Como de costume, as vozes femininas búlgaras falaram com Deus. Mas poucas vezes, como aconteceu domingo à noite na Sociedade Recreativa União Seixalense, essa interpelação da divindade terá sido tão encalorada. A falta de ventilação e a aglomeração de público numa sala pequena provocaram o sufoco num concerto em que também o Grupo de Cantares de Manhouce suou para chegar ao céu.
Estava previsto que o concerto decorresse no largo da igreja mas o medo da chuva manifestado oela organização do Festival Cantigas do Maio deslocou-o para um recinto fechado. Escolhida como alternativa, a Sociedade Recreativa União Seixalense foi pequena para acolher as muitas centenas de pessoas que vinham desejosas de participar na liturgia. Sala à cunha, deixando de forma uma pequena multidão que lutava para conseguir entrar. Lá dentro o calor, juntamente com a excitação, transformaram rapidamente a sala numa estufa. Nós, que perdêramos algum tempo até descobrirmos o novo local, desesperávamos no “hall” de entrada, hesitantes entre pedir licença e passar à frente de todos ou tentar arrombar à bruta a barreira humana que tapava a escada de acesso. Quando já tomávamos balanço aconteceu o primeiro milagre. Salvos pela organização que nos disponibilizou um lugar junto ao palco, a dois passos das cantoras.
O calor entretanto tornava-se insuportável. Os elementos do Grupo de Manhouce e do Coro de Mulheres de Sófia suavam as estopinhas nos bastidores, ainda por cima apertadas como estavam nos respectivos trajes típicos da Beira-Alta e dos Balcãs que, como se sabe, não são propriamente regiões quentes. O segundo milagre aconteceu no preciso momento em que a voz de Isabel Silvestre começou a cantar. O ardor da interpretação sobrepôs-se ao calor ambiente. Refrigério pelo fogo.
Durante o intervalo, o equilíbrio psíquico dos presentes voltou a dar indícios de vacilar. Em desespero de causa alguém abriu umas janelas minúsculas junto ao tecto, gesto que foi acompanhado por um brado de alívio, mais por sugestão que por um refrescamento real da temperatura. Ao microfone pedia-se que as pessoas se apertassem um pouco mais de maneira a permitir a entrada dos masoquistas que ainda permaneciam no exterior. Tudo a postos, atrás do palco. O maestro Zdravko Mihaylov prescindiu de amplificação e optou por uma actuação ao natural. E que actuação, meu Deus! Vinte e quatro vozes de mulheres vestidas a preceito e em harmonia perfeita encheram a sala e a sauna transformou-se no céu. “Lale li si, zumbul li si” – canto de amor tradicional da Trácia, pátria de Orfeu – abriu o concerto, que o maestro foi explicando aos berros num francês macarrónico: “Viajámos mais de 4 mil quilómetros para estar aqui e cantar para vocês”.
Depois sucederam-se as maravilhas, entre o esplendor dos trajes que por várias vezes foram mudados ao longo da noite, as coreografias e, claro, as vozes de ouro do coro, impulsionadas para o alto, nos cantos populares ou nos cantos litúrgicos ortodoxos, pelas várias solistas: Liliana Galevska, Ianka taneva, Stoyana Lalova, Kalinka Valtcheva… “a capella” ou acompanhadas por um trio instrumental. Numa “suite” de melodias populares houve oportunidade para escutar os compassos “impossíveis” da música tradicional búlgara, interpretados com mestria no “kaval” (flauta pastoril), na “gadoulka” (espécie de rabeca) e na “Tamboura” (mescla de bandolim e o alaúde).
Hoje à noite acontecerá o terceiro milagre: as vozes búlgaras das mulheres de Sófia voltam a falar com Deus, desta feita num local mais apropriado, em espectáculo extra, com bilhetes a mil escudos, a realizar pelas 22h nos claustros do Mosteiro dos Jerónimos, integrado no Dia da Cultura da Bulgária. Faça chuva ou faça sol, garante a organização.
Arrumado entre o Intercéltico do Porto (Abril) e os Encontros Musicais da Tradição Europeia (Julho), as “Cantigas do Maio” do Seixal tornaram-se num dos mais importantes festivais anuais de música folk (ou “world”, se preferirem) que se realizam em Portugal. O programa da sua oitava edição – a decorrer em dois fins-de-semana, entre 22 e 31 de Maio – é o melhor de sempre. Se não, anotem: Conjunto de Cavaquinhos Henrique Lima Ribeiro (Portugal), Realejo (Portugal), Luis Pastor (Espanha), Vieja Trova Santiaguera (Cuba), Os Cempés (Galiza), João Afonso (Portugal), Uxia (Galiza), Bisserov Sisters (Bulgária), Purna das Baul (Índia), Kocani Orkestar (Macedónia), Tellu Virkkala (Finlândia) e Vasmalon (Hungria). Por ordem de entrada em cena.
Mas há ainda outros nomes que vão animar as ruas da partiga do Seixal: O Teatro Dom Roberto, Grupo de Bombos Almacena, Grupo de Cante Alentejano dos Mineiros de Aljustrel e Grupo de Bombos de Lavacolhos. Realejo e João Afonso são os mais ilustres representantes nacionais. O grupo de Coimbra, liderado pelo mestre construtor Fernando Meireles, regressa às “Cantigas”, enquanto prepara o novo álbum, sucessor de “Sanfonia”, de título “Cenários”. João Afonso mostrará ao vivo as influências africanas que marcam a sua estreia discográfica, “Missangas”.
Da Espanha (e Galiza…) chegam três nomes: Uxia, velha conhecida, voz dourada finalmente liberta dos Na Lua, Luis Pastor, com apontamentos do seu “Diário de Bordo”, e a banda de gaitas e “música de taberna”, Os Cempés. Ainda em espanhol, canta a Vieja Trova Santiaguera, um mito de Cuba, cuja média etária dos seus elementos ronda os 70 anos. O “son”, no máximo da sua respeitabilidade.
Forte, também, a presença balcânica. As Bisserov Sisters representam o melhor do canto tradicional búlgaro, como poderá certificar quem já ouviu o disco “Music from the Pirin Mountains” ou as ouviu ao vivo, integradas no coro de Vozes Búlgaras que passou pelos Jerónimos em 1993. Os Vasmalon são um dos principais grupos de recriação da música tradicional da Hungria. Também já estiveram em Portugal, numa edição dos “Encontros”. Música de diversão e transgressão, coroada pela voz magnífica de Éva Molnár. Disponível no nosso país, em disco, apenas em “Vasmalon II”. “Vasmalon III”, do ano passado, está ao mesmo nível e deverá aparecer na banca do festival. Menos familiar deverá soar a música cigana de metais dos Kocani Orkestar, oriundos da Macedónia. O álbum chama-se “A Gypsy Brass Band”. A consultar.
A Índia faz-se representar pela música da região de Bangala dos Purna das Baul (“bauls”, menestréis nómadas), formação da qual já recenseámos o álbum “Bauls of Bengal”. O novo, igualmente excelente, com selo Real World, tem por título “Songs of Love & Ecstasy”. Os amantes de Nusrat Fateh Ali Khan vão gostar. Todos os outros reconhecerão que não são só as “ragas” que fazem ascender a alma indiana.
Por fim, a Escandinávia, com uma formação vocal feminina finalndesa liderada por Tellu Virkkala, uma das duas cantoras que saiu dos Hedningarna, juntamente com Sanna Kurki-Suonio, que também faz parte do novo grupo. A formação completa-se com a notável Lisa Matveinen (ex-Tallari e Niekku), Anita Lehtola e Pia Rask (ex-Me Naiset). O álbum de estreia, “Suden Aika” (“O tempo do lobo”) recupera a tradição dos ancestrais poemas e canções finlandesas, com base no cancioneiro “Kalevala”, elaborado por Elias Lönnrot no século passado. À descoberta do “lobo que existe em toda a mulher” (atenção, Né Ladeiras…).
Razões mais do que suficientes para fazer do Seixal lugar de eleição do mês de Maio.
A oitava edição do festival Cantigas do Maio termina este fim de semana no Seixal. Em grande, depois de ter arrancado, a semana passada, com um programa dedicado às músicas de expressão latinas. Mas os cabeças de cartaz chegam agora: Vasmalom, Tellu Virkkala, Purna das Baul & Bapi, Bisserov Sisters e Kocani Orkestar.
Conquista pergaminhos, ano após ano, este festival que se realiza no Seixal, entre o Intercéltico do Porto e os Encontros, em memória a José Afonso. Coisa importante: Sente-se que tem mística, um ar próprio para respirar além dos sons. A zona antiga, ribeirinha, da vila, presta-se a isso. É lugar convidativo. Mais uma razão para o convívio em pleno com as músicas do mundo.
Inicia-se o percurso com as Bisserov Sisters, da Bulgária, que actuam amanhã, às 22h, no Fórum Cultural do Seixal. Antes, às 17h, 18h e 19h, há teatro de fantoches de luva (manuseados por Raul Constante Pereira), pelo Teatro Dom Roberto, na Praça dos Mártires da Liberdade. Leve os seus filhos para se divertirem juntos.
Sexta-feira, não falte aos concertos dos Purna das Baul & Bapi, de Bengala, Índia, e dos Kocani Orkestar, orquestra de metais cigana, da Macedónia. Por detrás do edifício da antiga fábrica de cortiça, Mundet, às 22h. Pode fazer os preparativos durante a tarde. Às 19h e 21h o Grupo de Bombos Almacena desfila pela rua Paiva Coelho. Pelas 20h o Grupo de Cante Alentejano dos Mineiros de Aljustrel eleva as vozes no mesmo local, seguindo até à Praça da República.
A companhia do Teatro Dom Roberto regressa na tarde de sábado, às mesmas horas e no mesmo local da véspera. Ainda de tarde pode assistir à actuação da Banda Plástica de Barcelos (com os seus 22 músicos vestidos como se fossem as célebres figuras de barro da região), na Praça da República, pelas 18h30, e na rua Paiva Coelho, pelas 21h. 20h é a hora marcada para o Seixal estremecer com o Grupo de Bombos de Lavacolhos, o mesmo acontecendo uma hora e meia mais tarde. Para terminar em beleza, nada melhor como dirigir-se, depois do jantar, às 22h, até à antiga fábrica Mundnet, para ouvir alguma da melhor música de raiz tradicional que se faz actualmente na Europa, através de Tellu Vikkala, uma das antigas vocalistas do fenómeno Hedningarna, agora numa aventura partilhada com outras duas ex-vocalistas deste grupo sueco, Sanna Kurki-Suonio e Anita Lehtola, Anna – Kaisa Liedes e Liisa Matveinen. O festival fecha no sábado, pelas 22h, na fábrica Mundnet, com os húngaros Vasmalom. Entre os sons do “cymbalon”, de uma gaita-de-foles ou de um “hitgardon”, nunca mais esquecer a voz de Éva Molnár. A entrada é livre em todos os espectáculos, excepto o das Bisserov Sisters, sábado, no Fórum Cultural.
O festival tem também para oferecer as Manifestações Paralelas: A exposição de cerâmica “7 Pecados e 7 Virtudes”, de Júlia Ramalho, uma intervenção de teatro de rua por alunos da Escola José Afonso, com orientação da Art’Imagem, e uma oficina de construção de cabeçudos para crianças orientada por Sabino Pires e Alfredo Teixeira. Pode ainda dar um passeio de barco varino ou num bote de fragata pela baía do Seixal. A organização das Cantigas do Maio cabe à Associação José Afonso em conjunto com a Câmara Municipal do Seixal. Apresentado o programa geral, vamos aos pormenores.
Irmãs, fanfarras e menestréis
As Bisserov Sisters, como o seu nome indica, são irmãs. Lyubimka, Neda e Mitra Bisserov. Nasceram na vila montanhosa do Pirin, no Sudoeste da Bulgária, junto à fronteira com a Macedónia e a Grécia. É desta região a música que se pode ouvir nos seus álbuns “Music from the Pirin Mountains” (com distribuição nacional) ou na colectânea “The Hits of the Bisserov Sisters, vol. 1”, que estará à venda na banca do festival. Canções rituais – a duas vozes e com dois textos diferentes em simultâneo – constituem um dos elementos importantes da tradição do Pirin. Fazendo inicialmente parte de outras formações, as irmãs Bisserov restringiram, desde 1990, a sua actividade ao seu próprio trio. Ao vivo contam com uma formação instrumental que inclui a “gaida” (gaita-de-foles), “tambura” e “tapan” (tambores), “kaval” (flauta) e “gadulka” (violino). O timbre vocal búlgaro, com o seu vibrato característico, esse é inconfundível.
Ouvimos pela primeira vez os Purna das Baul, da região de Bengala, no nordeste indiano, junto ao Bangla Desh, através do álbum “Bauls of Bengal” (com distribuição nacional). O novo chama-se “Songs of Love & Ecstasy” (nas bancas do festival). São ambos magníficos. Não esperem “ragas”, nem incenso, nem ladainhas “aum”. A música dos “bauls” (menestréis nómadas) tem outra aproximação ao divino. Pelo canto e pela extroversão, num ritual celebratório que partilha com os ouvintes as suas canções de amor e êxtase. Os Purna das Baul, no Seixal acompanhados pelo músico convidado Bapi, pertencem a uma “gharana” (família) já com sete gerações de músicos, cada uma sempre sob a educação de um mestre.
Em Kocani, cidade da Macedónia, antigo território da ex-Jugoslávia, nasceu a Orkestar (fanfarra) fundada por Naat Veliov. Como todas as “orkestar”, criadas nos Balcãs no séc. XIX à imagem das orquestras militares turcas, a Kocani Orkestar é constituída por músicos ciganos, nómadas, com a sua leitura própria das tradições da Turquia, Albânia, Grécia e Bulgária. Aproveitando os vários estilos musicais destas regiões, mantendo viva a inspiração oriental do povo cigano, Naat Veliov confere à sua Orkestar um cunho de autenticidade, presente nas diversas combinações entre o trompete, saxofone, clarinete, tuba, acordeão, cornetim e tambor. Uma festa de metais, de cores aguerridas, que fazem jus à sua origem militar.
Tellu Virkalla é finlandesa mas começou por tocar violino num grupo sueco, os Hedningarna, entre 1990 e 1996. Estudou na Academia de Música Sibelius, como quase toda a gente, na Finlândia. Depois de uma passagem pela Noruega, para aperfeiçoar a sua técnica no violino, decidiu-se por uma carreira a solo. Ou quase, já que, habitualmente, Tellu se faz acompanhar por Sanna Kurki-Suonio e Anita Lehtola, as duas também ex-Hedningarna, além de Anna – Kaisa Liedes, professora de canto na Academia Sibelius (é favor ouvirem o seu álbum a solo “Oi Miksi”) e Liisa Matveinen, vocalista dos Tallari, Niekku e Etnopojat (é favor ouvirem o seu álbum a solo, “Ottilia”). No álbum de estreia de Tellu Virkkala, “Suden Aika”, “O tempo do lobo”, (nas bancas do festival), não participam Anita Lehtola e Anna – Kaisa Liedes, ocupando o seu lugar Tina Johansson e Pia Rask. “Suden Aika” é um álbum de polifonias e solos vocais arrevesados (por vezes com acompanhamento de percussões, que tanto podem ser um “bodhran” irlandês como um “ghatam” indiano ou um berimbau), estranho, agreste e misterioso. Como um lobo. Ou uma loba, Tellu, a voz iniciática das estepes.
Louvores e vénias aos Vasmalom, uma das formações de música de raiz tradicional da Hungria que mais longe e de forma mais divertida tem levado a tradição deste país para regiões insuspeitadas. Da música dos Vasmalom desprende-se a mesma sensação de liberdade do jazz. Álbuns como “Vasmalom II” (distribuição nacional) e “Vasmalom III” (na banca) caracterizam-se por uma síntese interiorizada de influências sortidas, do “jazz” aos “blues”, do rock à balada e ao pormenor humorista. Sempre com uma fluência que dispensa os formalismos de escola e faz parecer esta música como pertencendo a uma Hungria imaginária e sem fronteiras. Sob a liderança de Gábor Reӧthy, os Vasmalom contam na sua formação com uma cantora que ombreia com Márta Sebestyén no grupo das melhores: Éva Molnár. A instrumentação do sexteto, com formação clássica, inclui as cores da “darabuka”, “tapan”, “zurna” (flauta), “hitgardon” (parecido com um grande violino tosco, de cordas percutidas, construído em tronco de árvore), gaita-de-foles, violino, saxofone, harmónica, contrabaixo e o indispensável “cymbalon” (variante magiar do saltério). Éva acrescenta o pecado e a magia. É ela que dará a trincar o maior gomo da maçã do prazer, no que será, certamente, um dos momentos mais altos do festival.