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No Secrets In The Family – “Play And Strange Laughter”

BLITZ 6 MARÇO 1990 >> Escaparate


NO SECRETS IN THE FAMILY

«PLAY AND STRANGE LAUGHTER»


Raros são os discos da Recommended Records que não alcançam a classificação de pelo menos «Muito Bom». A explicação para tal facto é simples: os critérios prevalecentes na estratégia editorial (desde a feitura da capa até aos últimos retoques de produção) regem-se exclusivamente pela qualidade e originalidade genuínas, ou seja, não há cedências de qualquer espécie. Parece fácil? Até é. Quando os objetivos não se resumem à obtenção de lucros a todo o custo.
A Rec Rec é uma editora suíça, subsidiária da sua congénere britânica e cuja totalidade do catálogo não foge à regra, isto é, vale a pena comprar todos os seus discos. Nomes importantes não faltam: os britânicos Camberwell Now (de Charles Hayward) e Skeleton Crew (de Fred Frith e Chris Cutler); o próprio Frith a solo, os franceses Etron Fou Leloublan (mais álbuns a solo dos seus membros Ferdinand Richard e Guigou Chenevier) e Nimal, os suíços Débile Menthol, os americanos Orthotonics, Negativland e Red Crayola ou os nipónicos After Dinner (cujo último álbum, aqui criticado, é de 89 e não 84, como por gralha saiu publicado), incluem-se no catálogo de luxo da editora.
Os alemães, ou suíços, ou austríacos No Secrets in the Family fazem parte da última fornada, juntamente com o mais recente dos germano-suíços Unknownmix («Whaba»), o já citado dos After Dinner («Paradise of Replica») e a estreia dos No Safety («This lost leg», com Zeena Parkins e Pippin Barnett).
Com os No Secrets salta imediatamente à vista (ou ao ouvido) aquilo que constitui regra de ouro em todos os «produtos» Recommended: a excelência técnica de todos os músicos envolvidos. Claro que não basta, mas também (regra n.º 2) só grava na casa quem, para além de saber tocar impecavelmente, seja ainda melhor compositor e arranjador e consiga ainda por cima ser original. É o caso destes No Secrets in the Family, liderados pela família Schonholzer: Annette (voz, sintetizador, órgão de pedais e melódica) e Markus (voz, guitarra e melódica). Os dois restantes membros são Daniel Meienberger (baixo, ukelele e voz) e Martin Gantenbein (bateria, flautas, saxofone, acordeão e voz).
Presentes ainda alguns convidados em violino, violoncelo, fagote, tuba e oboé.
Um dos trunfos da banda é possuir nas suas fileiras duas excelentes vozes, as de Annette e Markus, filiados nas escolas de Dagmar Krause e David Thomas (o gordo), respetivamente. Um dos outros vocalistas lembra outro excêntrico: David Garland (de «Control Songs» e «Worlds of Love»).
Mas é ao nível das composições que levantam voo: canções simultaneamente complexas e acessíveis, arranjadas com um bom-gosto inexcedível. Ao todo são dez, incluindo uma versão surrealista de «Que Sera Sera» e uma letra inspirada num texto de Chesterton («The Ballad of Suicide»).
«Play and Strange Laughter» é um disco a não perder. Quando por esse mundo fora se vão publicando dezenas de ótimos discos como este, porquê perder ainda tempo com o lixo que, metodicamente e com a cumplicidade dos «media», vai saturando e envenenando o mercado?
O rótulo «Música alternativa» serve, neste como noutros casos, para lembrar que vale a pena fazer desvios e arriscar no menos óbvio.
O portal Rec Rec é uma das entradas possíveis no imenso e luxuoso palácio da Recommended. Franqueá-lo é ter acesso ao paraíso.
(LP Rec Rec, Import. Contraverso, 89)

Vários (KGA, Plastic People, Istvan Martha, Der Expander Des Fortschritts, Boris Kovak) – “A Leste Tudo De Novo”

BLITZ 6 MARÇO 1990 >> Valores Selados


A LESTE TUDO DE NOVO

Não há dúvida que novos ventos sopram do Leste. De feição, no caso da música. Novos sons vão invadindo o Ocidente, suscetíveis de injetar sangue novo no panorama das músicas alternativas independentes europeias. Os apaixonados pelos sons originais das «Outras esferas» já não tinham mãos e ouvidos a medir, perdidos no meio das dezenas e dezenas de bons discos produzidos um pouco por todo o lado à margem das estratégias comerciais. Se o ritmo já era difícil de acompanhar, agora é preciso contar também com a brigada (ex)vermellha.

No princípio eram os novos totalitaristas como os Laibach ou os Last Few Days, operários, radicais, provocadores, subversivos e estimulantemente violentos. Os primeiros, depois de alguns desvios que deram mau resultado, regressaram às trombetas e fanfarras militaristas iniciais, agora rotulados com o selo de qualidade de «Novos clássicos». Em todo o caso, o mais recente «MacBeth» não envergonha os seus autores quando comparado com o ponto máximo que foi o estreante «Nova Akropola».
Quanto aos Last Few Days substituíram as sirenes, megafones e «slogans» anarquistas pelos ritmos, pelo menos mais rentáveis, da dança. Mudam-se os tempos, mudam-se as subversões…
Dos Holy Toy, polacos mas liderados por um norueguês (Lars Pedersen), nada mais se soube, após uma série de bons álbuns e a obra-prima «diferente de tudo» assinada por Lars, «Death in the Blue Lake». E já que falamos de obras-primas convirá não esquecer essa outra que é «Insect Culture» dos soviéticos Popular Mechanics, de Sergei Kuriokhin.
Saliência ainda, na área do jazz, para a obra dos Ganelin Trio e para os projetos, conotados com a música concreta e eletroacústica, do grupo de percussão húngaro Amadinda, do checoslovaco Jaroslav Krcek («Raab») e deste músico juntamente com Georg Katzer (Alemanha Democrática) e Zygmunt Krause (Polónia) num mesmo álbum gravado para a Recommended («Aide Mémoire/Folk Music/Sonaty Slavickove»).
Recommended Records que se mantém, como habitualmente, atenta a todos os novos sons do Mundo e, neste caso particular, aos do leste europeu. Paralelamente à distribuição de uma revista de divulgação e apoio aos novos projetos e ideias oriundos daquelas regiões, associou-se à editora Points East, distribuindo para o Ocidente todos os seus discos. Os mais recentes valem todos a pena e estarão brevemente disponíveis na discoteca Contraverso que, por sinal, acabou de receber nova remessa de maravilhas com a chancela de qualidade «Recommended». Aqui vão entretanto algumas indicações sobre novos discos dos nossos amigos do Leste:

BORIS KOVAK: Ritual Nova 2
Segunda parte do dito ritual. Música tradicional jugoslava, eletrónica, sopros, sons ambientais, cântico gregoriano e sérvio, leituras do Corão (em fita ou sampladas). Ritual dividido em duas partes: «Dream of the Origine» e «Origine of the Dream», com várias secções de títulos místicos como «All under the Celestial Cap», «Sacred Millstone» ou «Mandala». Crescendos rítmicos e corais desembocando em episódios mais contemplativos, próximos dos de John Surman ou Stephan Micus. Delicioso.
Instrumentação: Sampler, Sax soprano, clarinete baixo, taragato (instr. Trad.), cítara (não confundir com a sitar indiana), percussão, violoncelo, fitas, vozes.
Referências: ECM (Micus, Surman), música étnica, Musci/Venosta, música religiosa medieval, Terry Riley, Laraaji.

DER EXPANDER DES FORTSCHRITTS (Alemanha Democrática): Álbum estreia com o mesmo nome
Oriundos de Berlim e destinados a espantar muita gente. Músicos fabulosos combinam todos os seus talentos na construção de labirintos sonoros com múltiplas entradas/saídas. Síntese de esquisitas manipulações eletrónicas com a decadência do cabaré berlinense, o free-jazz, vozes parasitárias e canções à beira da demência. A heterogeneidade completamente assumida e assimilada resultando numa música excitante e verdadeiramente original. A letra de um dos temas é retirada de um texto do filósofo Friedrich Nietzsche.
Instrumentação: Vozes, fitas, percussão, piano, saxofones, flauta, teclas/eletrónica, baixo e guitarra.
Referências: Cassiber, Goebbels & Harth, Fred Frith, Cabaré, Dada.

ISTVAN MARTHA (Hungria): Támad Aszél
Obra de grande fôlego denominada «Diário de som eletrónico» pelo próprio compositor. Longa suite subdividida em várias partes, contando com a participação de Marta Sebestyén e dos «Amadinda», entre dezenas de outros músicos importantes da cena underground magiar. À semelhança de Boris Kovak, o ponto de partida é a música tradicional (neste caso a húngara), reinterpretada e inserida num contexto atual. Polifonias vocais complexas e grandiosas e um aproveitamento de todos os sons planetários disponíveis, contribuem para a construção de um monumental edifício sonoro onde, mais uma vez, imperam as sínteses de estilos e épocas diversificados.
Instrumentação: Saxofones, flauta, trompa, shawn (instr. medieval de sopro), vocoder, bateria, guitarra, sintetizadores, trombone, órgão, violoncelo, sanfona, gaita-de-foles e harpa, mais o quarteto de cordas «Mandel» e o grupo de percussão «Amadinda».
Referências: Toda a música, desde a Idade Média até à Idade Digital.

PLASTIC PEOPLE (Checoslováquia): Midnight Mouse
Também conhecidos pelo nome completo Plastic People of the Universe. Já existem e gravam discos há uns bons aninhos. Politicamente empenhados e praticantes de um «jazz» híbrido construído à base dos sopros e de um velhinho sintetizador analógico «Korg». Superam todas as limitações técnicas com a originalidade dos arranjos, algures entre Carla Bley e os Henry Cow.
Instrumentação: bateria, trombone, baixo, vozes, sintetizador «Korg», violino e viola-de-arco eletrificados, guitarra, clarinete, clarinete baixo, flauta.
Referências: Fanfarras, música de feira, Carla Bley, Henry Cow.

KGA (URSS): ZGA
O vocábulo «ZGA» só existe na língua russa na forma negativa. Num sentido mais lato pode significar «ver». Os ZGA são niilistas até dizer chega, impenetráveis e incómodos. O álbum foi gravado ao vivo num apartamento na cidade de Riga e consta basicamente de ruído mais ou menos controlado com incursões na música dita industrial. Improvisações corrosivas e tortuosas levam a experimentação eletroacústica aos limites do intolerável.
Instrumentação: Clarinete, Ring Modulator, teclas, objetos de metal, percussão, baixo, bateria, vozes.
Influências assumidas: Biota/Mnemonists, Cassiber, John Zorn, Nurse With Wound, Henry Kaiser, John Cage, Ned Rothenberg, Luciano Berio.
Glasnost, Perestroika, Gorbachev, Vodka, até para a semana com os Kraftwerk.

Vários – “É Preciso Violentar O Sistema” (artigo de opinião | blitz | valores selados)

BLITZ 20 FEVEREIRO 1990 >> Valores Selados

O universo do Rock tem as suas mitologias bem demarcadas. Ao longo de quase 40 anos a indústria soube sempre absorver as inovações e a rebeldia pretensamente típicas do género, retendo apenas a sua imagem superficial, integrando-a e faturando à sua conta. Em Portugal somos mais aconchegados. Poucos arriscam sair dos círculos de amigalhaços. Rocker português sofre? Felizmente ainda há quem vá fazendo por isso…


«É PRECISO VIOLENTAR O SISTEMA»

A galeria de mitos fabricada pelo business, desde Presley até Ian Curtis dos Joy Division, passando por Hendrix, Jim Morrison ou Janis Joplin, tem como características comuns a morte e o excesso. O herói rocker é inseparável da sua condição de mártir. A fama, o dinheiro e o sucesso tornam-se demasiado pesados para serem suportados. O ego das estrelas é sempre extremamente frágil e complexo. No fundo são pessoas como nós só que mais sensíveis e vulneráveis.
Vão-se abaixo facilmente, afundados em terríveis dilemas existenciais. O seu estatuto de stars torna-se penoso. O sucesso é insuportável, a sua ausência também. O medo do palco transforma-se, com a experiência dos anos, em pânico. O talento passa a funcionar unicamente ao toque do álcool e das drogas.
A imagem pública sobrepõe-se à verdadeira personalidade. Tudo é agonia e sofrimento.
A indústria sofre em silêncio com a dor dos seus meninos de ouro e também em comovido silêncio vai fornecendo a farmacologia necessária e esfregando as mãos de contentamento. É um ciclo vicioso que desemboca na morte ou no abandono.
No nosso país de pequeninos são poucos os músicos que alcançaram o estatuto de mitos/mártires incompreendidos. O guitarrista Filipe Mendes, o Jimi Hendrix português, e mais recentemente António Variações são os dois únicos exemplos conhecidos. O primeiro nunca alcançou a merecida glória, o segundo passou de quase desprezado em vida para referência obrigatória para a nova geração de rockers, depois de morto. É triste, mas a coisa funciona mesmo assim.
Os nossos músicos não se arriscam muito. Morrer sim, talvez, mas muito devagarinho e de preferência só depois dos 90. Em vez de se afogarem em quantidades inimagináveis de substâncias proibidas caminhando rapidamente para a autodestruição, preferem ser empregados de escritório, bancários ou técnicos e computadores.
A máxima punk de que se é velho aos vinte anos não lhes diz nada. Em vez de se divertirem à grande em orgias com groupies apetitosas, casam e constituem família. Em vez de provocarem distúrbios na rua ou nos hotéis, serem presos por posse de droga ou destruírem em palco material do mais caro, preferem trabalhar e ser úteis à sociedade. Então essa rebeldia e espírito de transgressão? Que é feito da insolência e da provocação gratuita? Ou será que os nossos rockers são todos quarentões de barriguinha e bem instalados na vida?
Aos fins-de-semana, os nossos músicos rock tiram a máscara de cidadãos normais e cumpridores e trocam-na pela de estrelas do rock and roll. Mas porquê só aos fins-de-semana? Todos sabemos que o País fervilha de salas e de gente ávidas do bom velho compasso de 4/4. Não precisavam de se esconder por detrás de balcões de banco ou de escritório. Ou será que os nossos jovens rebeldes encontraram novas e mais subtis formas de subversão e contestação social? À fúria das guitarras elétricas, das calças justas e das letras intervencionistas, estilo «é preciso violentar o sistema», terão achado mais eficaz o desvio voluntário de um processo lançado nos labirintos de um arquivo ou a introdução de um vírus no computador? Não há dúvida que os tempos são outros?
Não se conhecem muitos casos apaixonantes ocorridos com músicos portugueses. Há o Jorge Palma que tocava no Metro, o António Manuel Ribeiro que levou com a casca de noz no olho e se casou, ou uma ou outra queda do palco. É pouco. A maior parte da vida do músico é passada a protestar: contra a falta de condições e de organização dos espetáculos ao vivo, o preço dos instrumentos musicais, a falta de um lugar para ensaiar sem incomodar os ouvidos dos vizinhos, a ausência de salas e de interesse das editoras. Uma vida de cão.
Os nossos músicos de rock dividem-se em três grupos distintos: o primeiro é o dos consagrados que subiram a pulso a escada do sucesso. É o caso dos UHF, GNR, Heróis do Mar ou dos Xutos e Pontapés. Ao fim de 10 anos de esforços e cedências conseguiram obter discos de prata e ouro, com vendas astronómicas na casa dos dois e três mil exemplares. Vão à televisão e enchem os arraiais de província. Ao fim de mais 10 anos arriscam o Coliseu. E ao fim de outros 10 começam a considerar a hipótese de abandonar os empregos seguros. Passam a vida à procura de projeção no estrangeiro e a afirmarem que «desta vez é que é», «o empresário interessa-se mesmo pela nossa música» e «estão reunidas as condições necessárias». O melhor que conseguem é ir tocar a Espanha, vá lá, com sorte, a França, perante emigrantes. No regresso contam que a Europa os adorou.
O segundo grupo é o dos desgraçados tesos, sem dinheiro sequer para comprarem os instrumentos. Procuram furar a todo o custo mas raramente o conseguem. Afirmam-se todos independentes e marginais mas à primeira oportunidade assinam por uma multinacional. A maioria não chega a gravar qualquer disco e mesmo esse vende-se pouco. Incluem-se neste grupo os incontáveis concorrentes aos concursos do Rock Rendez-Vous ou a massa amorfa das bandas de bailarico. Não cito nomes para não desmoralizar. Além de que a vida não é só música.
Por fim há os queridos da crítica, uns realmente bons outros nem tanto, que ou por terem verdadeiro talento ou boas amizades nos meios certos adquirem uma aura de prestígio e qualidade. Têm mais fama que proveito. É o caso dos realmente talentosos Mler Ife Dada, Sétima Legião, Madredeus, ou Nuno Canavarro, entre outros apenas preocupados com a qualidade da música que praticam. Tocam poucas vezes ao vivo mas não se ralam muito. Gravam bons discos mas as massas persistem em ignorá-los. São teimosos e ingénuos e pensam que a qualidade, a sinceridade e a honestidade de processos bastam para a obtenção de sucesso. Não bastam. Mas ainda bem que persistem na sua ingenuidade e teimosia.
O melhor do «rock português» não é rock. Às vezes é português…