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Vários (Grupo de Tocadores de Pedrinhas de Arronches, Grupo de Cantareiras da A. X. Xiradela de Arteixo, Júlio Pereira, Yulduz Usmanova, Cécile Kayirebwa, Xarabal, Art’ Imagem, Cantareiras de Xiradela, Tanxarina – “VI Cantigas do Maio Animam O Seixal – Sermão Às Pedras E Aos Peixes”

pop rock >> quarta-feira >> 17.05.1995


VI Cantigas do Maio Animam O Seixal
Sermão Às Pedras E Aos Peixes


Maio volta a recuperar a memória e o mote de José Afonso, no Seixal. Nos próximos dois fins-de-semana vão decorrer nesta vila a sul do Tejo as VI Cantigas do Maio, este ano com um programa de música tradicional mais recheado do que nunca. A cantora ruandesa Cecile Kayirebwa, Yulduz Usmanova, do Usbequistão, e os irlandeses Slua Nua são alguns dos nomes em cartaz. A organização está a cargo da Associação José Afonso e da Câmara Municipal do Seixal.
A abrir está a banda de gaitas galegas, Xarabal, formação saída das falanges da mítica Obradoiro – Escola de Instrumentos Musicais populares galegos da Universidade Popular de Vigo. Sob a direcção de Antón Corral, este agrupamento tem como objectivo o desenvolvimento de novas técnicas de utilização e integração instrumental da gaita-de-foles galega, ensaiando vários tipos de afinação e junções com outros instrumentos, nomeadamente as percussões, que nos Xarabal diferem do que é habitual ouvir na música tradicional da Galiza. Uma forma de preservação e desenvolvimento da música desta região, actualmente a atravessar um período de alguma indefinição, como atesta a própria escolha do nome do grupo que significa “agrupamento de peixes face ao perigo”.
Da Galiza vem também o Grupo de Cantareiras da A. X. Xiradela da Arteixo, associação criada em 1982, composta actualmente por oito “xovens” raparigas que se dedicam à recolha e investigação do património musical da Galiza, numa linha de máxima fidelidade. Folia, cor e movimento andarão à solta nas ruas com o grupo Tanxarina, ainda da Galiza, que apresentará o espectáculo “Ah, ah, ah, estamos monstros de risa”. Muita curiosidade rodeia a apresentação do Grupo de tocadores de pedrinhas de Arronches, uma pequena localidade nos arredores de Portalegre, Joaquim Miranda, de 78 anos, Carlos Maurício, de 72, e Manuel Fonseca, de 51, tocam pedras que apanham no leito do rio Caia, fazendo entrechcar o mar e a terra, num contacto primevo e ritual do homem com a Natureza.
“No Verão, quando o rio está seco, chegamos a andar quilómetros para encontrar uma pedra de jeito”, dizem.
Sabedoria secreta da forma que têm os sons.
Sabedoria tantas vezes aprendida com a dor, no choque da pedra contra a carne. “Eu cá não me dói nada. Sou capaz de tocar um dia inteiro”, diz Joaquim Miranda. O princípio do mundo.
Do lado português, além das “pedras” de Arronches, do grupo de teatro português Art’ Imagem e do grupo de Zés-pereiras Os Completos, vão estar presentes os Realejo, um grupo em ascenção imparável, com as suas “sanfonias”, e um Júlio Pereira “acústico”, que depois da boa companhia dos Chieftains, nas gravações do próximo álbum desta banda irlandesa, terá a não menos boa companhia de José Moz Carrapa e Minela.
Presença forte no festival prevê-se que seja a dos irlandeses Slua Nua (“nova reunião” ou “do velho para o novo”), onde pontifica a dupla Joe McKenna, nas “uillean pipes”, “tin whistle” e acordeão, e Antoinette McKenna, na harpa céltica. Aconselha-se a audição prévia do primeiro álbum (em cuja primeira edição, entretanto alterada, o nome do grupo aparece como Sean Nua), com o selo Shanachie e distribuição MC – Mundo da Canção, de “The Open Door”, ou, com maior veemência, um trabalho anterior, por Joe & Antoinette McKenna, de título “Magenta Music”, gravado para a mesma editora. Surpresa poderá ser a prestação da cantora do Usbequistão (antiga república soviética da Ásia Central), Yulduz Usmanova. O seu álbum mais recente, “Jannona” – uma fusão tecno-orientalista de qualidade duvidos – não dá umaideia fiel das reais capacidades desta senhora cuja apresentação, há dois anos, no Festival World Roots de Amsterdão causou algum furor. Com ela vêm duas dançarinas e um grupo de seis instrumentistas num espectáculo que junta os estilos de música e dança oriental e ocidental.
Cecile Kayirebwa, a cabeça de cartaz, virá acompanhada da sua banda e bailarinas. Capa da “Folk Roots” em Julho do ano passado, Cécile fundou, no início dos anos 60, o Círculo de dança e Música do Ruanda, levando a cabo, de então para cá, uma investigação das culturas das três etnias do páis, “hútu”, “tutsi” e “twa”. Mais tarde, já no final dos anos 70, integrou o grupo cultural Inyange (“ave branca”), iniciando então uma intensa actividade de gravações, concertos e pesquisa etnomusicológica. Nos anos 80, fez parte do grupo Bula Sangoma, radicado na Bélgica, onde vive actualmente. O seu último álbum, “Rwanda” – a merecer distribuição nacional urgente -, situa-se numa área vocal e instrumental pouco explorada, onde vozes de fadas de pele negra pairam sobre o som do “inanga” (cítara ruandesa) e outros instrumentos de sonoridade bizarra.



Grupo de Gaitas Xarabal
Grupo de Tocadores de Pedrinhas de Arronches
Grupo de Cantareiras da A. X. Xiradela de Arteixo
Fórum Cultural, 19/5, 22h

Realejo
Júlio Pereira
Largo da Igreja, 20/5, 22h

Slua Nua
Yulduz Usmanova
Largo da Igreja, 26/5, 22h
Cécile Kayirebwa
Largo da Igreja, 27/5, 22h; 29/5, Teatro S. Luiz, Lisboa, 22h

Espectáculos de rua, na Praça da República, pelos Xarabal (dia 19, 20h), Art’ Imagem (dia 20, 18h), Cantareiras de Xiradela (dia 20, 20h), e Tanxarina (dia 27, 17h, dia 28, 11h30)

Entradas livres em todos os espectáculos, excepto no dia 29, no S. Luiz.
As entradas pra o espectáculo do dia 19, no Fórum Cultural, embora gratuitas, deverão ser reservadas e levantadas até às 21h do próprio dia.

Vicente Amigo – “Vicente Amigo Voa No CCB – Nas Asas Do Desejo”

cultura >> sábado, 13.05.1995


Vicente Amigo Voa No CCB
Nas Asas Do Desejo


ERA INEVITÁVEL, tão inevitável como uma fogueira que arde ou a água de um rio que corre para o mar. Vicente Amigo é um visitante assíduo do nosso país e de todas as vezes o flamenco na sua guitarra se fez um pouco mais novo. Na primeira das suas duas apresentações no Centro Cultural de Belém (CCB) – a terceira e última terá lugar hoje, no Europarque, em Vila da Feira, pelas 22h -, na noite de quinta-feira, perante uma plateia numerosa, o guitarrista andaluz deu uma vez mais razão a outro visitante ilustre da guitarra que se encontra entre nós, Pat Metheny, quando diz que Amigo é o maior guitarrista do mundo. Não será bem assim, mas é quase.
No CCB voltaram a ficar patentes as qualidades que distinguem um bom executante de um executante de excepção. Vicente Amigo é um “virtuose” mas isso é condição necessária para qualquer músico de flamenco que se preze. Os dois temas iniciais, em solo absoluto, puseram em relevo esta evidência. Mas o músico, mais do que um simples prestidigitador, domina a guitarra como um domador a fera. Arrisca movimentos, notas e cadências no limite do possível, pondo arte e coração nesse jogo contra o tempo e o silêncio. Uma “soleá” arrebatadora deixou ver os contornos do “duende”, esse demónio santo que dita as leis da alma da Andaluzia profunda. Mas – pois há um “mas – Vicente Amigo não tem por enquanto a consciência dos abismos nem a visão da noite que enobrecem e escurecem a música do seu compatriota Paco de Lucia.
Em Vicente Amigo o flamenco voa. A música desce do céu para as cordas da guitarra. Em Paco de Lucia, ou num telúrico mais radical como Paco el Gastor, o “duende” rompe das profundezas da terra, abalando montanhas, rasgando a alma com suspiros de dor e de paixão. Alma-lama, barro primordial do Sul abrasivo da Península. Vicente, como ele próprio afirmou em entrevista ao PÚBLICO, publicada ontem, gosta de rir, de se entregar a um riso forte, solar.
Não peçam a quem ri que suporte uma cruz nem que se enterre ou desterre no abissal.
Com ele voaram no CCB um segundo guitarrista, Javier Munoz, dois percussionistas, Patricio Camara e Tino de Geraldo, uma cantora, Eva Duran, e um jovem bailarino de quinze anos, Eduardo Lozano. Certeiros estiveram os dois homens do ritmo, nas típicas palmas que se completam nos contratempos e no batucar nas caixas. Tino de Geraldo tocou várias vezes umas “tablas” indianas, não sabemos se mal ou bem, porque praticamente não se ouviram. Não que o som não estivesse excelente – só que alguém se esqueceu de levantar o volume às percussões e à voz, enquanto a guitarra de Amigo, se fez ouvir com uma limpidez e equilíbrio tonal absolutos.
Deu, todavia, para perceber que Eva Duran, embora animada e enquadrada na música, tem certa falta de peito, metaforicamente falando. Faltou pujança ao canto, faltou loucura, faltou sangue, faltou lua. Bonita foi, e voou.
Como voou pelo estrado e pelo palco fora o jovem Eduardo Lozano, prodígio de pés. Eduardo acelerou na dança, fez a sua faena imaginária, bateu compassos a primor, troçou da gravidade. Mas de novo sentimos a vontade e o desejo de mais chão, de raça mais sofrida de sentir. Quinze anos dão para voar, não para cravar farpas. Sempre o voo, sempre um som muito alto, sem queimar, a darem a cor e o tom predominantes de um espectáculo que se elevou a grande altitude.
O flamenco é elevação, certo, mas é também paixão insatisfeita, fúria, solidão. Sentiu-se, entendeu-se isto, do alto. A música de Vicente Amigo tem asas.

Vicente Amigo – “Vicente Amigo Em Mini-Digressão Portuguesa – ‘Quando O ‘Duende’ Me Toca, Sinto-me Um Rei!'” (entrevista)

cultura >> sexta-feira, 12.05.1995


Vicente Amigo Em Mini-Digressão Portuguesa
“Quando O ‘Duende’ Me Toca, Sinto-me Um Rei!”


É o artista estrangeiro que mais vezes tocou em Portugal. Se não estamos em erro, esta é a décima visita de Vicente Amigo ao nosso país. Existem elos de amizade fortes entre nós e este guitarrista de 28 anos que está a revolucionar o flamenco e a dar novas respostas ao sopro do “duende”.



Depois de uma primeira actuação ontem no CCB, o espanhol Vicente Amigo, acompanhado pela sua banda e um bailarino, volta a actuar hoje, pelas 22h, no mesmo local, terminando mais esta mini-digressão portuguesa, amanhã, à mesma hora, no Europarque, em Vila da Feira.
PÚBLICO – O seu primeiro mestre de guitarra foi Juan Munoz. Que tipo de ensinamentos recebeu? Diz-se que no flamenco há segredos que se transmitem de geração em geração…
VICENTE AMIGO – Não sei… não creio… Acredito simplesmente que, quando se chega a um determinado nível, cada um descobre o seu próprio segredo. Ele ensinou-me apenas a técnica básica do flamenco e os seus ritmos.
P. – Quando sentiu pela primeira vez o “duende”?
R. – Senti-o mesmo antes de tocar guitarra, a escutar Paco de Lucia, quando era pequeno.
P. – Consegue definir essa experiência?
R. – O que senti, senti-o porque era algo que me estava a ser enviado, a iniciativa não foi minha. Quando o “duende” me toca, esqueço-me de tudo, das pessoas, sinto-me como um rei. Nesses momentos torna-se muito claro para mim que o que estou a tocar é muito especial.
P. – O “duende” toca-o sempre que actua ao vivo?
R. – Muitas vezes…
P. – E das vezes que não?
R. – Arranjo as coisas de maneira a que ele chegue… Concentro-me até que o contacto se produza.
P. – O seu nome anda geralmente associado ao de Paco de Lucia, devido a alegadas ligações de ambos com o jazz…
R. – Não faço fusões com o jazz. O Paco, sim, a sua música enriqueceu-se com o contacto com os músicos de jazz, assim como eles se enriqueceram ao tocarem com ele. Gostaria um dia de poder fazer o mesmo. Toquei uma vez em França com o Al di Meola e o John McLaughlin, mas não a sua música, apenas uma rumba sobre a qual improvisámos os três. Não se pode considerar uma fusão de músicas, mas apenas de músicos.
P. – Dentro do flamenco, há algum género pelo qual sinta alguma predilecção? A “buleria”, talvez?…
R. – Gosto muito da “buleria”, como gosto dos temas mais livres, em termos de ritmo. Penso que todas as coisas têm o seu ritmo. Até a própria liberdade…
P. – Em Espanha, é mais conhecido nos meios do flamenco ou nas camadas de público mais generalistas?
R. – Os mais novos, que ouvem rock ‘n’ rol ouvem-me também. Não só a mim, mas ao flamenco em geral. Isso agrada-me. É uma prova de que o flamenco está a atrair muita gente, não só os velhos apreciadores. Estão a abrir-se novas portas.
P. – Gostava de ser uma estrela de rock?
R. – Não. Gosto é de viver bem, com aquilo que tenho. Não sei se o estatuto de estrela liga comigo. Ou se liga, é a um nível subconsciente. Tenho muito medo. Como estou agora já tenho imensa responsabilidade. Se fosse uma estrela teria muito mais.
P. – Que opinião têm de si os puristas do flamenco?
R. – Há alguns que me criticam, mas de um modo geral respeitam-me e ajudam-me com as suas críticas. Não se atiram a mim a matar, o que é lógico, porque no fim de contas trata-se de flamenco, digam eles o que disserem. Sei de flamenco tanto como eles.
P. – O que pensa de grupos ligeiros como os Gypsy Kings ou os Jaleo?
R. – Acho bem que existam porque há muita gente que está longe do flamenco e deste modo pode ficar mais perto. A música que esses grupos fazem recorda o flamenco mas não é flamenco puro. Serve igualmente para abrir portas.
P. – E de um “revolucionário”, embora veterano, da guitarra, como Paco el Gastor, acompanhante habitual do cantor El Cabrero?
R. – Paco é um acompanhante do canto… é raro tocar a solo. Tem um estilo muito próprio.
P. – No seu caso, gosta de desempenhar a função de acompanhante?
R. – Já acompanhei Camerón de la Isla que, para mim, era o flamenco em pessoa. Também já toquei com Enrique Morente, Carmen Linares e El Pele, que marcou uma forma de cantar flamenco diferente de tudo o que se fazia até então.
P. – Porque é que aceitou tocar nos discos de artistas portugueses como Paulo de Carvalho e GNR?
R. – Porque não? Paulo de Carvalho, sou amigo dele. Com os GNR limitei-me a tocar um pouco de flamenco. Em Espanha também já trabalhei com gente que não tem a ver com o flamenco, como Miguel Bosé.
P. – Essa disponibilidade não é muito comum nos músicos de flamenco…
R. – Seja qual for, nunca toco rock ou qualquer outro tipo de música. É sempre flamenco. Há quem ache que para soar flamenco basta tocar duas notas numa guitarra espanhola. Por isso tenho algumas dúvidas em relação a estes convites. É sempre uma aventura e por vezes os resultados são frustrantes. Apenas toco flamenco, mais nada. Se alguma vez alguém me ensinar a tocar outra coisa qualquer… Tocar agora rock, por exemplo, seria romper de forma muito brusca. Mas gostava de aprender música brasileira. Ou fado, se me ensinarem… É preciso tempo para nos sentirmos confortáveis a fazer qualquer tipo de música. Há guitarristas de flamenco que dizem que sabem tocar jazz apenas porque um amigo que é músico de jazz lhes ensinou três acordes e umas harmonias de jazz…
P. – O que representa para si o flamenco?
R. – O flamenco é algo que existe em mim, uma forma de expressar os meus sentimentos, a minha maneira de ser. É como um fogo. É uma música profunda, potente, espiritual. Tem tristeza, tem raiva, tem doçura, tem alegria. Gosto de rir. Rir é uma das melhores coisas do mundo. Rir muito, e de uma maneira forte. Não sei se o flamenco representa a forma de ser mais profunda de Espanha, ou a sua dor mais profunda. Quando se tem uma dor de dentes, sente-se igualmente uma dor profunda…