Cultura >> Domingo, 12.07.1992
Simone Actuou No Casino Do Estoril
“Tem Um Guardanapo Que Me Empreste?”
SIM, É verdade: “Ter saudades é bom. A alma renasce, o corpo inquieta-se. O amanhã parece nunca mais chegar. É afinal o desejo feito de mil sentidos, apurados até à vertigem”, anunciava o anúncio do Casino, a propósito de mais uma vinda de Simone a Portugal. Estávamos cheios de saudades e sentimos nitidamente a alma renascer e o corpo todo numa inquietação, à beira da vertigem. E o amanhã que nunca mais chegava!… Simone, essa, chegou e triunfou.
No cardápio da noite de sexta-feira, por 12 mil escudos e traje recomendado – fato escuro -, a lista era a seguinte, por ordem de entrada: música ambiente, misto de fumados com molho de rábano, medaçhões de vaca Pompadour, torta de laranja com molho de baunilha, café, Simone, aplausos. Vinhos: garrafeira Estoril-Sol. Os doze contos da entrada não incluíam o “show” de maminhas de Mozart. Em termos de qualidade, Simone apenas terá sido ultrapassada pelos vinhos da garrafeira Estoril-Sol, vencendo facilmente a torta, os fumados e os medalhões.
Um sax muito “downtown”, estilo “Nova-Iorque fora de horas” serviu de cenário à entrada triunfal da cantora. Vestida, como sempre, de branco, com um longo vestido decotado que lhe dava um ar de sereia, Simone lançou-se de imediato na interpretação dramática de “Sou eu”, não fosse alguém confundi-la com a Gal ou a Betânia. Depois, até ao fim, foi só amor. Quarentona bem conservada, a cantora mostrou que continua em forma. Mantém uma aparência óptima e um razoável jogo de braços, exemplificado na largueza dos gestos e numa imitação de maestro em que fingiu dirigir os músicos da banda. O “potencial erótico” em que é exímia é que nem por isso esteve em grande evidência, limitando-se, neste campo, a limpar o suor do pescoço, voltada de costas para a assistência, e a sacudir várias vezes a farta cabeleira (as artistas brasileiras gostam todas de sacudir a farta cabeleira). Sensual, continua a voz. Com o “coração na graganta”, como dizem que tem, não admira.
Numa sequência de 17 canções, qual delas a mais romântica, distinguiram-se os diálogos da voz com a guitarra acústica de Luís Xapim, nas interpretações intimistas de “Eal e eu” e numa fabulosa “Jura secreta”. Ao nível poético, as letras recorreram aos jogos estruturalistas que a língua portuguesa autoriza, sobretudo se tiver sotaque brasileiro: “eu te amo”, “eu vou te amar”, “eu te amei”, na conjugação amorosa de todos os tempos possíveis do verbo.
A “overdose” de amor tinha entretanto instalado no salão “Preto e Prata” do Casino uma atmosfera de calor humano que, juntamente com a excitação, o fumo e a digestão dos fumados e medalhões, tornava o ar quase irrespirável. A certa altura acendeu-se numa das mesas uma estrelinha (antes só dois tímidos isqueiros tinham dado um ar da sua graça), simbolizando o brilho dos corações e a ternura imensa que nessa altura fluía já num imenso mar de amor por toda a sala. Foi belo, muito belo.
Depois, já no “encore”, com “Será” em miscelânea, tudo acabou em samba e carnaval – os corpos ergueram-se e dançaram em apoteose que culminou no êxtase colectivo e no ritual de agitar os guardanapos. Alguém que durante o jantar deve ter limpo a boca às mãos, implorava à mesa do lado, numa excitação: “Tem um guardanapo que me empreste?”