Hamish Moore & Dick Lee – “Farewell to Decorum” + Obsession – “Et Pourtant Elle Torune”

pop rock >> quarta-feira, 10.11.1993
WORLD


PROPOSTAS INDECENTES

Hamish Moore & Dick Lee
Farewell to Decorum (7)
Greentrax, distri. VGM

Obsession
Et Pourtant Elle Torune (8)
Mustradem, distri. Etnia



Faz sentido a ligação entre o jazz e a música tradicional. Por dentro, pelo lado da improvisação, característica comum a estes dois tipos de música. Em França, sobretudo na Bretanha, é prática corrente. Dos diálogos improvisados entre a gaita-de-foles e a bombarda ou das disputas vocais de canto e resposta é fácil para os novos grupos bretões partirem para a estilização formal e para um discurso marcadamente jazzístico. Nas Ilhas Britânicas, e neste caso na Escócia, a contenção é maior, em parte devido ao facto, de certa forma paradoxal, de a própria estrutura intrínseca da música ser bastante mais fluida, o que permite um sem número de liberdades que dispensam as colagens. As experiências levadas a cabo, nos anos 70, por Ken Hyder e os Talisker, em “Dreaming of Glenisla”, sobre temas tradicionais, ou a aproximação ambiental empreendida por John Surman, em “Westering Home” não deixaram descendência. Com uma colaboração encetada em “The Bees Knees”, Hamish Moore, especialista das “highland” e “border pipes” escocesas, volta a encontrar-se com o saxofonista e clarinetista de jazz Dick Lee. Do reencontro ressaltam uma energia e alegria avassaladoras, impressionando sobretudo as colisões e conversas apaixonadas travadas entre as “pipes” e o clarinete-baixo, num “Third movement of a concerto for bagpipe and jazz orchestra”, em “Malts on the optics / Farewell to decorum” e numa sequência de jigas galegas gravadas ao vivo. A gaita-de-foles solta-se a solo em “Farewell to Nigg”, e Dick Lee, soberbo de força, mostra uma vez mais ser um músico pouco dado à introspecção. A faísca seria maior se neste adeus ao decoro (uma das dedicatórias do álbum vai mesmo para o “hooliganismo musical”…) não pusessem água na fervura o neo-classicismo despropositado de “Autumn Leaves”, a versão folk do som GRP de “Round dawn” e um “The Monster” criado por Lee que se arrasta pelos pântanos da falta de criatividade. Mas tudo acaba embeleza no manifesto guerreiro – urbano – tribal de “12.12.922 (a march for democracy” / “Freedom come all ye”, com a simulação do som de um didjeridu, uma “pipe band” e um naipe de metais empurrados para a revolução pela memória de Hamish Henderson.



“Farewell to Decorum” não é um disco para nos contar segredos, mas um grito que nos vem lembrar o quanto é verdadeira a máxima de Santo Agostinho: “Ama e faz o que quiseres”. Eles fizeram-no. Mais e melhor, e com menos alarido, ainda no capítulo da fusão entre a folk e o jazz, fizeram os Obsession. De novo com o clarinete baixo na ribalta e dois acordeões no lugar da gaita-de-foles. A “Trad Mag.” Chamou a Stéphane Milleret e Norbert Pignol, os dois principais solistas do grupo, os Valentin Clastrier do acordeão diatónico. Não são bem, embora certos desenvolvimentos temáticos, como os de “Musique de sabloir”, recordem por certo pormenores da “Héresie”, daquele sanfonineiro recentemente chegado até nós pela Silex. Mas enquanto Clastrier revolucionou a interpretação na sanfona os dois acordeonistas dos Obsession preocupam-se menos comm a exploração das possibilidades técnicas do instrumento e mais com a criação de um estilo inovador que, pelas suas características, está mais próxima de Guy Kluceskek, Astor Piazzola, Pauline Oliveros e Dino Salluzi do que da folk convencional. Os Obsession partem de uma ideia, já de si pouco convencional, do “bal musette”, para deambularem pelo jazz de câmara, em constante visitação por áreas dificilmente identificáveis, ou pelo contrário, bem evidentes, como é o caso de “Mélodie volée au Café Pingouin”, referência explícita aos Penguin Café Orchestra. “Et Pourtant Elle” estende-se por “suites” instrumentais, por vezes bastante longas, que vão tão longe quanto os Balcãs “Manege a eau pour chamelle de bois”). Os dois acordeões repartem o tempo de antena com o violino, a flauta de bisel (não a ouvíamos tão bem tocada desde os tempos de Richard Harvey com os Gryphon), o clarinete e o clarinete baixo, com a cobertura conivente e percussiva de uma dabourka, congas e tom-tons.

Gavin Bryars – “Jesus’ Blood Never Failed Me Yet”

pop rock >> quarta-feira, 10.11.1993
NOVOS LANÇAMENTOS POP ROCK


Gavin Bryars
Jesus’ Blood Never Failed Me Yet
Point Music, distri. Polygram



Gavin Bryars gravou em 1975, num dos primeiros volumes da editora Obscure, de Brian Eno, as versões originais de “The sinking of Titanic” (faixa que deu nome ao álbum) e este “Jesus’ Blood never Failed Me yet”. Com o advento da era digital, o compositor recuperou cada um destes temas, lançando em primeiro lugar a versão alongada alusiva à catástrofe do Titanic, para agora fazer o mesmo com “Jesus’ Blood…”, que passou a estender-se por 74 minutos de duração. É o regresso do velho vagabundo que Bryars gravou numa rua de Londres, em 1971, a cantar pelo tempo fora, com voz tôpega e emocionada, a hipnótica oração. A novidade em relação à versão original, que se limitava a acrescentar progressivas camadas orquestrais à lenga-lenga do vagabundo, é a inclusão, nas duas últimas partes, da voz de Tom Waits, também ele de certa forma um vagabundo e admirador de longa data da obra de Bryars, primeiro numa espécie de canto-resposta e, nos últimos minutos, já sem o vagabundo por companhia. O resto são múltiplas variantes orquestrais de acompanhamento que servem para acentuar, sob diferentes prismas, o carácter de “human-ness” que Bryars encontrou nesta espécie de manta esfarrapada e que tem o condão de provocar no ouvinte um estado de relaxação. Ou de sono, nos casos de maior sensibilidade. O vagabundo já morreu entretanto. Paz à sua alma. (5)

Rita Guerra, Lena d’Água e Helena Vieira – “‘Canções Do Século’ No Estoril – Alegres Panteras”

cultura >> sexta-feira, 05.11.1993


“Canções Do Século” No Estoril
Alegres Panteras



RITA GUERRA, Lena d’Água e Helena Vieira passaram em revista, nas noites de sexta e sábado no salão Preto e Prata do casino do Estoril, as canções que fizeram a história da música ligeira deste século. Durante cerca de duas horas, as três cantoras, sempre vestidas de negro, quais panteras de garras afiadas e alegria felina, interpretaram a solo ou em conjunto as canções que ficaram na memória. De “Tea for two”, “Summertime” e “The Lady is a tramp” ao “Timpanas”, “Maldita Cocaína” e “A mula da cooperativa”. De “My funny Valentine”, “La vie en rose”, “My fair lady”, “The dock of the bay” e “Satisfaction” a “Tintarella di blu”, “Desfolhada” e “Ó José aperta o laço. Couberam todas. Como couberam todos os artifícios e pequenas vaidades do “jet-set nacional”, que voltou a marcar presença no casino, embora em menor número do que é habitual neste tipo de galas.
As canções, claro, eram o que toda a gente estava à espera. Mas primeiro era preciso confortar o estômago. Para tal, foram convidados artistas de outra estirpe que davam pelo nome de camarões (com maionese de ervas finas) ou – mais “raffinés” – “suprêmos [com acento] de pato estufado com laranja” e “bavaroise” de morango. O espectáculo propriamente dito, que incluiu projecção de “slides” sobre e ao lado do palco, teve direcção de Pedro Osório e apresentação de Júlio César. Este, em contraste com o negro dos vestidos das cantoras, fazia sobressair de um fraque branco a sua voz bem modelada pelo espectáculo de que faz parte, inspirado em Salvador Dali e que tem vindo a decorrer nesta mesma sala (o lado interior da entrada no salão foi transformado na célebre boca vermelha de Mae West). Já na parte final das “Canções do Século”, as três vozes femininas interpretaram temas de José Afonso, em homenagem a este autor, e uma rapsódia bem recheada de composições de outros artistas portugueses, entre eles, Fausto, Carlos do Carmo, José Mário Branco, Trovante, Rui Veloso, Heróis do Mar, Sétima Legião e Xutos & Pontapés.
Ainda houve tempo para uma sessão de “karaoke” – um entretenimento por cá agora muito em voga e que consiste em qualquer pessoa poder cantar ao microfone músicas conhecidas, com acompanhamento de “playback” instrumental – feito por algumas figuras conhecidas presentes na assistência (Raul Solnado, Fernando Pereira, António Sala…), como forma de matar o tempo enquanto as três estrelas da noite mudavam de fato. A fechar, um dueto improvisado de “Menina estás à janela”, entre Helena Vieira e Rita Guerra e, em pé no meio das mesas, Paulo de Carvalho e Carlos do Carmo. Uma festa, com toda a gente a sair satisfeita do “Preto e Prata” pela boca de Mae West.
Agora é só esperar até ao ano dois mil por novas canções. Se ainda houver.