Fred Frith – “O Grande Explorador” (valores selados | blitz | artigo de opinião | dossier)

BLITZ 19 DEZEMBRO 1989 >> Valores Selados


FRED FRITH

O GRANDE EXPLORADOR


Fred Frith é indiscutivelmente uma das personalidades mais marcantes e fascinantes da música atual. Os seus múltiplos talentos de instrumentista, compositor e produtor estendem-se praticamente a todas as áreas.

«The Top Of His Head», publicado muito recentemente pela Made to Measure, confirma a sua permanente capacidade de inovar e de nos espantar. Vale a pena arriscar a sua audição. Falo para os ignorantes, é claro, que os outros já adquiriram de certeza pelo menos cinco exemplares do disco. «Quem é Fred Frith?» perguntam os primeiros. Já explico.
Fred Frith é o homem com o dom da ubiquidade. Está em todas, como se costuma dizer. Não há músico ou grupo importante que não esteja de algum modo ligado ao seu nome. Senão, vejamos a lista: como membro em «full-time» fez parte dos Henry Cow, Art Bears, Massacre, Skeleton Crew e Aksak Maboul. Como músico convidado ou/e produtor participou em discos de (por ordem alfabética): Bill Laswell, Bob Ostertag/Phil Minton, Brian Eno, Derek Bailey, Etron Fou Leloublan, Golden Palominos, Henry Kaiser, John Zorn, Lol Coxhill, Martin Bisi, Material, Negativland, Nicky Skopelitis, Orthotonics, Polka Dot Fire Brigade, René Lussier, Residents, Robert Wyatt, Swans, Tenko, Violent Femmes, Zeena Parkins e Zazou/Bikaye. Se souberem de mais, escrevam.



Juntem a isto uma intensa atividade ao vivo em tudo o que é sítio, integrado em obscuras «Big Bands» ou sozinho, entretido a atirar com objetos sortidos para cima da sua guitarra e perguntem: «Como é possível?» ou «E ainda gravou discos a solo?» É verdade. Gravou discos em seu próprio nome; e que discos!
No primeiro não arriscou muito. Chama-se «Guitar Solos» (74) e é isso mesmo. Só que os solos são de molde a colocá-lo imediatamente ao lado de Hendrix ou de Fripp, como um dos grandes, dos maiores inovadores nesse instrumento. A sua linguagem é única, desmultiplicando-se (e mesmo desdividindo-se) em complexidades harmónicas, rítmicas e tímbricas absolutamente assombrosas que vão das explosões atonais concretistas a um som límpido e cristalino que até parece o dos Shadows ou o Rui Veloso se tocasse harpa. Se me é permitida a comparação, Frith é o Miles Davis da guitarra.
Agora atenção: «Gravity» e «Speechless» (respetivamente de 80 e 81) são duas obras-primas da música desta década. Frith apelida-as de «música de dança» mas está a brincar. Ou se calhar não. O que é a dança? Segundo Curt Sachs, na contracapa de «Gravity», dança «é a vitória sobre a gravidade, sobre tudo o que pesa e oprime, transformação do corpo em espírito, a elevação da criatura ao criador, a imersão no infinito, o divino», ao que Frith logo acrescenta: «O que pode não ter nada a ver com este disco mas é um bom ponto de partida.»



Nestes dois discos, além da guitarra, do violino e do xilofone (os seus instrumentos habituais), Frith encarrega-se ainda das percussões, teclados e manipulações eletrónicas. Em «Gravity» participam os membros do coletivo sueco Samla Mammas e os americanos Muffins. Em «Speechless» são os franceses Etron Fou Leloublan além dos seus parceiros nos Massacre, Fred Maher e Bill Laswell.
É difícil definir a sua música. Música universal, talvez? Música das músicas? «World Music» traficada? O melhor é ouvir. Há tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo que nos perdemos. Felizmente. O som exótico de steel bands confunde-se com o folclore dos Balcãs. As ambiências industriais cruzam-se e misturam-se com fragmentos de gaitas-de-foles e solos de guitarra gravados de trás para a frente e outra vez para trás e eu sei lá, é uma orgia onde se abraçam múltiplas referências e tradições. A música do Terceiro Mundo (tão cara ao músico) é a solução? Ou do quarto, ou do quinto?
«Live in Japan» (82, em dois volumes) apresenta-nos a sua faceta de improvisador, entre o genial e o chato. «Cheap At Half The Price» (de 83, para a Ralph Records, a mesma dos Residents) é uma extravagância construída à base de canções que lembram por vezes os primeiros discos de Brian Eno, outras, o célebre quarteto(?) incógnito. Coincidência ou influência?…
«The Technology Of Tears» é um duplo do ano passado composto para peças de bailado. Depuração formal de um estilo, testemunho requintado de um universo musical ímpar. Frith revela a melodia oculta na dissonância e as descontinuidades de todas as melodias, quando dissecadas ao microscópio. Operação difícil mas de resultados fascinantes.
«The Top Of His Head», agora importado pela Contraverso, é uma surpresa a vários níveis. Começando pela própria editora, a belga Made To Measure, pelo menos aparentemente afastada das anteriores propostas do músico. Em «The Top…» Fred Frith como que adapta os seus próprios métodos às estratégias e pressupostos estéticos daquela editora. O som e a embalagem ostentam o habitual pendor classizante, mas com o fundador dos Henry Cow empenhado em dinamitar pela ironia e por dentro essa mesma imagem. Atente-se, por exemplo, no solo redundante de guitarra de «Hold On Hold» ou na canção «This Old Earth», interpretada por Jane Siberry. Em ambos os casos é rompido o tom sério presente em quase todo o disco. Frith nunca se satisfaz em permanecer durante muito tempo no mesmo lugar. Quando julgamos reconhecer uma entoação mais familiar ou uma referência a obras anteriores somos imediatamente despistados por constantes fugas para a frente. A sequência lógica (se é que é lógica) com que se encadeiam os diversos temas é praticamente indecifrável. Talvez vendo o filme. Sim, é verdade, já me esquecia de referir que «The Top Of His Head» é a banda sonora de um filme de Peter Mettler. Estranho filme deve ser, a avaliar pelos sons que o acompanham.
«The Top Of His Head» é um disco que desconcertará os mais acomodados, sem ser dos de mais difícil abordagem de toda a colecção MTM. Por vezes há aproximações à música de Benjamin Lew, como em «The Way You Look Tonight» e mais frequentemente aos mundos desse outro excêntrico que é Peter Principle, dos álbuns «Sedimental Journey» e, sobretudo, «Tone Poems».
«New Music»? Mas se Fred Frith já a faz de há dezassete anos para cá quando os Henry Cow chocaram com os preconceitos da época. As pessoas é que não têm reparado…

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