Arquivo mensal: Novembro 2024

Bagad Kemperle – “Kejadenn”

pop rock >> quarta-feira >> 19.01.1994


Bagad Kemperle
Kejadenn
Silex, distri. Etnia

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As bagads podem ser consideradas o equivalente bretão das bandas militares escocesas. Constituídas por uma secção de gaitas-de-foles (“biniou-koz2) e outra de bombardas, que dialogam quase ininterruptamente entre si (só aos tocadores de bombarda, instrumento que exige uma enorme “endurance” da parte do músico, são concedidos momentos de descanso), apoiadas numa terceira secção, de tambores, as bagads impressionam sobretudo pela força do colectivo. Diz quem ouviu e viu que chega a ser quase aterrador assistir a um dos muitos concursos de bagads que regularmente se realizam na Bretanha, quando não um mas vários destes agrupamentos encetam autênticas batalhas de som, com centenas de gaitas-de-foles, bombardas e percussões tonitruantes a ribombarem um uníssono.
“Kejadenn” é um disco que se propõe mostrar novos caminhos para as bagads. Juntamente com a formação tradicional da Bagad Kemperle, com direcção musical de Patrick Tanguy, 13 gaiteiros (solista principal, Serge Dayou), 16 bombardeiros, chamemos-lhe assim (solista principal, em bombarda tenor, Jean-Pierre Moing) e 11 percussionistas, convidaram-se músicos solistas, com bateria, guitarra eléctrica, acordeão, saxofone, clarinete, uma voz feminina e, como principal interlocutor, Michel Godard, na tuba e serpentão.
Os temas, na sua maioria compostos por Patrick Tanguy, alternam entre o que é habitual esperar de uma bagad e a intromissão de elementos alienígenos: solos de sax e clarinete, o canto entre o operático e o declamatório de Linda Bsiri, os acentos rítmicos “jazzy” da bateria. Num dos vários temas absolutamente alheios à estética das bagads, “Doucement les basses”, os baixos da tuba divagam em liberdade. Da homenagem à Galiza, em “Galicienne”, à ironia de uma “Bomb-hard”, “Kejadenn” deixa-se deslumbrar, por vezes com alguma falta de controlo, pela revelação súbita de mundos que nenhuma bagad, até há pouco, julgaria poderem vir a pertencer aos seus domínios. Uma pedrada no charco numa área tida até agora como das mais conservadoras. (7)

Dulce Pontes – “Pontes Para O Passado” (entrevista)

pop rock >> quarta-feira >> 12.01.1994


Pontes Para O Passado

É conhecida por ter vencido um Festival da Canção. Conotada com uma certa música ligeira, Dulce Pontes deu agora um golpe de rins, armou-se de “samplers” e “vocoders” e, com a ajuda de Guilherme Inês, cantou a música de Amália e José Afonso.



Com vinte e poucos anos de idade, Dulce Pontes diz-se “com alma de fadista” e fala sobre José Afonso, “Zeca”, como lhe chama, com a familiaridade de uma veterana que cresceu a ouvir a música do autor de “Com as Minhas Tamanquinhas”. E se José Afonso é o “pai” espiritual da cantora, Amália é a mãe. E não falta sequer a menção, na contracapa do seu álbum “Lágrimas”, ao “folclore búlgaro” e à “música árabe”..
PÚBLICO – Como surgiu a ideia de fazer este disco?
Dulce Pontes – A partir de conversas com o Guilherme Inês. Dizia-me: ‘tens que cantar é oo fado, o que tu és é fadista!’. Começámos a pensar nisto a sério. Pegámos também nas raízes da música mais tradicional para partirmos para uma experiência de sonoridades. Criar um fio condutor entre o folclore e o fado, como acontece no arranjo de “Povo que lavas no rio” que tem instrumentos da música popular como a gaita-de-foles e os adufes.
P. – Esses instrumentos não vêm mencionados na ficha técnica. Tocou-os no “sampler”?
R. – Não, não é tudo no “sampler”. Há algumas coisas que são feitas no “Fairlight”, como foi o caso da gaita-de-foles que eu própria toquei. [Aqui Dulce Pontes parece ter feito confusão, visto que o “Fairlight” foi o primeiro modelo de “sampler” a ser comercializado.]
P. – Este disco é um começo ou um acidente de percurso?
R. – Uma pessoa primeiro descobre que tem um instrumento vocal e depois quer cantar tudo e mais alguma coisa. Por acaso até apareceu aquele programa do Júlio Isidro, “O Regresso ao Passado”, que me permitiu cantar tudo e mais alguma coisa. Foi bom porque me deu muita versatilidade e uma certa ginástica vocal. Mas há uma altura, isso comigo aconteceu, em que qualquer artista, em qualquer área, começa a perceber o caminho que quer seguir. Quando são dadas condições para se fazer isso então é ouro sobre azul.
P. – “Lágrimas” integra-se na corrente recente de discos de homenagem?
R. – Este trabalho não foi feito com o intuito de ser um tributo, embora de certa forma acabe por sê-lo, por estarmos a pegar em temas de pessoas que foram pioneiras.
P. – Há uma ligação forte a Amália, visível desde logo no título do álbum…
R. – Gosto muito de Amália. Em termos de fado é a musa que me inspira.
P. – E José Afonso?
R. – É outro autor, como todos os que foram escolhidos para este disco, que fala do povo e tem dele uma perspectiva muito fiel.
P. – A que propósito mencionou as músicas tradicionais búlgara e árabe?
R. – Isso é uma metáfora que de certa forma revela as minhas fontes de inspiração.
P. – Costuma ouvir música tradicional?
R. – Oiço muita música étnica. Acho que há um fio condutor nos vários tipos de folclore… Este ano fui passar férias à Tunísia, para respirar aquele ambiente, e eles têm instrumentos idênticos aos nossos. Por exemplo, eles têm uma música tradicional que tem a letra da “Rua do Capelão”, quase, aquela ideia de “se o meu amor vier cedinho, eu beijo as pedras do chão que ele pisar no caminho”. Tem exactamente a mesma frase em árabe. No caso do folclore búlgaro, é muito similar às vozes das mulheres do Minho, timbricamente, o tipo de interpretação tem muito a ver…
P. – Em relação ao título do álbum, “Lágrimas”, aponta de imediato para a tristeza. É real toda essa tristeza?
R. – Tem muito a ver com a nossa forma de estar e de sentir. Mas podem não ser necessariamente lágrimas de tristeza. Podem ser lágrimas de comoção. Ou lágrimas de alegria. Pus “Lágrimas” porque é um título que de forma geral reflecte o sentimento do álbum e do ser português.
P. – Não tarda nada está a falar de nacionalismo…
R. – O mais possível. Acho que é preciso fazer mais pela nossa música e divulga-la mais. Divulgar e promover, principalmente.
P. – O seu público tradicional não se sentiu chocado com o novo disco?
R. – Se calhar o meu público vai-se alargar. Nas primeiras semanas de venda vendi mais que o meu disco anterior no ano inteiro.
P. – A fusão do tradicional com a electrónica, nos arranjos de “Lágrimas”, é uma aproximação à “world music”?
R. – Ao fim e ao cabo, acaba por ser isso, embora não tenha sido feito com esse propósito.
P. – Voltando ao fado, algures na capa refere-se a “fadistas do século XXI”. O fado pode ser actualizado?
R. – Sim, desde que não se perca a essência, que é a forma de sentir. Por exemplo, jazzificar o fado, nunca! O fado continua a ser fado desde que a pessoa que o canta o sinta como tal.

Paolo Conte – “Tournée”

pop rock >> quarta-feira >> 12.01.1994


Paolo Conte
Tournée
CGD, distri. Warner Music



Senhoras e senhoras, percam a vergonha, a sisudez e os preconceitos e ouçam para nunca mais parar a música de Paolo Conte. O inconfundível, incomparável e inclassificável Paolo Conte, o decadente, o trágico, o da voz tão rouca como o bagaço ou tão terna como um licor. O das varandas e ressacas ao nascer do Sol, dos sonhos de Hollywood sonhados numa viela sórdida abraçados a uma prostituta. “Tournée” apanha o cantor e compositor em grande forma, ao vivo em várias salas durante uma digressão pela Europa realizada entre 1991 e 1993. Estão aqui todas as marcas do seu génio, impressas nas vocalizações de “crooner” que canta em italiano, inglês e francês um mundo com a trama dramática de um filme de Fellini, nos arranjos para “big band” onde as memórias de Benny Goodman e Duke Ellington se cruzam com a cançoneta italiana, os blues, o “boogie woogie” ou simplesmente as canções de amor etilizado que de tão trôpegas inventam para si próprias um estilo inteiramente novo. Com a música de Paolo Conte só há duas hipóteses: ou não se conhece ou, conhecendo-se, fica-se para sempre preso ao seu fascínio. Tocante. (8)