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Rão Kyao – “EM PÚBLICO” (artigo de fundo)

pop rock >> quarta-feira >> 30.11.1994


Em Público
Rão Kyao *




“Águas-Livres” é um disco bastante ligeiro e voltado para as sonoridades “new age”. É esta a sua verdadeira música?
O disco anterior, “Delírios Ibéricos”, apanhava uma sonoridade ibérica, com ritmos fortes. Este novo disco “new age”?… Não sei. O peso da música, cabe a cada um apreciar. Não sei se é ligeira. O disco tem, de facto, um determinado ambiente, que muitas pessoas que o ouviram descrevem como paisagístico. O próprio título é sugestivo, aquilo que anda à volta das águas livres, águas vivas, o canto dos rios, não só do rio, mas também de quem está nas suas margens. É ao mesmo tempo um álbum em que é possível a um tipo estar em casa, concentrado a ouvi-lo, sem ter que se levantar da cadeira de repente. Há discos que provocam essa cena, de certa maneira uma agressão. Em resumo, as pessoas é que me vieram dizer várias vezes que certas coisas que faço têm a ver com a “new age”. Para mim o conceito original deste termo era uma música, geralmente tocada em sintetizador, para ser ouvida em fundo.
Precisamente, os sintetizadores, em “Águas-Livres” apontam nesse sentido…
Uma das funções da música, e das mais importantes, é a terapêutica. Uma música que provoca aclmaria é uma música superútil. Mas acho que não faço essa música, a “new age”, porque não sou capaz de tocar música sem estar a contar uma história. Cada som tem que fazer um sentido. Quanto aos sintetizadores, admito que me venham dizer que não devia fazer nada com eles, que devia ser tudo acústico. Mas, lá está, já fiz discos emq eu tudo o que utilizei eram instrumentos de corda. Neste utilizei o sintetizador, porque acho que a sua linguagem, utilizada de uma determinada maneira, pode funcionar. Eu, como é óbvio, como é que posso ser fã de música electrónica, tocando um instrumento como a flauta de bambu? Até porque utilizar os sintetizadores para atrair é algo que não está a dar. Já foi feita tanta cena dessas que, inclusivamente, na “new age”, os tipos estão a ir para o acústico.
Mas há uma certa preocupação em fazer um som acessível, comercial?
Eu não gosto de ser completamente hermético. Sou um tipo que basicamente sempre esteve muito ligado à melodia, uma melodia cantável. Nunca fui de fazer coisas muito sinuosas. Porque não as ouço. Tudo o que eu toco eu canto e tudo o que canto eu toco. É como quando se ouve um temam folclórico, simples, mas em que se sente que é uma coisa profunda, embora tenha uma melodia que toda a gente canta.
A influência do Oriente continua a estar presente em força.
Eles têm uma tradição exactamente ao nível da terapia da música. Que tanto pode aclamar como pôr um tipo aos tiros. Têm consciência desse poder desde sempre. Através de uma coisa a que chamam “raga”, que é uma emoção que, sem palavras, determina, pela conjugação das notas, uma certa e determinada emoção. Que pode ser agressiva ou pacifista. Sobretudo pacifista, porque a música, em princípio, é mais a linguagem do amor do que do ódio. Este tipo de ligação do Oriente ao Ocidente, comigo, passou-se de uma maneira muito espontânea. A primeira vez que ouvi um certo tipo de música, nomeadamente a indiana, fiquei apaixonado. E tive a sensação de que já tinha ouvido aquilo. Discos do Ravi Shankar e de outros músicos que ouvi depois e até me influenciaram mais.
De que maneira se processou a sua passagem pelo saxofone, um instrumento que pode ser muito agressivo, para a flauta de bambú?
Foi uma opção. Eu toco aquilo que ouço na minha cabeça. E tenho uma coisa muito ligada com a voz. Tento aplicar a minha composição pessoal a uma certa sonoridade que não é especificamente indiana. Às vezes, em casa, sozinho ou com outras pessoas, com um tocador de “tablas”, faço coisas abertamente indianas. Mas é mais uma homenagem, um estudo. Mas, naquele sentido de tocar o que me está na cabeça, vejo a música com uma flexibilidade muito grande. Há música que é feita para ser ouvida em alto volume. A música indiana ouvida em alto volume não funciona, porque se está alevar com um volume de som que supera a tal felexibilidade.
A música indiana, para ser apreciada, exige em primeiro lugar que nos instalemos dentro dela, não é verdade?
Exacto. Tem que se fazer um esforço. Mas não é só a música indiana. Toda a boa música. A flauta de bambú, por exemplo, beneficia em ser ouvida de perto, pela flexibilidade que tem. É um instrumento muito ligado com a voz.
Ao contrário da flauta de concerto, com chaves?
O bambú tem uma leveza e ao mesmo tempo um peso, uma flexibilidade que o metal não possui. Houve fases por que passei, em que devido a um estudo profundo, cheguei à conclusão de que andava a tocar saxofone como se fosse uma flauta de abmbú. A flauta de bambú tinha tomado conta da minha linguagem.
É verdade que costuma ir tocar flauta sozinho para as montanhas? Toca para quem?
Tem a ver com a respiração. Gosto de respirar bom ar, de estar num bom ambiente. Depois, gosto de ouvir os pássaros. Por exemplo, tenho um tema chamado “Evocação”, em que a música aparece sob formas completamente primitivas, como se fossem os primeiros sons que entrassem na cabeça. O solo que faço neste tema não é bem um solo, estou constantemente a pensar como se fosse um pássaro, a maneira como ele coloca as notas.
Tocar, dizer sem intermediários. É isso?
Exactamente. Um tipo de canto, a voz dos animais… Quando vou para um sítio desses, que tanto pode ser nos arredores de Lisboa como na região de Viseu, onde há uma pedra com uma alcatifa de musgo.
Sintra diz-lhe alguma coisa?
Então não diz? Sintra é para mim um lugar alucinante. O único problema que tem Sintra é aquela humidade toda, um tipo tem de estar ali com um chapéu na cabeça…
É verdade que houve uma altura da sua vida em que levava um estilo de vida um bocado boémio? Em caso afirmativo de que modo conciliava o excesso com a tal simplicidade quase ascética que professa?
Sou um tipo que gosta de sair, de beber o seu copo, de contactar com as pessoas, da paródia. Sou um gajo de Lisboa. É uma parte de mim. Passo quase todo o dia a tocar, a concentrar-me, a procurar melhorar, como qualquer músico. Quando chega a noite, a hora de jantar, sou um gajo que gosta de vinho – tinto – depois as coisas relacionam-se com este facto. Por exemplo, é como um tipo ser músico da clássica. Como é que se pode determinar a vida que faz pelas peças que interpreta?
Esse é o caso do intérprete. No seu caso, disse há pouco que tinha uma relação diferente com a música…
Certo. Mas, de qualquer maneira, um tipo também precisa de se meter em peças que eventualmente são de grande concentração. Como um actor. Não se percebe se um actor está a fazer comédia ou não, não se percebe como é que ele funciona na realidade.
A música significa para si, além de profissão, uma iniciação, uma forma de aperfeiçoamento pessoal?
Acho que a última frase é a mais adequada de todas. É difícil, por vezes, por palavras, determinar como serão as coisas. A música tem efeitos, lá está, terapêuticos, mesmo a nível espiritual. Algo que vai e puxa para cima. Um tipo que me diz, por exemplo, o que lhe apetece fazer musicalmente é reproduzir o barulho do pessoal a buzinar no meio da rua… Tudo be. Vamos ver um concerto, que maravilha, uma série de gajos sentados a ouvir buzinas no meio da rua (risos). Podem vir ter comigo e dizer-me: “Mas eu tenho direito a fazer isto!” Logicamente que têm direito a usar uma serra mecânica – já houve quem o fizesse -, só que para mim isso não faz sentido nenhum. Para quê, para sair chateado com uma coisa que é antiterapêutica. Todos aqueles que eu gosto de ouvir tocar música fazem-me sentir leve. Os grandes cantores, música clássica, os mestres indianos, com quem aprendi a importância da boa e profunda afinação do instrumento. No sentido de uma afinação que se torna cada vez mais interior.
* Compositor, ex-saxofonista, executante de flauta de bambú, de quem acabou de ser editado o álbum “Águas-Livres”.

Fausto – “Crónica Do Espírito, Da Terra Ardente E De Um Papagaio Filósofo – (Do nosso enviado especial Fernando Magalhães, Em S. Miguel)” (reportagem) + Fausto – “Por Toda Aquela Terra Adentro” (crítica de discos)

pop rock >> quarta-feira >> 30.11.1994


Crónica Do Espírito, Da Terra Ardente E De Um Papagaio Filósofo
(Do nosso enviado especial Fernando Magalhães, Em S. Miguel)



Açores. Ilha do Espírito Santo. De fogo e abandono. Local escolhido por Fausto para o lançamento da segunda parte de uma trilogia sobre a diáspora e a colonização portuguesa nos séculos XV, XVI e XVII, iniciada há doze anos com “Por Este Rio Acima” e que agora se prolonga em “Crónicas da Terra Ardente” – uma obra de fôlego, com raízes fundas na música tradicional portuguesa. Depois de uma visão, “do mar para a terra”, em “Por Este Rio Acima”, um rosto que “olha da terra para o mar”. Viagem iniciática de ida e, quem abe, sem volta. Pelos quatro elementos, pelo continente africano, pelo sonho e sofrimento das gentes anónimas que edificaram o Império. Pela memória de um Portugal que, à distância de quatro séculos, se confunde com as chagas de um país adiado no presente. E do Portugal do Quinto Império, de Vieira e de Pessoa. Com Fausto, circundámos as águas, santas ou ardentes, calcorreámos o verde dos montes e dos pastos, sentimos a pulsação, misto de proximidade e distância, das gentes e provámos as comidas. Sonhámos os sete céus sobre uma povoação múltipla e receámos os segredos subterrâneos que, a cada segundo, ameaçam a revelação do dilúvio. Na Ilha de S. Miguel, berço apropriado para uma música que, ancorada com força no tempo, do tempo se procura libertar. Onde as coisas simples e a gesta épica, a solidão e a descoberta colectiva se erguem a desafiar o (ainda) desconhecido mar.

Terça-feira, dia 22
Partimos de Lisboa ao fim do dia, no único voo diário para os Açores. Quase sem história, não fossem alguns receios provocados por uma aterragem na Terceira – onde o avião fez escala antes de seguir para S. Miguel -, algo agitada pelos ventos fortes a chuva que se faziam sentir nessa altura na ilha. Depois do susto, os trinta minutos em marcha atrás até S. Miguel foram uma brincadeira. À chegada a Ponta Delgada, esperav-nos ângela de Almeida, directora e proprietária da editora açoriana Jornal de Cultura, fantástica anfitriã e guia de viagem ao longo de toda a estada. Repousados os corpos e as bagaens no simpático e acolhedor Hotel Açores Atlântico, situado em frente ao porto da cidade, partimos para casa de amigos. Ao passarmos pelo jardim onde um dos naturais mais ilustres de Ponta Delgada, Antero de Quental – o poeta e filósofo que de si mesmo dizia “De plano em plano e de desejo em desejo vou descendo lentamente a espiral dos desenganos” e, já perto do fim, exclamava: “Isto ainda acaba com uma corda na garganta ou uma bala na cabeça!” -, se suicidou (no dia 11 de Setembro de 1891), Fausto referiu a impressão que sempre lhe causaram os pormenores finais daquela data fatídica. Contou ele que alguém, observando uma vez as dimensões mínimas da arma com que o poeta tencionava já pôr termo à vida, comentara: “É uma pistola de matar pardais” – ao que o escritor, com impressionate humildade, lhe respondera: “É isso mesmo!” Sobre o banco onde Quental disparou contra si próprio, conta ainda Fausto, entre tantas outras, uma inscrição apenas se erguia, em suprema ironia: “Esperança”.
Já no conforto lo lar da Marina e do Mariano, onde o jantar foi de comer e chorar por mais, a conversa prosseguiu em tom menos dramático. Em discussão esteve a actualidade conturbada do Sporting (clube da simpatia do cantor, do anfitrião e do repórter, o que deixou desamaprado o único “lampião” presente, João Afonso, da Sony, de quem não sabemos se é mais fanático do Benfica ou das maravilhas do arquipélado) e pormenores da vida do intelectual do papagaio filósofo de Fausto, chamado Zé, que gosta de proferir máximas como “Só sei que nada sei”, “Penso, logo existo” e “Ser ou não ser, eis a questão”, concluídas ocasionalmente com a não menos sábia e avisada “Ai, ai, ai, ainda vou para à panela!”

Quarta-feira, 23
De manhã, tempo de entrevistas para as rádios locais. Por nós, quisemos saber a razão, ou razões, que levaram ao lançamento de “Crónicas da Terra Ardente”, nos Açores. Além do convite da Jornal de Cultura, também porque os Açores são, segundo Fausto, “ilhas de músicos”, de pessoas que tocam, uma escola onde têm sido feitos belíssimos trabalhos, não só de música tradicional” – em suma, “uma alternativa ideal” a Lisboa. Por outro lado, a própria temática do álbum harmoniza-se bastante bem com o arquipélago. “Há, de facto, uma coincidência feliz”, embora Fausto reconheça não ter “pensado deliberadamente” nisso. “Na primeira parte do disco, o barcmuito perto dos Açores. Os marinheiros, inclusive, dizem que não tinham conseguido abordar as ilhas Terceiras, como naquela altura se chamavam.”



Almoço no restaurante Remédio d’Alma – designação perfeita para um local de repasto mas que, para falar verdade, fez menos sentido quando se chegou a vias de facto. Sobre o novo álbum, a explicação, dada pelo próprio, de um ciclo ideal. Doze anos separam “Por Este Rio Acima” de “Crónicas da Terra Ardente”. “Dez anos são a marcação de um tempo suficientemente distante e, ao mesmo tempo, acessível para elaborar a trilogia, uma ideia que expus pela primeira vez à editora em 1985. Se eu a fizesse de seguida, correria o perigo de parecer que estava a falar sempre da mesma coisa.” Acabaram por ser doze em vez de dez anos de intervalo, “devido a este álbum ter sido pensado para ser um triplo, cerca de trinta e tal canções” e, por fim, Fausto ter chegado à conclusão de “que era longo demais”. Punha-se um problema: “Onde suspender a viagem? Suspendi-a precisamente no tema ‘Ao longo de um claro rio de água doce’, para que não terminasse com a tragédia dos Sepúlvedas, um episódio pesadíssimo. Deste modo, há uma retoma da esperança. Nas suas dimensões oníricas de fantástico. O texto fala em alecrim, que é a flor da esperança”.
“Mas ao proceder deste modo”, continua o músico, “verifiquei ao mesmo tempo que tinha deixado espaços em aberto, que a viagem deixara de ter alguma lógica, quando os temas subsequentes deixaram de existir. Por isso, tive que repensar certos temas e refazer outros, e daí o atraso de dois anos”. “Ao contrário do que acontece em “Por Este Rio Acima”, onde há um regresso ao Continente, neste novo disco há uma viagem suspensa, uma nova partida, no fundo, o sentido da di´spora, de ir e vir, o mesmo movimento da saudade.” “Com hipotética chevista, daqui a dez anos, na terceira e última parte da trilogia, à casa de Silva Porto,”’o homem das barbas”, em Bié (Angola), de onde Fausto é natural e onde passou a infância e a adolescência.
E de viagem em viagem se passou pela poesia. De Natália Correia, profetiza do Espírito Santo, À veia popular, fruto da emotividade do momento. Um exemplo, contou Fausto, que o leu com os próprios olhos, algures numa dessas academias da arte de versejar que são os sanitários dos cafés e resraurantes. Aconteceu que, no lado de dentro de uma porta de um restaurante, garatujada até à exaustão com aquel género de “grafitti” literários onde o dichote obsceno e as alusões sexuais constituem a temática dominante, alguém, num lampejo de génio, redigiu, no derradeiro espaço deixado livre, a seguinte pérola: “Estes grandes filhos da puta / que de tesão se consomem / não tendo com quem foder / foderam a porta ao homem” (repare-se na métrica da quadra e, em particular, na musicalidade e subtileza do segundo verso) – o génio poético português, na sua expressão mais moralista.
De tarde, as águas. Lagoa das Sete Cidades, antes do poente. A RTP dos Açores deslocou-se ao local para captar imagens do cantor, transmitidas nessa mesma noite no noticiário da hora do jantar. Impressionante o silêncio. Um silêncio que, aliado á beleza grandiosa esculpida pela natureza numa cratera de vulcão, levou certa vez uma criança a perguntar aos pais: “Foi aqu que Deus nasceu?” Um silêncio musical, murmúrio das águas que o vento empurra suavemente contra as margens, cantando pela eternidade o princípio e o fim dos dias. O poeta Eugénio de Andrade costuma sentar-se na beira da lagoa, cadinho do alto pensamento, à conversa com as águas.
Subitamente, acordámos das Sete Cidades – sete níveis, um físico mais seis sobrepostos e ocultos – como de um sonho. Após um jnatar onde o estômago sofreu mais do que rejubilou, seguimos para o lançamento oficial de “Crónicas da Terra Ardente”, no John’s Pub, situado na zona mundana de Ponta Delgada. “Uma leitura actual”, sintetizara já antes o seu autor, “onde, indo ao fundo da história, se procura provar que os problemas do homem permanecem praticamente os mesmos em termos de atitude, comportamentos e valores. Problemas como o racismo e a xenofobia, encarados na sua plenitude – como agressão mútua resultante de um etnocentrismo excessivo – ou a guerra e a violência, a droga e a toxicodependência, como no tema ‘À deriva Porto Rico’.”
José Medeiros – “Zeca” para os amigos, realizador da já lendária série televisiva sobre os Açores, “Xailes Negros” – teceu alguns comentários sobre o autor e a sua obra, recordando, a propósito, o impacto que a música de Fausto tivera, durante um concerto, sobre um músico de “blues” norte-americano, positivamente siderado com o “beat” dos ritmos tradicionais portugueses, no modo como o cantor português os trabalha. Algo que pode ser apreciado em profundidade tanto em “Por Este Rio Acima” como em “Crónicas da Terra Ardente”, residindo as diferenças entre ambos, em termos de perspectiva, no facto de, no primeiro, “o cenário ser, de facto, o mar: o ponto de vista é do mar para a terra”, enquanto, no segundo, “o cenário muda, representando sobretudo a entrada dos portugueses pelo continente dentro e a sua dramatização, em particular na tragédia dos Sepúlvedas. O ponto de observação alterou-se, passando a ser da terra para o mar”.
A capa do Vítor Belém é, neste aspecto, para Fausto, “muito sugestiva”. “O disco avança até um tema chamado ‘O mar’ e, a partir daí, o mar começa a funcionar como uma memória, desaparecendo como elemento da Natureza, iniciando-se a caminhada.”

Quinta-feira, 24
Chuva. A cair pela primeira vez desde que chegáramos. Apóso almoço, no restaurante do hotel das furnas – one o célebre cozido, cuja cozedura é feita no forno natural proporcionado pela própria terra desta zona vulcânica, deixou mais uma vez o estômago em trabalhos de parto – um arco-íris formou-se entre o azul e as nuvens, como que a confirmar a aliança do céu com a natureza. O destino da viagem apontava obviamente para as caldeiras. Impressionante o primeiro contacto com a voz da terra e da água ferventes, na maneira brutal como abrem caminho a golpes de lava e vapor para a superfície, por onde menos se espera, furando muros, escavando poços para o inferno ou dando-se em bênção curativa nas dezenas de bicas que jorram da pedra.



Uma força telúrica que encontra parceiro à altura na música de “Crónicas da Terra Ardente”, cujo título bem se poderia aplicar a este local que alguns autores julgam ser a parte emersa da Atlântida. Já no percurso de regresso ao aeroporto (Fausto permaneceu na ilha por mais um dia), despedimo-nos da lagoa crepuscular, invadidos pela sensação de termos pisado um lugar onde a terra faz fronteira com o Céu e o Inferno.


CAIXA

Por Toda Aquela Terra Adentro
Fausto
Crónicas Da Terra Ardente
2xCD Columbia, distri. Sony Music



Mais de uma década volvida sobre o mítico “Por Este Rio Acima”, Fausto abre o jogo e propõe um período de vinte anos para a construção de um trabalho desmesurado sobre a diáspora portuguesa no Renascimento, com implicações e leituras que se prolongam pela sociedade actual. Segunda etapa de uma viagem que, segundo o seu autor, começou por ser, em “Por Este Rio Acima”, uma visão do mar para a terra, “Crónicas da Terra Ardente” espraia-se por “contos dos matagais, dos rios e das serras, de vales e quebradas, lugares e caminhos por toda aquela terra adentro…”, ou seja, uma visão essencialmente terrena pelo interior do continente africano.
Depois da “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, são agora os relatos da “História Trágico-Marítima”, reunidos por Bernardo Gomes de Brito que servem de material de inspiração para as letras e música de “Crónicas da Terra Ardente”. Este novo disco de Fausto revela em primeiro lugar um trabalho excepcional ao nível da escrita dos textos. Mas esta riqueza poética acaba por ter efeitos nefastos sobre a música. De tal forma as palavras possuem as suas melodias, ritmo e harmonia próprios que a música se deixa ir atrás delas, incapaz de se libertar do seu fascínio. De resto constitui um exercício curioso ler a totalidade dos textos sem o apoio musical. É todo um mundo de sons e imagens, de sensações quase sinestésicas, que se desvela numa sinfonia de sentimentos e significados que dispensam o acompanhamento das notas! Por outro lado, se a genuína e profunda ligação da música de Fausto com os ritmos tradicionais portugueses confere a “Crónicas da Terra Ardente” uma unidade formal forte, essa mesma ligação acaba por ter igualmente um efeito perverso, ao condicionar grande parte dos temas ao espartilho das chulas ou dos corridinhos (e também das batidas africanas), por mais voltas que as vozes e os arranjos lhes dêem.
Fausto criou um universo musical único e original onde tudo se movimenta dentro de parâmetros e regras determinados. É evidente que as diferenças em relação a “Por Este Rio Acima” são perceptíveis, na utilização da bateria e das percussões, na maior insistência nos coros ou na preocupação com a dinâmica intrínseca e extrínseca dos sons. Mas no essencial os contornos que delimitam a composição permanecem idênticos. Assim acabam por ser os temas onde a fuga ao império instituído é mais evidente aquelas onde o prazer da descoberta é maior, fazendo passar para segundo plano a euforia rítmica da maior parte deles e, inclusive, estabelecendo outras e estimulantes pontes com as palavras. Exemplo disto é logo o tema de abertura, “Travessia”, com um arranjo fora de série onde, por esta ordem, a percussão (por Fernando Molina, dos Romanças), a gaita-de-foles (por Ricardo Dias, da Brigada Victor Jara, também o autor do arranjo), a sanfona (por Fernando Meireles, dos Realejo) e o piano (ainda por Ricardo Dias) projectam com enorme violência expressiva a música tradicional do futuro. A chula é vencida em “Ao som do mar e do vento” e impressiva é a utilização do coro e dos efeitos de estúdio em “Na ponta do cabo”, um dos momentos de carga emotiva – quase sensível, no modo como é descrita a luta do homem contra a fúria dos elementos – mais forte de todo o álbum. No segundo disco sobressaem “Diluídos numa luz”, ondulante sobre sintetizadores, vozes que se entrelaçam em eco e o tom espectral das palavras e “Pela fome comidos”, onde de novo Fausto explora as possibilidades de estúdio numa singular manipulação dos registos corais. Por fim, o libelo acusatório “Manuel de Sousa Sepúlveda” surge desde já como uma das canções da música popular portuguesa onde de forma mais crua é exposta a miséria, a tragédia e a dimensão humana das gentes que edificaram o império. Depois dele, a terminar o disco, é de descompressão a subida “Ao longo de um claro rio de água doce”. Em direcção a uma eterna nascente. (7)

Andy Partridge & Harold Budd – “Through The Hill” + Michael Nyman – “Michael Nyman Live”

pop rock >> quarta-feira >> 30.11.1994


Pianos E Outros Instrumentos

Andy Partridge & Harold Budd
Through The Hill (7)
All Saints, distri. Megamúsica
Michael Nyman
Michael Nyman Live (6)
Ventura, distri. EMI – VC



Coisa triste o que aconteceu a Michael Nyman, obrigado a carregar nas costas o peso de uma maldição, de um piano bolorento chorando à beira-mar. Ou seja, Nyman transformou-se num carregador de pianos. Depois do filme de Jane Campion, depois da banda sonora original, depois da versão completa em “suite”, chegou avez de “The Piano” se mostrar ao vivo, em concertos realizados em Espanha. É muito piano para um homem só. Acompanhado pela habitual “ensemble”, a “suite” onde figura o tema de maior sucesso, “The heart asks for pleasure first”, surge aqu mais lenta e presa de movimentos, não deixando por isso de constituir nova oportunidade para os recém-convertidos à música de Nyman se lambuzarem com mais um prato de pós-modernismo, a ementa com mais saída de momento. Depois há música de “The Draughtsman’s Contract” e a excelente (no original em estúdio, “The Kiss and Other Movements”) “suite” “Water dances”. Inédita e mais curiosa que verdadeiramente interessante é “The upside-down violin”, um “apanhado” de música da tradição árabe-andaluzcada pela Orchestra Andalusi de Tetuoanque e posteriormente trabalhada, com mão um pouco rígida, eplo “ensemble”.
“Through the Hill”, ao contrário do carregador de pianos, não aborrece, o que desde logo faz marcar pontos a seu favor. Budd e Andy Partridge (excêntrico dos XTC, embora aqui não se note) entregam-se à onda de “relaxe” do costume. Dividiram-na em três núcleos temáticos, “Geografia”, “Estruturas” e “Artefactos”, separados por pequenos interlúdios designados “mãos”, e ilustraram-nos graficamente com gravuras alusivas. Partridge recria ocasionalmente a “infinite guitar” de Michael Brook e, com maiores ou menores sobressaltos (a música não é neste caso tão planante como costuma acontecer quando Budd está sozinho), deslizamos com um sorriso de beatitude nos lábios para o interior do universo poético-abstracto de “Through the Hill”. Budd não se dispensa de ler alguns poemas, dando rédea livre à sua faceta recentemente descoberta de declamador sonambúlico, e a presença de Partridge corta, quando menos se espera, a serenidade reinante com badaladas de metal ou zumbidos de insecto convertido ao romantismo. Música ambiental que não deixa adormecer, mesmo quando o factor novidade, em discos deste tipo, seja algo que se faz notar somente de dez em dez álbuns, pelo menos.