlene Freitas, Tony Tavares, Rui Veloso e Rui Júnior.
Vai ser tudo gravado em áudio e vídeo para posterior edição de um CD, um vídeoclip e um documentário para a televisão.



Carlos Martins & Vasco Martins – Outras Índias

10.10.1997
Carlos Martins & Vasco Martins
Outras Índias (8)
Nortesul, distri. Valentim de Carvalho

Carlos Martins, saxofonista de jazz e conceptualista atento à fusão dos sons do universo, cruzou-se com Vasco Martins, navegante solitário do Mindelo, Cabo Verde, dos sintetizadores e das miragens “new age”, autor de uma trilogia intitulada “Southbound Music”. Decidiram gravar juntos, numa ponte entre duas solidões – a do Alentejo e a do Mindelo. Em busca de “Outras Índias”, lugar imaginário apenas para quem não se consegue libertar das amarras da estagnação, da intolerância e da cegueira. “Outras Índias” é um lugar – esse lugar “onde mora a beleza”, nas palavras do saxofonista – que não se encontra no jazz nem na música tradicional de Cabo Verde. Paisagem contemplativa e intimista, espaço amplo de diálogo entre os saxofones tenor e soprano de Carlos Martins com os sintetizadores e guitarra acústica de Vasco Martins (não se procurem neles outro parentesco senão o da cumplicidade musical…), “Outras Índias” avança devagar, saboreando cada nota e cada pausa. O estado de alma pode estar próximo do de um Rão Kyao só que aqui se parte para uma aventura maior. Meditativo, caloroso, exótico, deve ouvir-se com a mesma liberdade de espírito com que foi criado. O saxofone de Carlos Martins deixa-se inebriar pelas delícias mais subtis do tonalismo (Karl Jenkins, dos Soft Machine, convertido a Canterbury…), enquanto Vasco Martins sonha contrapontos de guitarra ou tece discretas tapeçarias electrónicas. Uma geografia a descobrir.