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Madredeus – “Madredeus No Centro Cultural De Belém – Cerimónia Solene”

cultura >> domingo, 12.12.1993


Madredeus No Centro Cultural De Belém
Cerimónia Solene


A celebração do costume, em tom mais solene. O novo templo de Belém não permite brincadeiras e os Madredeus cumpriram a preceito o seu papel. Tudo muito sério e empertigado, com os temas inéditos a diluírem-se numa sonoridade que ameaça provocar saturação. Eles prometem novos voos.



O Centro Cultural de Belém(CCB) intimida. Nos concertos do CCB, a música é por norma bem comportada, engravatada. Uma ocasião solene em que os artistas se vêem na obrigação de provar qualquer coisa. Foi assim com Vitorino, voltou a sê-lo com os Madredeus, nas noites de sexta e sábado no grande auditório. Entra-se no CCB como numa catedral. Com os Jerónimos de um lado e os esgotos do Tejo do outro é difícil não ver no CCB uma nova escola de descobridores. Uma pessoa entra anónima no CCB e sai de lá com apelido Gama ou Cabral.
Os Madredeus assinaram no templo, pejado de fiéis encalorados pelo ar condicionado ligado no máximo, mais um capítulo da história trágico-marítima da Pop nacional. Em termos de comunicação com o público não se pode dizer que tenham sido efusivos, limitando-se Teresa Salgueiro a um “boa-noite a todos” no princípio e um “obrigado a todos” no fim. Um dos pontos fortes foi a iluminação, entregue em mãos de mestre. Cada canção vestiu-se com uma pequena cenografia de luz, um quadro fugaz de reflexos e fulgores coloridos que ora aprisionavam a figura de Teresa Salgueiro numa pirâmide de raios brancos, ora faiscavam em relâmpagos laranja (jugo não ter havido aqui quaisquer intentos eleitoralistas), como aconteceu no instrumental “Slostício”.
Descontando uma certa ointoxicação provocada pela sobrexposição a temas como “O pastor”, “O ladrão” e “Vaca de Fogo”, que ficamos a trautear interiormente mesmo contra-vontade, numa relação insidiosa que ameaça transformar-se de amor em ódio, o concerto dos Madredeus pode considerar-se um êxito. Teresa Salgueiro, sem estar nos seus melhores dias (diga-se que os piores dias dela equivalem aos melhores para a maioria das outras cantoras), rubricou apesar de tudo momentos de excepção, ao longo da segunda parte do concerto, em “Maio maduro Maio” – versão do tema de José Afonso que integra o álbum de homenagem a este autor a publicar em breve – “Os senhores da guerra”, um inédito escrito por Francisco Ribeiro e, como vai sendo hábito, no ascético “O menino”, tema emblemático da religiosidade que ilumina o coração dos Madredeus, apresentado já em período de “encores”.
“Matinal” foi outro momento alto, com o tradicional dueto vocal de Teresa Salgueiro e Francisco Ribeiro (repetido em “O ladrão”) que cada vez mais privilegia as acentuações étnicas do canto. Idem para o instrumental “Açores” no qual ficou patente a interligação perfeita entre as guitarras de Pedro Ayres e José Peixoto.
Em conclusão: mais um triunfo para os Madredeus e alguns indícios de saturação. A banda soube criar um som original, certo, mas tem sentido dificuldades em renová-lo, ficando a pairar a ameaça de poder ruir sobre si próprio. Será mesmo necessário que os instrumentos (salvo honrosas excepções) toquem sempre todos ao mesmo tempo? Por que não explorar combinações parciais, criar novos espaços de silêncio, diversificar o leque tímbrico dos arranjos? Esperemos pelo novo álbum e pelas mudanças prometidas, com John Cale e Steve Hillage na agenda dos participantes. Porque se é verdade que por enquanto as pessoas gostam, também não é menos verdade que essas mesmas pessoas se saturam. Não há ovelhas que resistam a pastar sempre a mesma erva, pormelhor que seja o pastor.

Vários (Ron Kavana, Xutos & Pontapés, Madredeus) – “Comunistas Celebram Na Atalaia – Os Dois Rostos De Uma Festa” (reportagem)

cultura >> segunda-feira, 06.09.1993


Comunistas Celebram Na Atalaia
Os Dois Rostos De Uma Festa


De um dia para o outro, pode-se mudar a fisionomia de uma festa. Entre o incómodo e o prazer, nem a música escapou à dialéctica dos contrastes. Ron Kavana abriu as portas do céu. Assim se vê a força do PC.

Inferno e céu, por esta ordem, aconteceram no sábado e no domingo a 17ª Festa do “Avante!”, a acusar cada vez mais sinais evidentes de um gigantismo incontrolado, já que a população continua a acorrer em número impressionante a este certame que o Partido Comunista Português organiza anualmente. O que é uma foice de dois gumes, uma vez que as infra-estruturas existentes, acabam por não resistir ao dilúvio e aos estragos provocados pelas massas. Assim aconteceu mais uma vez, mas só no sábado. Um inferno. O inferno de Dante, comparado com o inferno do “Avante!”, é um jardim no Pólo Norte.

Uma Estação No Inferno

Chegava-se lá a pé, de carro ou de camioneta, após bichas intermináveis que começavam logo à entrada da ponte, para quem vinha de Lisboa. Na altura, o facto causou alguma irritação. A lentidão, o calor, a inalação do fumo dos escapes, tudo parecia contriba infernizar a vida, ainda antes de chegarmos ao teatro das operações. Puro engano. Compreendemos depois tratar-se de um plano previamente traçado, com o objectivo de chamar-nos a atenção para a beleza natural do eixo Almada-Fogueteiro-Atalaia.
Mostrada a tradicional EP, entrámos no santuário. É preciso confessar que a primeira visão que dele tivemos foi do tipo das que durante a Renascença assombraram a pintura de Hyeronimus Bosch. Um mar compacto de gente, de onde emergia todo o tipo de alucinações com formato humano, engoliu-nos de imediato. Adiante a questão dos sanitários sem água – um bem que no passado não soubemos entender. Até porque a água, se virmos, bem não é precisa para nada numa festa com estas características. Pode-se muito bem lavar as mãos com cerveja ou mesmo vinho, excluindo oo tinto carrascão.
Relva, houve sim senhor, embora não resistisse muito tempo à sanha esmagadora dos pés assassinos. Chegou, no entanto, para pôr em respeito a terra, mantendo-se no lugar que lhe compete, junto ao chão.
Tentámos a música. No palco grande 25 de Abril, com bom som, boas luzes, e pouco tempo de intervalo entre cada actuação, o que fez com que o horário se cumprisse sem grandes alterações em relação ao previsto. Rock duro, boa presença e muita energia foram os ingredientes trazidos pelos Xutos & Pontapés, num espectáculo cujas características casam bem com o ambiente da festa do “Avante!”. Seguiram-se os Sitiados, na mesma linha populista que lhes granjeou o triunfo no ano passado. Desta feita não resultou da mesma maneira porque a inovação foi nula, com as mesmas canções, as mesmas palavras de apresentação dos músicos no final (o acordeão mágico de Sandra Baptista, a bateria atyómica, etc.,) e a previsível sequência de “encores”, com a “A cabana do pai Tomás”), um tema de António Mafra (“a melhor banda do Porto”) e o hino “Esta vida de marinheiro”.
Também os Madredeus apresentaram o reportório do costume, sendo a única novidade a presença de José Peixoto na guitarra, que há poucos meses substitui o fundador teórico da banda, Pedro Ayres de Magalhães. Música de introspecção que o público, excitado, respeitou, até à conclusão, em tom festivo, com “O Pastor”. A fechar a noite os escoceses Wolfstone desiludiram. Folk rock sem imaginação, muito sdécibeis a disfarçar os poucos requisitos técnicos dos executantes e um lote de canções e instrumentais revivalistas, no mau sentido (cópia de formas, nula assimilação de uma estética que deu frutos no início dos anos 70) pôs um ponto final sem glória num dia em que Rimbaud não desdenharia de incluir nas suas alucinações. Adiado para o dia seguinte ficou o espectáculo de “rap” com bandas nacionais, devido à falta de condições técnicas alegadas pelos músicos.

Kavana No Céu

Domingo abriram-se as portas do céu. Menos, bastante menos gente, transformou o recinto por completo, tornado-o num local quase aprazível.
Mais espaço, mais ar, circulação livre em todos os sentidos, restaurantes disponíveis e até, “hélas”, a água que voltou às torneiras dos sanitários, mudaram o rosto da festa para qualquer coisa de muito melhor onde o prazer se instalou pela primeira vez.
No 25 de Abril a banda do irlandês (e comunista, não se furtou a gritar um “Viva o Partido Comunista Português!”) Ron Kavana assinou uma actuação inesquecível, mostrando que a electricidade e a música tradicional não são incompatíveis quando resultam de um trabalho de profundidade.
O público entusiasmou-se, os músicos deixaram-se empolgar e tocaram cada vez mais rápido e melhor – excelenete Kavana, no bandolim electrificado, e a sua mulher Miriam Vandenbosch na rabeca. Pena não se ter ouvido melhor o tocador de “uillean pipes” – o público por sua vez começou a delirar, e aos poucos o frenesim instalou-se: dança colectiva e incontrolável, alegria esfuziante em cima e em frente do palco, ritual de comunicação dionisíaca que atingiu o auge com a invasão pacífica de centenas de jovens que empunhavam bandeiras vermelhas do partido, recém-chegados para assistir ao comício que se desenrolaria a seguir, com a presença de Álvaro Cunhal.
A música fechou em apoteose, aos gritos de “Assim se vê a força do PC!”. Cavaco e o PSD que se acautelem. O perigo vem da Irlanda… (Ver pág. 4.)

Madredeus – “Os Madredeus No Coliseu Dos Recreios, Em Lisboa – Canções Do Quinto Império” (concerto)

Secção Cultura Quinta-Feira, 02.05.1991


Os Madredeus No Coliseu Dos Recreios, Em Lisboa
Canções Do Quinto Império


Para os Madredeus foi a consagração. Para os milhares de pessoas que encheram o Coliseu, a oportunidade de reencontro com uma música que aprenderam a amar. Teresa Salgueiro cantou como só os anjos sabem. Carlos Paredes juntou-se ao grupo para “mudar de vida” e seguir com “o navio” pela noite fora.



Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Noite de terça-feira. Sala a abarrotar de gente de todas as idades, ansiosa para assistir à prova de fogo da banda de Teresa Salgueiro, Pedro Ayres Magalhães, Rodrigo Leão, Francisco Ribeiro e Gabriel Gomes – os Madredeus – a meio de uma digressão iniciada em Março na cidade de Braga e que os levará, já dia 4, ao Porto, e, no Verão, aos Açores, Rio de Janeiro, Florença e Macau.
Sobre o palco, desenhado pelo escultor António Campos Rosado, uma escada e uma casa, pequena, sem paredes. Escada por onde se sobe para chegar ao céu. Cá em baixo, na terra, a casa, transparente, portuguesa, com certeza. Iluminação discreta e eficaz. A luz colorida contrastando com o negro das vestes dos músicos. Som límpido e potente, permitindo ouvir distintamente as palavras, projectando bem alto as notas e a clareza dos arranjos, na nave majestosa do Coliseu. Acontecimento único que a televisão, felizmente, gravou.

A Voz E A Guitarra

A sequência de canções seguiu o alinhamento prometido, a mostrar que nada foi deixado ao acaso. “Matinal”, “A Saudade”, “A Península”, “Cuidado” e o hino “O Ladrão”, num ápice, conquistaram o público. Ovações estrondosas, estrelinhas e isqueiros acesos, palmas de acompanhamento, a festa, enfim. E no entanto a música dos Madredeus sabe guardar um espaço de silêncio. As canções de Pedro Ayres são capazes de mover multidões ao mesmo tempo que parecem ter sido compostas especialmente para cada um de nós. Música fraterna e solidária. Esquece-se a vida a fingir, o ruído da turba, a espuma dos dias e fica-se sozinho. Na companhia extasiada de uma voz transcendente ao corpo feminino que a sustenta, a voar nas cadências, nossas desde sempre, de um violoncelo, um teclado, uma guitarra acústica e um acordeão. O uno e o múltiplo, juntos na mesma pessoa e na mesma música. “Existir” no Quinto-Império.
Quando Carlos Paredes, acompanhado por Luísa Amaro, tímido como sempre e é característico da sua pessoa excepto na música que faz, subiu ao palco, sentiu-se no ar a emoção dos grandes momentos. Só, dobrado sobre o seu corpo verdadeiro – a guitarra – interpretou “Mudar de Vida”. A seguir, já acompanhado por todos os músicos da banda, improvisou ao sabor do “Canto de Embalar” (música sua, letra de Pedro Ayres) e de “O Navio”. Retirou-se debaixo de uma monstruosa salva de aplausos. Haveria de voltar. Antes do intervalo, a extroversão e alegria de “O pastor”, canção vivida pelo crítico de forma apocalíptica, rendido à força da música e ao magnetismo da multidão, enquanto um “arrumador de retardatários” lhe apontava um foco de lanterna aos olhos e berrava obscuras séries algébricas. Aos ouvidos aturdidos chegavam, incertas, as palavras do poema: “ao largo ainda arde a fila L, números 22 e 24, a barca da fantasia / e o meu sonho mostre-me os seus bilhetes por favor acaba tarde / acordar é o lugar ao lado que eu não queria”.
“As Ilhas dos Açores”, instrumental de colorações eruditas, abriu serenamente a segunda parte do espectáculo. Rui Machado, poeta açoriano, escreveu a propósito: “Na ilha o (deus do tempo dorme entre pedras e flores”. Ilhas dos Açores, do Espírito Santo, Ilha dos Amores. Depois, sempre em crescendo, as canções guardadas no coração: “Vontade de Mudar”, a suite “A Sombra” / “Solstício” (instrumental com novo e inspirado arranjo) / “Estrada do monte” e finalmente a explosão da “Vaca de Fogo” – vaca deleite.

Interpretação Sublime

Carlos Paredes regressou no “encore”, para a segunda interpretação da noite de “As Ilhas dos Açores”, fazendo contrastar o tom arrebatado e as cicatrizes da sua guitarra com a fluência e o vigor jovial dos outros instrumentos. Já no segundo regresso ao palco, Teresa Salgueiro, iluminada por um foco intenso de luz branca e bem apoiada pela guitarra de Pedro Ayres e o violoncelo de Francisco Ribeiro, interpretou de forma sublime, “O Menino” – momento de pura religiosidade, com a multidão, suspensa do canto de uma mulher, escutando-se e vivendo-se a si própria no corpo crístico do infante.
“Mindelo” e de novo “Vaca de Fogo” fecharam em apoteose um concerto inesquecível. Depois da noite de anteontem a música portuguesa ficou um pouco mais próxima de Deus.