Madredeus – “A Eternidade Suspensa” (concerto | blitz)

BLITZ 5 DEZEMBRO 1989 >> Ao Vivo


MADREDEUS

A ETERNIDADE SUSPENSA


Chovia. Chovia muito. (É já um lugar-comum começar um artigo desta maneira, mas chovia de facto muito nessa noite). Atravessei o mais rapidamente que pude a alameda enlameada e entrei na Gulbenkian dos pobres. Cheguei atrasado (maldita chuva). Como a sala estava cheia fui obrigado a ficar de pé. Paciência.

Apenas consegui escutar os dois temas finais da dupla Carlos Maria Trindade/Nuno Canavarro. Um em frente ao outro, no palco, lembrando a postura inicial do então duo Kraftwerk. Uma panóplia de teclados e um computador feericamente iluminado davam o conveniente ar «High-Tech» ao acontecimento. No intervalo contaram que a coisa foi chata. Pela amostra, não achei nada. Pelo menos, os dois referidos temas mostraram como utilizar a tecnologia eletrónica mais sofisticada com óptimos resultados. Os dois músicos completaram-se na perfeição soando a música à escola japonesa da ala Isao Tomita (na faceta mais clássica) ou a Masahide Sakuma (nos arrojos mais experimentalistas). O lirismo digital foi uma constante. Final apoteótico com o público de pé pedindo bis e os músicos a não corresponderem ao pedido. Guardado estava o pedaço para o que haveria de vir.
Intervalo e os encontros e conversas do costume. «Então, gostaste?» e o «nem por isso» blasé do costume mesmo que se tenha adorado. Um bar miserável funcionando ao mesmo tempo como bengaleiro, provido unicamente de «Sagres» e Coca-colas de litro, não convidava a grandes libações. Cumpridos os rituais sociais com colegas de ofício, amigos ou simples conhecidos destas ocasiões, chegou finalmente o momento ansiado por todos.
Os Madredeus entraram em palco e tinham vencido mesmo antes de tocarem uma única nota. Saudação monumental. Teresa Salgueiro, a diva de vestes e pose fadista (mantidos ao longo de toda a sua irrepreensível atuação), foi recebida em delírio com gritos e alguns piropos. Percebi imediatamente que os milhares de pessoas que apinhavam a sala eram todos amigos íntimos da cantora. Senti-me tímido e deslocado, eu que nunca tivera a oportunidade de trocar qualquer palavra com a senhora. Encolhi-me o mais que pude na cadeira embora nesse momento continuasse de pé.
Os músicos dispuseram-se em concha sobre o palco. Da esquerda para a direita, descrevendo um arco: Rodrigo Leão, nos teclados, Gabriel Gomes no violoncelo, Pedro Ayres na guitarra acústica e Francisco Ribeiro no acordeão. Ao centro, no meio da concha, a pérola, A voz. Depois, bem, depois foram o silêncio, as palavras, a música e o Sentimento de uma portucalidade antiga vivida e encenada por cinco jovens da grande cidade.
Os Madredeus tocam fado de câmara. Do fado, para além das evidentes entoações vocais de Teresa Salgueiro, retêm o sentido trágico, a profundidade comovida e a Saudade. Da música de câmara, o intimismo e a conceção instrumental. Ou então falemos de música tradicional no seu sentido mais lato e profundo. Entre o granito e as estrelas, Passado e Futuro são saudosamente festejados ou sofridos na Cruz do Presente. Tocaram cerca de vinte temas, poderiam ter sido mais outros tantos ou só um. No tempo da Madre Deus, cantou-se, tocou-se e bailou-se por dentro, fora do Tempo. Apenas um momento da eternidade suspenso na voz infinita de Teresa, nos abismos escuros e solenes do violoncelo de Gabriel, na câmara e salões palacianos dos teclados de Rodrigo, nas cintilações e sorrisos tristes da guitarra de Pedro, nas danças e nas aldeias presentes no acordeão de Francisco. Tocaram temas do seu magnífico duplo-álbum de estreia, com novos e inspirados arranjos.
Quase se torna supérfluo dizê-lo: todos os presentes, cada um à sua maneira, viveram e participaram nesta cerimónia celebrada em noite de chuva. Sim, chovia. Chovia muito. Lá fora ou talvez ainda mais para alguns por dentro. Não se sabia, mas é assim: na Felicidade confundem-se e coincidem Tristeza e Alegria. Ri-se de tristeza e chora-se de alegria. O que é então a música? O que é a Felicidade? Minha Mãe, meu Deus, quando eu era pequenino…

Fernando Magalhães no “Fórum Sons” – Intervenção #97 – “Roberto Musci & Giovanni Venosta (FM)”

#97 – “Roberto Musci & Giovanni Venosta (FM)”

Fernando Magalhães
10.04.2002 190757
Roberto Musci e Giovanni Venosta são dois músicos italianos que nos anos 80 e 90 gravaram os mais extraordinários álbuns de que há memória, na área da fusão (termo apenas cómodo para definir a síntese sem precedentes desta música sem paralelo) da tecnologia (computadores, samples) com referenciais étnicos, na criação de uma espécie de world music cósmica que arranca do preciso ponto em que ficaram Eno e Byrne, em “My Life in the Bush of Ghosts” e o Jon Hassell, das “músicas do quarto mundo”.

Vamos aos álbuns. São todos obras-primas. Em cada uma delas, RM e GV explicam as fontes e processos que utilizaram, samples do estilo “pigmeu da Nova Guiné a lavar os dentes com uma escova elétrica” ou “turista esquimó a esquiar numa pista sintética da Disneylândia” (é o tipo de coisa que estes italianos fazem, mesmo!…), processados através do programa Blábláblá mais um solo de sax barítono jazz e um loop de uma orquestra de gamelão…

Mas o que poderia soar como uma manta de retalhos, não o é, mas sim uma música de extrema organicidade e originalidade em que as surpresas acontecem em cada segundo!

Os dois primeiros, “Water Messages on Desert Sand” e “Urban and Tribal Portraits” estão condensados num único CD com o selo Recommended (estava no “vendedor” mas acho que alguém já levou…Quem, já não me lembro…ele que se acuse 🙂 ).

Os posteriores “A Noise, a Sound” e “Losing the Orthodox Path” são mais… “eruditos”, num estilo de “música contemporânea de um mundo perdido”.

Tanto RM como GV têm também álbuns a solo magníficos, como “Olympic Signals” (Venniosta) e “The Loa of Music” (Musci, o vendedor tem…).

Considero os dois primeiros e já citados dois álbuns da dupla, dois clássicos dos anos 80.

FM

Peter Hammill – “Prometeu Agrilhoado” (valores selados | blitz | artigo de opinião | dossier)

BLITZ 21 NOVEMBRO 1989 >> Valores Selados

Como certamente repararam, estive ausente desta página a passada semana. Outros deveres jornalísticos impuseram que me deslocasse à República do Alto Volta para fazer a reportagem sobre os pequenos-almoços de Paul McCartney nessa mesma República.
Mas eis que regresso são e salvo, já refeito do choque McCartney e pronto para mais prosas sobre os «Valores», talvez não tão interessantes como as refeições do ex-Beatle, mas olhem, faz-se o que se pode. Dizia eu então que os Van Der Graaf foram o grupo mais importante da década de 70. Foram sim senhor e Peter Hammill um dos maiores poetas e compositores de sempre da música dita popular. É sobre este senhor que, como tinha prometido, escreverei esta semana. Como o assunto é extenso traçarei a sua história cingindo-me apenas aos discos que, ao longo de duas décadas, Hammill vem brilhantemente assinando. O título deste artigo é:


PETER HAMMILL – PROMETEU AGRILHOADO



Porquê Prometeu? Ora, porque foi esta personagem mítica quem roubou o Fogo Celeste, mesmo nas barbas do Criador. Depois foi castigado, como se impunha. Peter Hammill imitou o herói do mito mas, como Fernando Pessoas bem acentuou, a posse do génio paga-se bem cara. Hammill nunca alcançou a glória que já há muito merece. A sua obra é conhecida apenas por um clube de iniciados, felizmente com cada vez mais sócios.
Peter Hammill é o romântico por excelência. Não no sentido degradado do termo, geralmente associado aos remoques de um Tony de Matos ou, mais modernamente, a um Vítor Espadinha, mas naquele, bem mais elevado, dos poetas do século passado. O genuíno poeta romântico é aquele que enfrenta, numa irremediável solidão, as forças sobrenaturais que o transcendem, sejam deuses ou demónios. No séc. XIX estes paladinos do eterno confronto entre o humano e a condição divina acabavam sempre tuberculosos, apaixonavam-se por rapariguitas andrajosas que invariavelmente tomavam pela Mulher ideal, embebedavam-se e drogavam-se muito e às vezes, por fastio ou verdadeiro desespero, suicidavam-se.
O nosso homem, mais prudente e avisado, escolheu antes escrever canções e gravar discos. As suas angústias existenciais e dilaceramento interior têm sido ótimos pretextos para a criação de alguns momentos decisivos na história dos songwriters ocidentais (mas há outros?). Além de sofredor nato, Hammill é um razoável pianista e guitarrista. Mas é a VOZ que faz a diferença. A voz e a maneira como a utiliza. São únicos e está tudo dito.
Passemos então aos discos e à sua descrição sucinta. Passemos também para um tom mais sério que o homem e a obra assim o justificam.
1971 – (O mesmo ano da edição de «Pawn Hearts») – «Fool’s Mate», em português, «cheque à pastora» aplicado no jogo do xadrez aos mais idiotas ou simplesmente inexperientes. Hammill tem a obsessão do xadrez e é um ótimo jogador sobretudo quando joga sozinho, o que acontece quase sempre. Canções da primeira infância, ainda otimistas como «Imperial Zeppelin» ou «Sunshine», mas otentando já os germes de iminentes dramas interiores. Participa no disco um tal Robert Fripp, o senhor que se segue nos «Valores».
1973 – «Chameleon in the Shadow of the Night». O primeiro clássico. As paranoias em volta do estatuto do rockstar (que Hammill, de resto, nunca foi) em «German Overalls» e «Rock and Role». O fim dos fins, o Apocalipse, interior e planetário, nunca resolvido, nunca redentor, de «In the End» e a grande ode à solidão pintada em tons épicos e desamparados que é «In the Black Room».