pop rock >> quarta-feira >> 12.01.1994
Pontes Para O Passado
É conhecida por ter vencido um Festival da Canção. Conotada com uma certa música ligeira, Dulce Pontes deu agora um golpe de rins, armou-se de “samplers” e “vocoders” e, com a ajuda de Guilherme Inês, cantou a música de Amália e José Afonso.
Com vinte e poucos anos de idade, Dulce Pontes diz-se “com alma de fadista” e fala sobre José Afonso, “Zeca”, como lhe chama, com a familiaridade de uma veterana que cresceu a ouvir a música do autor de “Com as Minhas Tamanquinhas”. E se José Afonso é o “pai” espiritual da cantora, Amália é a mãe. E não falta sequer a menção, na contracapa do seu álbum “Lágrimas”, ao “folclore búlgaro” e à “música árabe”..
PÚBLICO – Como surgiu a ideia de fazer este disco?
Dulce Pontes – A partir de conversas com o Guilherme Inês. Dizia-me: ‘tens que cantar é oo fado, o que tu és é fadista!’. Começámos a pensar nisto a sério. Pegámos também nas raízes da música mais tradicional para partirmos para uma experiência de sonoridades. Criar um fio condutor entre o folclore e o fado, como acontece no arranjo de “Povo que lavas no rio” que tem instrumentos da música popular como a gaita-de-foles e os adufes.
P. – Esses instrumentos não vêm mencionados na ficha técnica. Tocou-os no “sampler”?
R. – Não, não é tudo no “sampler”. Há algumas coisas que são feitas no “Fairlight”, como foi o caso da gaita-de-foles que eu própria toquei. [Aqui Dulce Pontes parece ter feito confusão, visto que o “Fairlight” foi o primeiro modelo de “sampler” a ser comercializado.]
P. – Este disco é um começo ou um acidente de percurso?
R. – Uma pessoa primeiro descobre que tem um instrumento vocal e depois quer cantar tudo e mais alguma coisa. Por acaso até apareceu aquele programa do Júlio Isidro, “O Regresso ao Passado”, que me permitiu cantar tudo e mais alguma coisa. Foi bom porque me deu muita versatilidade e uma certa ginástica vocal. Mas há uma altura, isso comigo aconteceu, em que qualquer artista, em qualquer área, começa a perceber o caminho que quer seguir. Quando são dadas condições para se fazer isso então é ouro sobre azul.
P. – “Lágrimas” integra-se na corrente recente de discos de homenagem?
R. – Este trabalho não foi feito com o intuito de ser um tributo, embora de certa forma acabe por sê-lo, por estarmos a pegar em temas de pessoas que foram pioneiras.
P. – Há uma ligação forte a Amália, visível desde logo no título do álbum…
R. – Gosto muito de Amália. Em termos de fado é a musa que me inspira.
P. – E José Afonso?
R. – É outro autor, como todos os que foram escolhidos para este disco, que fala do povo e tem dele uma perspectiva muito fiel.
P. – A que propósito mencionou as músicas tradicionais búlgara e árabe?
R. – Isso é uma metáfora que de certa forma revela as minhas fontes de inspiração.
P. – Costuma ouvir música tradicional?
R. – Oiço muita música étnica. Acho que há um fio condutor nos vários tipos de folclore… Este ano fui passar férias à Tunísia, para respirar aquele ambiente, e eles têm instrumentos idênticos aos nossos. Por exemplo, eles têm uma música tradicional que tem a letra da “Rua do Capelão”, quase, aquela ideia de “se o meu amor vier cedinho, eu beijo as pedras do chão que ele pisar no caminho”. Tem exactamente a mesma frase em árabe. No caso do folclore búlgaro, é muito similar às vozes das mulheres do Minho, timbricamente, o tipo de interpretação tem muito a ver…
P. – Em relação ao título do álbum, “Lágrimas”, aponta de imediato para a tristeza. É real toda essa tristeza?
R. – Tem muito a ver com a nossa forma de estar e de sentir. Mas podem não ser necessariamente lágrimas de tristeza. Podem ser lágrimas de comoção. Ou lágrimas de alegria. Pus “Lágrimas” porque é um título que de forma geral reflecte o sentimento do álbum e do ser português.
P. – Não tarda nada está a falar de nacionalismo…
R. – O mais possível. Acho que é preciso fazer mais pela nossa música e divulga-la mais. Divulgar e promover, principalmente.
P. – O seu público tradicional não se sentiu chocado com o novo disco?
R. – Se calhar o meu público vai-se alargar. Nas primeiras semanas de venda vendi mais que o meu disco anterior no ano inteiro.
P. – A fusão do tradicional com a electrónica, nos arranjos de “Lágrimas”, é uma aproximação à “world music”?
R. – Ao fim e ao cabo, acaba por ser isso, embora não tenha sido feito com esse propósito.
P. – Voltando ao fado, algures na capa refere-se a “fadistas do século XXI”. O fado pode ser actualizado?
R. – Sim, desde que não se perca a essência, que é a forma de sentir. Por exemplo, jazzificar o fado, nunca! O fado continua a ser fado desde que a pessoa que o canta o sinta como tal.