Arquivo mensal: Outubro 2020

Vários – “A Outra Europa” (dossier / folk)

Pop Rock >> Quarta-Feira, 30.09.1992


A OUTRA EUROPA



A outra Europa mantém-se firme. A outra Europa não diz nem não nem sim a Maastricht e não tem medo do marco. A outra Europa não passa por Paris, nem Bona, nem Londres. Muito menos por Tóquio e Nova Iorque. A outra Europa chama-se Galiza, Bretanha, Provença, Piemonte… por onde os caminhos são traçados pelas estrelas e pela Terra. A outra Europa não sofre de “stress” nem de enfartes do miocárdio. As ruínas da outra Europa aguentam-se melhor que os edifícios de vidro e betão onde os burocratas da Europa assinam as suas certidões de óbito. A outra Europa não receia o futuro porque não acredita no tempo. A outra Europa está ligada por correntes subterrâneas e é iluminada pelos raios do Sol e pelos reflexos da Lua. A outra Europa não marcha, dança. A outra Europa não grita, canta. E se, do Leste, chegam horrores e sangue, antecipando o Apocalipse anunciado, é porque ao corpo de loba da Europa faltam a cabeça de leão e o coração de pomba. E não há meio de percebermos isto. A outra Europa é a verdadeira Europa.

A selecção seguinte, subjectiva como todas as selecções, apresenta alguns dos melhores álbuns de música tradicional das respectivas regiões da Europa. Certos nomes, como é óbvio, teriam direito a figurar com mais do que um disco nesta lista. Optou-se pelo critério um nome, um disco, visando uma maior variedade. Na página seguinte, discos novos.

1 – PORTUGAL
GAC – … E Vira Bom (1977)
Brigada Victor Jara – Tamborileiro (Mundo Novo), 1979
Terra a Terra – Pelo Toque da Viola (Rádio Triunfo), 1981
Grupo de Cantares de Manhouce – Cantares da Beira (EMI-VC), 1982
Vai de Roda – Vai de Roda (Orfeu), 1983
Almanaque – Desfiando Cantigas (EMI), 1984
Ronda dos Quatro Caminhos – Cantigas do Sete-Estrelo (Rádio Triunfo), 1985
Maio Moço – Inda Canto, Inda Danço (ed. Autor), 1987
2 – GALIZA
Emilio Cao – Fonte do Arano
Amancio Parada – Caravel de Caravells (Fonomusic), 1984
Milladoiro – A Galicia de Maeloc (Dial), 1984
Pablo Quintana – O Cego Andante (Edigal), 1984
Grupo Didactico-Musical do Obradoiro – Instrumentos Populares Galegos (Sonifolk), 1987
Luar na Lubre – Beira-Atlântica (Sons Galiza), 1990
Muxicas – Desafinaturum (Edigal), 1990
3 – ASTÚRIAS
Lian de Cubel – Na Llende (Fono Astur), 1990
4 – CASTELA
Manuel Luna – Como Hablan las Sabinas (RNE), 1987
La Musgana – El Paso de la Estantigua (RNE), 1989
5 – ANDALUZIA
Rosa Zaragoza – Cancons de Noces del Jueus Catalans (Saga), 1987
Aurora Moreno – Aynadamar-La Fuente de las Lagrimas (Saga), 1988
6 – BRETANHA
Alan Stivell – Chemins de Terre (Fontana), 1973
An Triskell – Kroaz-Hent (Le Chant du Monde), 1977
Skolvan – Kerzh ba’n’ Dans (Keltia), 1991
Strobinell – Na Aotrou Liskildri (Keltia), 1991
Storvan – Digor’n Abadenn (Keltia), 1991
7 – FRANÇA (geral)
Le Bourdon – Le Galant Noyé (le Chant du Monde), 1975
Malicorne – Almanach (Hexagone), 1976
Vielleux du Bourbonnais – Vielleux du Bourbonnais (Hexagone), 1979
Mélusine – La Treizième Heure (Polydor), 1979
Jean Blanchard & Eric Montbel – Cornemuses (Hexagone), 1979
Maluzerne – Nous sommes venus vous Voire… (Le Chant du Monde), 1981
La Bamboche – Quintessence (Hexagone), 1990
8 – GASCONHA
Verd e Blu – Musica de Gasconha (Menestrêrs Gascons), 1990
Perlinpinpin Folc – Ténarèze (Compas), 1991
9 – PROVENÇA
Mont-Jòia – Cant e Musica de Provenca (Le Chant du Monde), 1976
10 – PIEMONTE
La Ciapa Rusa – Stranòt d’Amur (Madau), 1984
11 – CÓRSEGA
Les Nouvelles Polyphonies Corses (Philips), 1991
12 – SARDENHA
Elena Ledda & Suonofficina – Sonos (Biber), 1989
13 – CHIPRE
Ensemble Cypriote de Musique Ancienne – Chants Épiques et Populaires du Chypre (Arion), 1991
14 – ESCÓCIA
Silly Wizard – Caledonia’s Hardy Sons (Shanachie), 1978
Battlefield Band – Home is where the Van is (Temple), 1980
Robin Williamson – Mabinogi (Claddagh), 1983
Savourna Stevenson – Ticked Pink (Springthyme), 1985
Tannahill Weavers – DancingFeet (Green Linnet), 1987
Hamish Moore – Open Ended (Dunkeld), 1987
House Band – Word of Mouth (Topic), 1988
Gordon Mooney – O’er the Border (Temple), 1989
Catherine Ann-McPhee – Chi Mi’s Geamhradh (Green Trax), 1991
15 – INGLATERRA
Fairport Convention – Liege & Lief (Island), 1969
Shirley Collins & Dolly Collins – Antems in Eden (Harvest), 1971
Steeleye Span – Tem Man Mo por Mr. Reservoir Butler Rides Again (Chrysalis / Shanachie), 1971
Ashley Hutchings & John Kirkpatrick – A Compleat Dancing Master (Hannibal, 1973
Tim Hart & Maddy Prior – Summer Solstice (Shanachie)
Albion Country Band – Battle of the Field (Island / Carthage) 1976
June Tabor – Ashes and Siamonds (Topic), 1977
Brass Monkey – See how it Rain (Topic), 1986
Blowzabella – A Richer Dust (Plan Life), 1988
Martin Carthy – Right of Passage (Topic), 1988
Silly Sisters – No more to the Dance (Topic), 1988
John Kirkpatrick & Sue Harris – Stolen Ground (Topic), 1989
16 – IRLANDA
Planxty – Cold Blow and the Rainy Night (Polydor / Shanachie), 1974
Chieftains – The Chieftains 5 (Island / Claddagh), 1975
Bothy Band – Old Hag you have Killed me (Polydor), 1976
De Danann – The Mist Convent Mountain (Gael-Linn), 1980
Dolores Keane & John Faulkner – Broken Hearted I’ll Wonder (Green Linnet), 1981
Whistleblinkies – Whistleblinkies 4 (Claddagh), 1986
Boys of the Lough – Farewell and Remember me (Lough / Shanachie), 1987
Patrick Street – Patrick Street (Green Linnet), 1988
17 – LAPÓNIA
Mari Boine Persen – Gula Gula (Real World), 1990
18 – SUÉCIA
Filarfolket – Smuggel (Temple), 1988
19 – DINAMARCA
Dronningens Livstykke – Traditional Arranged (Pan), 1990
20 – RÚSSIA – Tüva – Voices from the Land of the Eagles (Pan), 1990
21 – HUNGRIA
Kolinda – Kolinda (Hexagon), 1978
Sebö Ensemble – Hungarian Folk Music (Rounder), 1980
Marta Sebéstyen & Muzsikas – Muzsikas (Hannibal), 1987
22 – BULGÁRIA
Bisserov Sisters – Music from the Piri Mountains (Pan), 1980
Le Mystère des Voix Bulgares (4AD), 1986


ANDY IRVINE & DAVEY SPILLANE
East Wind
Tara, distri. Mundo da Canção



Andy Irvine (ex-Planxty, no bouzouki, sanfona), juntamente com o produtor e teclista Bill Whelas, são os mentores deste projecto, dedicado ao folclore dos Balcãs. Davey Spillane, mestre das “uillean pipes”, membro dos Moving Hearts e músico muito dado aos “blues” e ao rock, deixou-se levar. Os irlandeses fazem o que podem na reprodução dos difíceis compassos típicos da música desta região (7/8, 11/16, etc). Conseguem-no em termos técnicos, falham em termos anímicos. São síncopes que não lhes saltam de forma natural no coração. Márta Sebestyen vem do céu da Hungria para interpretar as baladas, procurando levar consigo, para o alto os seus compenetrados companheiros. Seduzidos pelos ventos de Leste, participam ainda os “virtuoses” Mairtin O’Connor, no acordeão, e Michael O’Súilleabháin no piano. (7)

LA CIAPA RUSA
Betanavola
Robi Droli, import. Etnia



Quinto álbum da discografia da banda de Piemonte e quinta obra-prima. Maurizio Martinotti, Beppe Greppi e os novos elementos – Devis Longo, Patrick Novara e Bruno Raiteri – voltam a construir um monumento ao folclore piemontês. Donatta Pinti, que faltou ao recente concerto do grupo no Porto por causa dos gatos, imprime à música, com a sua voz característica, uma nota de intimismo nas baladas, que alternam com o tom mais ensolarado dos instrumentais. Os Ciapa Rusa percorrem todo o espectro que vai da música antiga à ligeireza das “monferrini” da região. A sanfona electroacústica de Martonotti, simbolizando a aliança perfeita entre as margens do tempo, lidera uma lista de instrumentos e uma diversidade de registos que parecem não ter fim. Perfeito. (10)

ELENA LEDDA & SUONOFFICINA
Sonos
Biber, import. Etnia



Pela Sardenha passaram as culturas e civilizações fenícia, cartaginesa, romana, bizantina e árabe, entre outras. Mais tarde fez-se sentir aí a influência espanhola e de regiões como a Sabóia ou o Piemonte. Na actualidade, o império americano, das centrais nucleares e do turismo, tomou o seu lugar. Na música de Elena Ledda há revolta, lirismo e dramatismo. Como no flamaneco, nos “blues” ou no canto vocal corso. “Sonos”, sobre uma textura cristalina de guitarras e percussões, recupera a linhagem nobre dos instrumentos de sopro na Sardenha, das ancestrais “launeddas” (cuja sonoridade oscila entre o clarinete e a gaita-de-foles) ao saxofone actual. Vozes antigas e contemporâneas, numa odisseia contra a dominação estética alheia em que a assimilação das diversas músicas do Mediterrâneo pode funcionar como uma estratégia de sobrevivência. Só a voz de Elena, xamânica, lunar, é toda ela uma revolução. (9)

THE HOUSE BAND
Stonetown
Harbourtown, import. Etnia



São escoceses, o que não quer dizer que sejam avaros nas músicas que tocam. Para além da Escócia e da vizinha Irlanda, os House Band interpretam, com o mesmo à-vontade, temas tradicionais da Dinamarca, Noruega, Bretanha, Bélgica e Bulgária, ao lado de uma canção de Elvis Costello, outra de Archie Fisher e originais de Ged Foley, vocalista e tocador de gaita-de-foles de Northhumbrian e antigo membro dos Battlefield Band. Os House Band passam pelas várias tradições europeias sem se comprometerem com um estilo ou região particulares, à semelhança de uns Ad Vielle Que Pourra, com quem partilham, de resto, um certo tipo de sonoridade nas combinações gaita / acordeão / bombarda. (9)

IVO PAPASOV & HIS ORCHESTRA
Balkanology
Hannibal, import. Mundo da Canção e MVM



Quem viu Ipo Papasov tocar na televisão, numa emissão recente da Música no Dois, deve ter ficado sem respiração. O búlgaro toca clarinete como um diabo. Diz-se que a mãe de Ivo lhe cortou à nascença o cordão umbilical com a palheta de uma zurna. Nas festas de casamento de aldeia, para onde é muitas vezes solicitado, é costume a banda tocar toda a tarde e toda a noite, provocando a loucura colectiva. Ivo Papasov é o John Zorn da folk dos balcãs. E “Balkanology” um vento de demência: ragtime, baladas ciganas, improvisações “free”, danças búlgaras (horo, ruchenitsi, Kopanitsa…) e turcas em ritmo de “reggae”, de rock, de swing, seja o que for, em velocidade desenfreada. Três temas chegam para a voz impressionate de “tremolo” e modulações, de Maria Karafezieva falar com Deus. (9)

MUXICAS
Escoitando Medra-la Herba
Edigal, import. Etnia



Galegos até à medula, os Muxicas são um dos poucos grupos da sua região a resistir à electricidade e à “irlandização” que parece afectar actualmente grande parte doss seus conterrâneos. “Escoitando Medra-la Herba” permanece ancorado ao compo e aos seus rituais, às “muineiras” e ao cancioneiro medieval. Percussões, muitas, gaitas e sanfonas, marcam a pulsação do sangue e da terra. Uma criança conta uma história de gnomos e de uma pulga que sorri. Uma caix-de-música faz parar o tempo, enquanto um “boneco de palla” com coração escuta a voz do senhor dos ventos. Os Muxicas são populares sem serem popularuchos. Estão nos antípodas dos Milladoir e sintonizados com os Obradoiro, a quem dedicam uma canção. “Para os que gostam de escoitar o silêncio. Sem presas, sem pausas”. (8)

THE TANNAHILL WEAVERS
Cullen Bay
Green Linnet, distri. Megamúsica



Os Tannahill Weavers são um grupo emblemático da folk escocesa, conhecido em Portugal através dos álbuns anteriores “Dancing Feet” e “Land of Light”, que voltam a estar disponíveis nos escaparates. “Cullen Bay” apresenta a música tradicional da Escócia em toda a sua integridade. Excelentes as harmonias vocais e o virtuosismo dos executantes, com destaque para Iain MacInnes, nas “highland pipes”. “Cullen Bay” sintetiza o lirismo do canto gaélico, o ritmo marcial das tradicionais “pipe bands” e uma enorme fluência instrumental. Uma das canções fala de um homem que se apaixona (literalmente) por uma ilha. Não se veja aí nenhuma perversão. “Um escocês pervertido” – dizem os Weavers – “é uma coisa completamente diferente: um homem que prefere as mulheres ao whisky”. (8)

VASMALON
Vasmalon II
RG Music, import. Etnia



Na Hungria existe uma tradição de bons agrupamentos folk: Muzsikas, de Márta Sebestyen, Kolinda ou, menos conhecidos, Zsarátnok e Sebo Ensemble, citando apenas os que tiveram direito a importação nacional. Servindo-se de elementos comuns – a música cigana, as danças típicas, a música religiosa, sagrada ou profana, as baladas de amor e de trabalho – os Vasmalon diferem daqueles por um desejo incontrolável de transgressão. Heterodoxia que os leva às proximidades do jazz, à improvisação, à utilização do estilo vocal mongol (emissão simultânea de dois sons) ou, no tema final, um “blues” à boa maneira magiar, à paródia. Fora de série são a voz de Eva Molnár, uma potencial rival de Márta Sebestyen, e os fraseados de cristal de Kálmun Balogh, no “cimbalon”, espécie de saltério gigante. (9)

Oyster Band E Pierre Bensusan – “Oyster Band E Pierre Bensusan Actuam No Rivoli Do Porto – Danças De Copo Na Mão” (concertos / rivoli)

Cultura >> Sábado, 26.09.1992


Oyster Band E Pierre Bensusan Actuam No Rivoli Do Porto
Danças De Copo Na Mão


Música tradicional e rock ‘n’ rol nem sempre forma um casal feliz. Os Oyster Band celebram a aliança à mesa de um “pub”, dentro ou fora de portas. Para a banda inglesa é importante pôr toda a gente a dançar. E, passada a euforia do baile, fazer reflectir sobre o tom amargo das palavras.



A cidade do Porto volta a ser a capital da música Tradicional e não só. Oyster Band e Pierre Bensusan actuam hoje, às 21h30, no Teatro Municipal Rivoli, em mais uma iniciativa conjunta do Pelouro de Animação da Câmara Municipal do Porto com a MC – Mundo da Canção. Uma boa maneira de não perder o ritmo, enquanto crescem as expectativas sobre o Intercéltico do próximo ano, com a presença dos Chieftains já confirmada e uma série de outros nomes importantes em agenda.
Danças típicas inglesas, canções de intervenção e uma dose bem servida de entusiasmo constituem os ingredientes principais da música dos Oyster Band, banda que ao lado dos Pogues e dos The Men They Couldn’t Hang, dotou a música tradicional do Reino Unido, nos finais dos anos 70, com a energia do rock ‘n’ rol ou – melhor dizendo e de acordo com as correntes e os alfinetes da época – do punk. Se em relação às duas primeiras características os Oyster Band não fizeram mais que prolongar uma já longa tradição de bandas britânica de folk rock, já o item “entusiasmo” é inseparável do costume tipicamente “british” que preconiza a ingestão maciça de whisky e cerveja como forma de pôr o mundo e, sobretudo, a cabeça, a girar sobre rodas. Convém não esquecer que o “habitat” natural do britânico (seja ele inglês, irlandês ou escocês) é o “pub”. Os Oyster Band, como os Pogues ou os The Men They Couldn’t Hang, limitaram-se a trazer o “pub” para o palco. Num grupo restrito de amigos ou entre a agitação das multidões, o efeito não varia muito: euforia e dança.

Um Dilema Resolvido

Nos primórdios, a banda chamava-se The Oyster Ceilidh Band, o que lhe dava um certo ar de respeitabilidade entre os círculos folk eruditos. Com o advento do punk, resolveram que não queriam ser sérios. Pelo menos dessa maneira. Era preciso levar a loucura da dança e a embriaguez do álcool ao maior número possível de pessoas. As pessoas escusado será diz~e-lo, aderiram. As pessoas aderem sempre desde que se lhes ponha um copo na mão.
Não se infira daqui que os Oyster Band são um grupo de bêbedos. São é mais extrovertidos do que o habitual. E tão abstémios como Shane Mac Gowan, dos Pogues. “Step Outside”, de 1986, gravado na editora própria Pukka Records e posteriormente reeditado pela Cooking Vinyl, foi o primeiro brinde a um público ávido de dar ao pé ao ritmo de uma música genuinamente popular e com raízes nos problemas do quotidiano.
A entrada no grupo do violoncelista Chopper permitiu aos Oyster Band, segundo o violinista e teclista Ian Telfer, “estabelecer e criar condições mais profundas de familiaridade com uma grande variedade de estilos de música dedicada à dança”. Compromisso entre a tradição, a intervenção e a desbunda que os portugueses tiveram oportunidade de presenciar ao vivo na actuação dos Oyster Band há dois anos na Festa do “Avante!”, quando, na companhia da grande dama da folk que é June Tabor, se entregaram a uma versão “sui generis” de “All tomorrow’s parties”, dos Velvet Underground.

O Beijo Da Morte

Os anos 90 têm correspondido a esta fase de “um pé na folk, outro no rock”: versões de “Love vigilants”, dos New Order, e “New York Girls” e os álbuns “Freedom and Rain” (com June Tabor) e “Deserters”, do ano passado, deixam bem patente o gosto dos Oyster Band pelo rock ‘n’ rol que sabe respeitar os seus antepassados. Importa talvez, no final do baile, reter as palavras de Ian Telfer: “Ser-se inglês, em termos musicais, pode significar uma espécie de beijo da morte. Tem de se recorrer a tantas coisas para se ser radical e construir uma alternativa diferente e genuína! Uma cultura minoritária ou uma cultura que sente que tem algo a defender está sempre numa posição mais forte, tem um entendimento mais profundo e vigorosos da sua própria identidade.
A primeira parte do concerto do Porto será preenchida pelo guitarrista argelino, radicado em França, Pierre Bensusan, considerado um dos mestres actuais do “fingerpicking” e de outras técnicas de corda dedilhada. Ao vivo, Bensusan costuma submeter a sonoridade próxima da harpa, que caracteriza o seu estilo, a diversas transformações electrónicas, na criação de paisagens sonoras bizarras próximas do universo da “world music”.

Peter Gabriel – “Peter Gabriel” + “Peter Gabriel 2” + “Peter Gabriel 3” + “Peter Gabriel 4” + “So” + “Passion” + “Us” (dossier)

Pop Rock >> Quarta-Feira, 23.09.1992


PERDER O MEDO AOS MONSTROS



Em Peter Gabriel tudo se mistura num cadinho em constante ebulição: os sons que aprendeu a escutar do mundo, a tecnologia sofisticada, as suas próprias emoções. Entre os temas tratados em “Us”, o seu mais recente álbum, editado em Portugal, contam-se o medo, as virtudes do vapor e a domesticação de monstros. Mais uma gama razoável de relações amorosas. Enquanto não nasce a “Gabrieland”, uma Disneylândia futurista para os artistas brincarem. O mundo real funde-se com a realidade virtual.



Há uma inquietação constante em Peter Gabriel, que determina cada um dos seus passos e serve de motor a cada novo projecto. Antigamente, chamavam a este tipo de homens “idealistas” – os que procuravam ver a realidade através do maior número possível de perspectivas e que acreditavam que qualquer sonho podia e devia ser posto em prática. Peter Gabriel é um destes homens. Desde os tempos em que, nos Genesis, procurou alargar as fronteiras do rock, até a mistura pancultural do seu novo álbum, “Us”, passando pela criação da editora Real World e pela organização do primeiro festival WOMAD, acreditou sempre que poderia ir mais longe, e que era possível transformar o sonho em realidade.
Durante os últimos cinco anos, Peter Gabriel submeteu-se ao crivo da terapia psicológica. Por culpa de um divórcio e das confusões sentimentais arranjadas com a actriz Rosanna Arquette. A terapia é uma espécie de escavação nos terrenos baldios da alma, que permite encontrar, presos à terra, jóias e esterco. Peter Gabriel escavou até libertar o monstro que hiberna em todos nós. Numa das faixas de “Us”, intitulada, “Digging the Dirt”, ele explica todo o processo e, ao mesmo tempo, sossega-nos quanto às consequências. Os monstros ou demónios, diz ele, perdem o seu poder, quando são trazidos das profundezas para a luz do dia.
O vídeo deste tema, realizado por John Downer, parece, no entanto, não confirmar esta opinião, e mostra o paciente num estranho desempenho, entre fruta podre, cadáveres em decomposição e larvas de borboleta. De resto, Peter Gabriel passara por um período mais desequilibrado, no qual manifestara a intenção de compor um álbum sobre temas como a morte, o assassínio e a pena capital.
Acabou por inflectir na direcção oposta e assinar um disco, “Us”, que ele define como de “canções de amor”. Estranhas formas de amor e estranhas canções. A união de sangue entre Adão e Eva no paraíso (“Blood of Eden”); a influência do vapor (“Steam, definida pelo seu autor como uma canção “quente e húmida”); o desejo de purificação pela água (“Washing of the water”); princesas que beijam sapos na esperança de encontrarem príncipes mais ou menos encantados (2Kiss that frog”); o mundo secreto dos objectos (“Secret world”), entre outras experiências religiosas, sexuais e emocionais, integram a lista de temas que tornam “Us” uma amálgama, por vezes confusa, de estímulos provenientes do mundo real (por vezes, demasiado real).
O som é fruto da ressaca – ainda não curada – dos excessos de “world music” cometidos em “Passion”, ou seja, instrumentos étnicos às centenas, convidados às dezenas, muitos ritmos electrónicos como condimento, e canções que reatam a tradição dos álbuns antigos de Peter Gabriel até “So”. Daniel Lanois, o produtor, porque suportou sobre os ombros a tarefa de evitar excessos em que o cantor tenderia por vezes a incorrer, mas francamente, não se nota.
Enquanto “Us” já iguala iu ultrapassa o número de vendas de “So” – e muito ajudaram a saldar dívidas contraídas com a organização do primeiro WOMAD, uma ideia pioneira que, na época, não encontrou grande aceitação – Peter Gabriel vai sonhando com a companhia de Laurie Anderson e Brian Eno, com a Gabrieland. Uma espécie de Disneylândia tecnológica de futuro, laboratório, igualmente galeria de arte e campo de ensaios – onde não faltariam máquinas indutoras de realidade virtual, o mais recente fascínio de Gabriel, para artistas, psicólogos e toda a espécie de “loucos” poderem concretizar as suas ideias ou simplesmente se divertirem. O local já existe: 12 hectares de terrenos em Barcelona esperam a chegada do novo mundo. Seja real ou virtual.

PORTAS E JANELAS

Pode dividir-se a discografia completa de Peter Gabriel em três fases: a primeira, partilhada com os restantes elementos dos Genesis, constitui um dos capítulos mais brilhantes da música progressiva dos anos 70. É a fase da valorização poética, do sonho e das grandes encenações, vocais e teatrais. A segunda, que vai do disco homónimo de 1977 até “So”, corresponde à visão solitária de um poeta que trocou, como fonte de inspiração, as fantasmagorias vitorianas pelo pesadelo urbano. Uma fase de dilaceração e, em simultâneo, de construção de uma personalidade nova. A terceira, com preâmbulo nos festivais WOMAD e na criação da editora Real World, mostra um Peter Gabriel liberto de si próprio e com o coração, os olhos e os ouvidos voltados para as músicas do mundo. Começou com “Passion” e encontrou um ponto de equilíbrio precário no novo “us”. Resta saber se tudo permanece em aberto ou se, pelo contrário, Peter Gabriel foi dar a um beco enfeitado de exotismos. Ele que um dia afirmou ser perito em abrir portas e janelas.


Peter Gabriel (1977)



Os Genesis tinham ficado para trás, mas as feridas não estavam totalmente saradas. “The Lamb Lies down on Broadway”, derradeira obra do quinteto, saíra na quase totalidade da pena do seu actor / vocalista. Era chegado o tempo de afirmação de uma personalidade… também de mudança para outras latitudes. O primeiro trabalho a solo marca a ruptura de Peter Gabriel com a viagem de contador de fábulas que os discos da banda punham em relevo. À poesia de canções como “Solsbury Hill” , “Humdrum” e “Down the dolce vita”, ainda não totalmente afastadas do veio Genesis, Gabriel contrapõe a violência ainda bastante controlada e sobretudo temática, de “Modern Love” e “Waiting for the big one”. “Moribund the Burguermeister” prenuncia, à distância de mais de uma década, o mergulho nas sonoridades world. “Here comes flood” é um hino apocalíptico que até hoje continua a queimar a memória. A guitarra de Robert Fripp ateia os primeiros incêndios.

Peter Gabriel 2 (1978)



O som torna-se mais agressivo. A magia do mundo de histórias e da Inglaterra vitoriana apaga-se em definitivo. Ficam as sombras e as ameaças. Peter Gabriel aprende cada vez mais depressa a tirar partido da paranoia. As capas dos discos acompanham o processo que em breve se mostraria ser de desagregação. Na do primeiro, o cantor parece fechado no interior de um automóvel, ao abrigo da chuva (do dilúvio). A imagem é de tristeza e abandono. Agora passa a ser de fúria. As mãos “rasgam”, do interior, a fotografia. O ar é demoníaco. Na contracapa, Peter Gabriel atravessa uma paisagem de lixo urbano. Tudo a preto e branco, como convém. “Mother of violence” e “Animal Magic” dão expressão a esse fogo. A essa quase luta pela sobrevivência. “Exposure”, recuperado posteriormente para o álbum do mesmo nome de Robert Fripp, e “White Shadow”, o tema mais perturbante, em que se torna nítida a influência das concepções musicais do antigo guitarrista dos King Crimson, balizam o caminho que viria a ser percorrido no álbum seguinte.

Peter Gabriel 3 (1980)



Até à data, o disco onde melhor se expressam as diversas divagações estéticas exploradas pelo ex-Genesis. Passando incólume pela avalancha punk, Peter Gabriel afirma orgulhosamente que sabe “qualquer coisa sobre abrir portas e janeasl”. “No self control”, “I don’t remember”, “And through the wire”, “Family snapsot” confirmam na verdade as suas reais capacidades de serralheiro. O som torna-se mais complexo, a par da violência, sempre crescente, e da teia intricada de sentidos sugerida pelos textos. Aproxima-se o ponto de combustão. E do não retorno. As preocupações sociais, que nos Genesis se ocultavam por detrás do humor “nonsense” e da simbologia surrealista, como acontecia em “Harold the barrel” (de “Nursery Cryme”) ou, de forma mais directa e interveniente, em “Get ‘em out by Friday” (“Foxtrot”), são atiradas para a primeira linha das inquietações do autor, na paródia ao eurovazio de “Games without frontiers” ou no manifesto anti-“apartheid”, “Biko”. O poder do batuque aumenta a intensidade – Gabriel dispensa a utilização de outros instrumentos de percussão para além dos tambores que aqui rivalizam com os prodígios do recém-descoberto Fairlight CMI, pai de todos os samplers. A capa apresenta o rosto do artista corrído e deformado por ácidos. O processo alquímico passava pela fase do “putrefacto”.

Peter Gabriel 4 (1982)



Regresso a casa, por ínvios caminhos. Não parece, mas é o álbum mais próximo dos Genesis, da primeira fase, evidentemente. Música progressiva, camuflada por uma utilização maciça de electrónica, em registo barroco e sobrexposição de imagens. Capa colorida por filtros e efeitos vídeo. Dentes que rangem. Dor. Poderia ser a continuação da “trip” de ácido de “The Lamb Lies down on Broadway”. “The family and the fishing net”, “Lay your hands on me” e, sobretudo, “Wallflower” não destoariam ao lado das boas canções dos Genesis. “I have the touch” e “Shock the monkey” usam e abusam dos ritmos electrónicos. “Rhythm of the heat”, “San Jacinto” e “Kiss of life” dos ritmos tribais. Faltava apenas ultrapassar a barreira do rock e do sucesso – o que Peter Gabriel conseguiu, no álbum seguinte – para se abrir de par em par a porta de acesso aos mundos do “mundo real”.

So (1986)



Entre os dois álbuns de estúdio, Peter Gabriel deixou registado o duplo “Plays live”, em cuja capa curiosamente aparece fotografado com o rosto pintado, ao estilo característico das antigas encenações nos Genesis. “So” é conciso, no título e nos sons. Mais directo e acessível do que qualquer dos discos anteriores, recupera a energia depurada do rock ‘n’ rol. “So” representa para Peter Gabriel o mesmo que “Nadir’s Big Chance” para Peter Hammill – a libertação e o exorcismo da tensão acumulada ao longo de vários anos de busca constante de novas formas musicais, a par de novos meios de expressão, poética e conceptual. O descanso do guerreiro. O disco alcança um sucesso sem precedentes. Nos Estados Unidos atinge o primeiro lugar do “top” de vendas, no Reino Unido sobe ao número quatro. “Sledgehammer”, editado em single, é ao mesmo tempo a síntese perfeita da nova orientação seguida por Gabriel e um dos vídeos mais inovadores da história do rock. Resultados compensadores para um trabalho cujo orçamento rondou as 120 mil libras e que demorou perto de 100 horas a gravar. Rentabilizam-no as presenças, entre outros convidados, do senegalês Youssou N´Dour e de Kate Bush, que ao lado de Gabriel contribui com a sua voz para um dos piores (e mais divulgados) temas do disco, “Don’t Give Up”.

Passion (1989)



Banda sonora da “Paixão” filmada por Scorceses. Primeiro volume da série Real World. O termo “world music” começou aqui. A música propriamente dita já existia há alguns milénios. Não havia era produtores interessados. “Passion” é tudo o que imaginamos a respeito de flautas de bambu, tambores do Mali e cânticos rituais das mais recônditas regiões do globo. Os sintetizadores são o catalisador que evita o choque de sensibilidades entre o Ocidente e o terceiro, quarto, quinto mundo e seguintes. “Passion” é um desfile de lugares-comuns onde a beleza é tudo menos natural. Bem mais genuíno, e sem a participação directa de Gabriel, é “Passion Sources”, o objecto intacto, não polido, o verdadeiro, o único, o inimitável “mundo real”. O álbum é também um galarim de músicos não ocidentais: Hosam Ramzy, Manu Katché, Shankar, Vatche Housepian, Mustafa Abded Aziz, Baaba Maal, Youssou N’Dour, Nusrat Fateh Ali Khan. E Jon Hassell que tem um pé de cada lado. Paixão, da que inflama sem remédio, é que não há muita.


“UNITED COLOURS OF GABRIEL”
PETER GABRIEL
CD / MC / 2xLP, Real World, distri. Edisom



Em termos conceptuais “Us” apresenta diversas pistas e coincidência interessantes. Peter Gabriel é, antes de mais, um homem de ideias, de projectos. A música vem depois, como complemento. “Us” aborda, segundo o seu autor, o problema da “união” – de dois seres, dos sexos, de culturas afastadas, das relações humanas em geral – a diferentes profundidades e com índices de êxito variáveis. Isto numa altura em que o ex-Genesis se libertara do fantasma do divórcio com Jill Moore, com quem mantivera uma relação de váriosa anos, e da relação extra-conjugal com a actriz Rosanne Arquette. O tema da união aparece logo mencionado, de forma oblíqua, na capa, com a imagem de um Petr Gabriel azul perseguindo uma figura fantasmagórica de mulher. A “outra” ou a sua própria polaridade feminina, que os antigos filósofos herméticos desiganavam por “alma” e os latinos por “anima”? O fundo aparece pintado de vermelho-rubi, cor que em termos simbólicos, alquímicos, simboliza a última fase da obra, correspondente à união final, às núpcias e ao renascimento do andrógino original.
“Us” é “nós” ou sigla acidental de “United states”? Estados Unidos, estados de união, com quê e com quem? A música, os textos, as próprias explicações do autor permitem algumas respostas.
Em termos musicais “Us” pode definir-se como um compromisso entre a visão “personalista” de toda a discografia de Gabriel até “So” e a “overdose” de sonoridaees “world” de “Passion”: ritmos tribais, instrumentos exóticos rebuscados de vários pontos do globo, electrónica em dilúvio constante e as vocalizações inconfundíveis de um Peter Gabriel que parece ter ficado refém de um número restrito de fórmulas já antes exploradas. Temas há que remetem para outros mais antigos: “Come talk to me” está na mesma linha de “I have the touch” (do álbum nº 4), “Steam” é a continuação de “Sledgehammer” (de “So”), “Only us” entronca no grupo de “Family & the snapshot” (do terceiro álbum) e assim sucessivamente, num repisar de esquemas conhecidos.
Outro esquema que se repete é a utilização de uma convidada feminina. Depois de Kate Bush chegou a vez de Sinead O’Connor acrescentar um pouco de sal vocal a temas como “Come talk to me” e “Blood of Eden”. São possíveis aproximações divertidas. “Blood of Eden” junta o violino de Shankar, a voz da vocalista careca e versos como “I feel the man in the woman and the woman in the man” (força, união!) numa espécie de “world gospel” com sabor a Paul Simon e a meninos de Deus, num registo idêntico ao dos piores horrores vocais de “Passion”. Também não deixam de ser engraçados os ocasionais pontos de encontro, ao nível das vocalizações, de Gabriel com Phil Collins, em “Love to be loved” num arranjo etéreo a que não é alheia a presença de Brian Eno, ou com Roger Waters (de “The Wall”), em “Washing off the water”, tema não muito distante de “Here comes the flood”.
“Digging in the dirt”, single lançado previamente no mercado, explora o lado negro da personalidade e lá está Peter Hammill dando o seu apoio vocal sob a forma discreta de um eco gutural, ele que sempre foi paleólogo e escafandrista das regiões interiores. “Steam”, o tal prolongamento de “Sledgehammer” é violento q.b., entre falsetos de angústica e uma secção de metais que recria os bons velhos tempos em que a Stax tinha “soul”. Neste e noutros temas, David Rhodes mostra-se um exímio guitarrista. “Only us” pisca o olho ao psicadelismo. “Fouteen black paintings” é étnico até à saturação e “Kiss that frog”, efabulação psicológica sobre a puberdade feminina, inclui alusões (Gabriel chama-lhe “subtexto”) sexuais. Finalmente, “Secret world” é maquinal à maneira dos Kraftwerk, melódico à maneira de Eno dos tempos de “Taking Tiger Mountain” e tão secreto como uma “canção de amor”. “Us” pode considerar-se, todo ele, de resto, um disco de canções de amor.
Registe-se por último – entre a miríade de músicos convidados dos quatro cantos do “mundo real”, os ilustres Sinead O’Connor, Eno, Peter Hammill e Shankar, ou os “session men” de nomeada que são Manu Katche, David Rhodes, Richard Blair, David Botrill e Tony Levin – as presenças inesperadas de Caroline Lavelle, no violoncelo, do grupo irlandês Touchstone, do mago das misturas William Orbit, mentor do projecto The Orb, ou do ex-Led Zeppelin John Paul Jones que depois da participação no novo trabalho de Brian Eno, “Nerve Net”, volta a figurar numa ficha técnica de prestígio.
“Us” é um por todos e todos por um. A união faz a força. (7)