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June Tabor – “O Silêncio É Tão Importante Como As Notas” (entrevista | discografia seleccionada)

pop rock >> quarta-feira, 24.02.1993


“O SILÊNCIO É TÃO IMPORTANTE COMO AS NOTAS”

June Tabor tem um ritmo próprio. De falar e de cantar. Misto de solenidade e alegria. Começou nas baladas da tradição inglesa “a capella”, passeou pelo jazz e divertiu-se a vestir blusões de cabedal e a cantar canções dos Velvet Underground e Oyster Band. Hoje canta as canções que lhe falam directamente ao coração.



June Tabor vem cantar a Portugal pela terceira vez. Nas suas anteriores passagens pelo nosso país, ambas em Lisboa, no mesmo ano de 1991 – primeiro em Junho, no Coliseu dos Recreios, em espectáculo integrado na edição inaugural do Folk Tejo, depois em Setembro, no relvado do Jamor, na Festa do Avante! -, a cantora não terá encontrado as melhores condições para fazer ouvir o registo intimista da sua música. O som e o ambiente não ajudaram. Desta vez, espera-se, tudo será diferente, para melhor. Considerada uma das maiores “folk singers” britânicas de sempre, a sua voz, de timbre puro e austero, projecta-se como luz – umas vezes velada, outras radiante – numa catedral. Especialista no canto tradicional “a capella”, foi alargando, ao longo dos anos, o seu campo de acção. Hoje canta com o mesmo à vontade as baladas ancestrais da velha Albion, “standards” de Cole Porter, Gershwin, Ellington, Charles Mingus e Thelonius Monk, ou uma descarga eléctrica dos Velvet Underground. Gosta sobretudo de canções que contem uma história. Em cerca de 20 anos de carreira não gravou muitos discos. Mas os que gravou (seis a solo, um de parceria com Martin Simpson, dois com Maddy Prior, outro com os Oyster Band, mais a participação no mítico “The Transports”, de Peter Bellamy) tornaram-se, quase todos, clássicos. “Angel Tiger”, o mais recente, revela June Tabor no auge da criatividade. Uma grande cantora, perto da perfeição.

PÚBLICO – Comecemos pelo estômago. Esteve até 1988 à frente de um restaurante. Considera o alimentopara o corpo tão importante como o alimento para o espírito?
JUNE TABOR – O restaurante foi uma coisa boa, que me mantinha muito ocupada. Não me deixava tempo para cantar. Quando foi vendido, pensei que finalmente era chegada a altura de me dedicar à música em tempo inteiro.
P. – Por que demorou tanto até tomar essa decisão?
R. – Bem, quando comecei a minha carreira, há cerca de 20 anos, não queria ficar dependente da música. Não me queria sentir comprometida. Tinha medo que, se essa fosse a minha única ocupação, não pudesse ser aquilo que queria. Nessa altura tinha uma profissão – bibliotecária – e não queria abdicar dela. Podia ao mesmo tempo cantar a música de que gostava e, como bibliotecária, ganhar o dinheiro que precisava para viver. Sentia-me bem assim.

Segredos Do Canto

P. – Que relação mantém hoje com a cultura tradicional inglesa?
R. – Ainda canto algumas canções dessa tradição. Aquelas em que sinto as palavras. Sempre escolhi as canções em função das palavras. As melhores canções tradicionais são intemporais. Pode haver uma balada com 200 anos mas que continua a ser actual. Recuso-me a cantar peças de museu. A música tradicional não pode continuar uma coisa viva se não sofrer mudanças. Porque as circunstâncias actuais são outras.
P. – Houve uma época em que foi considerada uma purista. Estou a lembrar-me do escândalo que causou quando decidiu utilizar um sintetizador no álbum “Ashes and Diamonds”…
R. – Ainda hoje muitas pessoas pensam que, se eu não cantar só sem acompanhamento, é uma heresia (risos). Então um sintetizador, “oh my God!”.
P. – O mais curioso é que o novo álbum, “Angel Tiger”, está bastante próximo, em termos de sonoridade, de arranjos e de ambiência, dessa obra de 1977, não concorda?
R. – Sim, de facto, o ambiente e os arranjos, que são bastante austeros. É uma aproximação [“approach”] às canções que procura eixar as palavras e a melodia falarem por si próprias. O acompanhamento deve suportar as palavras e não escondê-las. Se as palavras são boas, deve-se-lhes dar espaço.
P. – Por outro lado, nota-se que dá cada vez mais importância ao acompanhamento instrumental, em detrimento das vocalizações “a capella” que constituíam grande parte do seu reportório antigo…
R. – Quando comecei, sabia cantar mas não sabia tocar qualquer instrumento. Hoje, continuo a não saber (risos). Era a maneira mais fácil de começar, por temas tradicionais “a capella”, que têm um esquema melódico rigoroso. Deste modo era possível apresentar-me em público sozinha. Depois fui conhecendo outros músicos, instrumentalistas, e a compreender o que podia ser feito com instrumentos. E também a encontrar outro tipo de canções, que queria cantar mas que não se aguentavam “a capella”, por não terem sido escritas para esse fim. Além disso, a força das vocalizações “a capella” sai fortalecida se estas forem integradas no meio de canções com acompanhamento. Sobressaem muito mais. Actualmente, nos meus concertos, este estilo aparece como uma espécie de destaque. Já não dou concertos exclusivamente “a capella”.

Questões De Estilo

P. – O que sente ao ouvir a sua voz registada nesse álbum já velhinho e lendário que é “The Transports”, do malogrado Peter Bellamy?
R. – Digo para mim mesma: “Sou realmente eu?” [Risos.] Neste intervalo de quase 20 anos a minha voz mudou. Tornou-se mais profunda, mais madura, pelo menos assim o espero (risos). Quando ouço discos meus antigos, às vezes é-me difícil aceitar que seja a minha voz. Admiro-lhe a técnica, mas prefiro a actual. Penso que canto muito melhor do que cantava, embora admita que em termos rigorosamente técnicos, não seja tão tecnicista como antes.
P. – Um dos seus projectos mais bem-sucedidos é o duo Silly Sisters, com Maddy Prior. Após dois álbuns brilhantes [“Silly Sisters” e “No More to the Dance”], nunca mais se ouviram cantar as duas juntas…
R. – Costumamos fazê-lo uma vez em cada dez anos (risos). Mas actualmente é mais difícil cantar em conjunto com Maddy, porque as nossas vozes mudaram. A de Maddy tornou-se mais aguda e a minha mais grave. E é mais difícil encontrar tonalidades que possam ser cantadas em conjunto pelas duas. Antes podíamos trocar, uma cantava a melodia, outra a melodia, e vice-versa. Hoje é mais problemático. Por outro lado, os estilos de canções que cada uma de nós deseja cantar tornaram-se cada vez mais afastados.
P. – “Some Other Time” [1989], um álbum de “standards” de jazz, não foi muito bem recebido pela crítica. Será porque a sua voz não se adapta a esse género de canções?
R. – O problema está em que a maior parte dessas críticas é de ordem subjectiva. As pessoas pensam que à partida, eu não devo cantar esse tipo de canções. Elas não as querem ouvir da maneira como as canto. Têm um preconceito, que eu não devo, ou não consigo, cantar “jazz”. A questão essencial de “Some Other Time” é que eu não estava a tentar transformar-me numa cantora de jazz. Apenas quis pegar em canções do reportório de jazz que tivessem letras fortes, que contassem boas histórias, e cantá-las à minha maneira. Nos concertos em Portugal vou cantar quatro temas do reportório de jazz. Com Huw no piano, Mark Emerson, violino e viola de arco e Mark Lockheart e saxofone e clarinete.

A Voz Do Silêncio

P. – A que se deveu a colaboração, ao vivo e em disco, com os Oyster Band? Um desejo de vestir blusões de cabedal ou algo mais?
R. – Gostei e continuo a gostar de cantar com os Oyster Band. E, já agora, de vestir blusões de cabedal (risos9. Foi uma experiência que, penso, resultou bem. O “show” em Portugal [na Festa do Avante!” em 1991] não aconteceu talvez no melhor local…



P. – Da outra vez que actuou em Portugal, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa [na primeira edição do Folk Tejo, em 1991], a música esteve imaculada, mas o som voltou a falhar…
R. – Sim, a música foi óptima. Em salas grandes como essa é impossível conseguir um som perfeito, porque não foram projectadas para este tipo de música. Prefiro tocar em teatros pequenos.
P. – Não em clubes folk, disse-o uma vez…
R. – A minha música não é propriamente para se ouvir de pé. Um teatro é mais confortável, as pessoas podem concentrar-se melhor. E pode controlar-se o som. O que nós fazemos é muito subtil, delicado mesmo. O silêncio é tão importante como as notas, como a música. É necessário poder criar a atmosfera certa. Esta é uma luta constante. Não acontece só em Portugal, em Inglaterra também.
P. – Que critério seguiu, na escolha dos compositores, em “Angel Tiger”? Escolhe os autores ou são eles que vêm ter consigo?
R. – Na maioria dos casos há uma escolha prévia. Em “Angel Tiger” só constam, a meu pedido, duas canções escritas: “All this useless beauty”, de Elvis Costello, e “The doctor calls”, de Ian Telfer, dos Oyster Band. Conhecem ambos a minha música e os meus gostos. Mas é sempre um risco… Felizmente gostei das duas. Seria embaraçoso chegar ao pé de Elvis Costello e dizer-lhe: “Obrigado, Elvis, mas não gostei!” [Risos]. Mas a escolha é minha. Posso sempre dizer que não.
P. – Disse recentemente, numa entrevista, que podia ter feito um álbum inteiro apenas com canções de Les Barker. O que encontra de especial neste autor?
R. – É o exemplo de alguém que trabalha a partir da tradição. Ele usa melodias tradicionais, peças instrumentais ou canções com versos em várias línguas, em gaélico ou outra qualquer, e trabalha até ficar totalmente familiarizado com elas. Depois escreve palavras novas que se adequem. Quase tudo o que ele escreve me fala ao coração e está de acordo com as minhas opiniões.
P. – Já agora, há algo mais que fale ao seu coração? Sei que gosta de gatos…
R. – Gatos e cães. Tenho quatro gatos, seis cães e… um burro.
P. – Pode explicar-nos em que consiste o projecto Passendale, em que vai colaborar?
R. – Passendale foi uma batalha travada em 1917, durante a I Guerra Mundial, de Julho a Dezembro. 500 mil homens morreram nessa ocasião, de ambos os lados. Um desperdício absurdo de vidas humanas. Esse acontecimento, no ano em que se comemora o 75º aniversário do fim da I Grande Guerra, vai ser evocado numa série de espectáculos ao vivo, com músicos de várias nacionalidades e canções desse conflito, a par de outras que falam da futilidade da guerra em geral. Participo eu, com Huw e Mark, uma cantora flamenga, três músicos árabes, um cantor e tocador de “oud” do Líbano e uma cantora sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz. A intenção é dizer que a guerra não conduz a nada, uma coisa inútil que, apesar disso, está sempre a acontecer.
P. – O termo “world music” faz sentido para si?
R. – É um termo que se usa e de que se abusa. Deveria haver alguém mais sincero e chamar-lhe antes “música do Terceiro Mundo”, porque é disso eu se trata. Por mim, gosto de ouvir música da Ásia, da Escamdinávia… Não encontro muito com que me identifique na música africana, embora admire as suas técnicas, em particular dos cantores. Mas toda a música é subjectiva.
P. – Porque falou em técnica, já tentou cantar baladas irlandesas, em gaélico, por exemplo?
R. – Irlandesas sim, em gaélico não, porque não domino a língua. Nunca gravei nada nesse domínio. Há quem o faça muito melhor do que eu. Mas posso decorar o estilo, se quiser. Desde que as palavras sejam boas. Se quiser, nos concertos em Portugal posso cantar uma canção irlandesa para si (risos).
P. – Obrigado. Por falar em canções, em “Ashes and Diamonds” há uma belíssima, intitulada “Lisbon”. Pensa cantá-la em Portugal?
R. – É uma óptima ideia. Já não canto essa canção há imenso tempo. Obrigado pela sugestão. Vamos ensaiá-la nas próximas semanas [esta entrevista foi feita em meados de Janeiro]. Vou mesmo cantá-la!

LISBOA, TEATRO SÃO LUIZ, 28 DE FEVEREIRO, 22H
BRAGA, TEATRO CIRCUS, 1 DE MARÇO, 22H
PORTO, TEATRO RIVOLI, 2 DE MARÇO, 22H


DISCOGRAFIA SELECCIONADA

ASHES AND DIAMONDS, TOPIC, 1977
Primeira obra-prima. O álbum do “escândalo”. Nele, June Tabor, purista das puristas, utilizou um sintetizador. Canções “a capella” como a prova de fogo “Clerk saunders”, “The Easter tree” e “No man’s land” rivalizam com os arranjos instrumentais, belíssimos, de “Now, I’m easy”, “The earl of Aboyne” e “Cold and raw”. Dois duetos de maravilha: com o piano, em “Streets of Forbes” e com o sintetizador, em “Lisbon”, balada que evoca o encontro amoroso de uma portuguesa com um marinheiro inglês, no porto de Lisboa, durante a Renascença. Jon Gillespie era então o teclista. Participações de dois Steeleye Span, Rick Kemp e Nigel Pegrum. E de Nic Jones, um grande guitarrista da “folk” inglesa.

A CUT ABOVE, TOPIC, 1980
Encontro com outro guitarrista célebre do circuito “folk” inglês, Martin Simpson (que ensinou June Tabor a olhar para sons mais contemporâneos), e mais uma viagem pela tradição da ilha, desta feita com uma aproximação às sonoridades medievais. Dave Bristow substitui Jon Gillespie nos teclados. Ric Saunders (Soft Machine, Albion Band, Fairport Convention) traz para a música o virtuosismo do seu violino. Um álbum de que pouco se fala (há quem prefira a maior contenção de “Abyssinians”), mas que é um dos mais conseguidos.

AQABA, TOPIC, 1988
Deslumbrante. Nesta altura June Tabor passeava a voz e o talento por músicas de outras paragens. É o disco de apresentação de Huw Warren, em quem a cantora parece ter descoberto o parceiro ideal. Os tradicionais “a capella” ora pairam no éter, ora explodem nas vibrações vocais de June Tabor. A expressividade emocional levada ao ponto de equilíbrio perfeito. As irrupções bruscas do clarinete e do saxofone, a par do ambiente de religiosidade, formam como que uma extensão vocal das liturgias de John Surman para a ECM.
O título-tema, composto por Bill Caddick, integrou-se de imediato no grupo das melhores canções e interpretações de sempre da música inglesa de raiz tradicional.

ANGEL TIGER, COOKING VINYL, 1992
Álbum da maturidade. A aliança de recursos vocais aqui distribuídos por uma gama infindável de registos, com uma serenidade e segurança inquebrantáveis. Nada há para provar, senão que cada canção ganha, através do canto de June Tabor, significados e uma energia próprias. Como se ela fosse a única que lhes consegue descobrir o coração. Elvis Costello e Ian Belfer, dos Oyster Band, escreveram especialmente para a cantora. A divindade felina estendeu sobre June Tabor um sortilégio. Uma cantora em estado de graça.

NO MORE TO THE DANCE (SILLY SISTERS, DUO COM MADDY PRIOR), TOPIC, 1988
Não podia ser de outro modo: As vozes de duas divas da “folk” britânica irmanadas numa causa comum – de amor a uma tradição que ambas sempre serviram e ajudaram a potencializar – combinam da melhor maneira e o resultado é um disco de música de inspiração tradicional, que marcou os anos 80. E uma reunião de estrelas que aqui participam: Dan Ar Braz, Andrew Cronshaw, Paul James e Nigel Eaton (dois ex-Blowzabella), Patsy Seddon e Mary McMaster (duo Sileas). Para todos aqueles a quem o termo “música celta” quer dizer tudo, este é um dos seus tesouros mais valiosos.

Vários (Vai de Roda, Gwendal) – “Festival Intercéltico Terminou – Bruxas À Solta No Porto”

Secção Cultura Segunda-Feira, 22.04.1991


Festival Intercéltico Terminou
Bruxas À Solta No Porto


Os portugueses Vai de Roda e os bretões Gwendal fecharam, com chaves de ouro e prata, a semana da Bretanha. Os portugueses provaram que o futuro é compatível com a tradição. Os bretões apostaram na fusão de estilos e no virtuosismo. Durante quatro dias, o Porto foi a capital celta.



António Tentúgal, ficou provado, é um perfeccionista. Sábado, no espectáculo ao vivo dos Vai de Roda, nada foi deixado ao acaso, de maneira a transformar a sala do Teatro Rivoli num palácio se sortilégios. Ainda as pessoas se acomodavam nos respectivos lugares e já, na penumbra do palco, se faziam ouvir os “espanta diabos”, chocalhos e assobios, a afugentar os maus espíritos e a criar a atmosfera propícia à vinda das “bruxinhas boas”.
Tentúgal (sanfona, braguesa, “tin whistle”, acordeão e ponteira), Bilão (braguesa, bandolim, “bodhran” e harmónica), Tinó (acordeão), Cristina (sintetizadores), Emanuel (violino) e Miguel Teixeira (guitarras clássica e folk, braguesa, cavaquinho e percussões) recriaram, no recinto, um mundo mágico, encenado e narrado em histórias de encantar e lenga-lengas que evocam memórias ancestrais perdidas nas brumas do tempo.
Ao contrário de outros grupos que por aqui passaram (como os Na Lua ou os próprios Gwendal), nos Vai de Roda a electricidade não se intromete nos assuntos do espírito, antes com ele se casa e harmoniza. Os sintetizadores manipulados pela Cristina servem a natureza e a fonte tradicional, arquitectando ventos e trovoadas ou compondo ressonâncias palacianas fundadas em ritmos nascidos das entranhas da terra-mãe digita.
“Rosinha vem-te comigo” foi o tema escolhido para abrir o concerto, embalado no enovelar da sanfona e na doçura das palavras cantadas por Tentúgal, criando desde início, entre o público, um espaço de silêncio maravilhado. Público que no fim se rendeu completamente ao universo onírico dos Vai de Roda, culminado, de forma sublime, na interpretação do tradicional transmontano “La Vitorina”. Depois, impressionaram as vozes de todos os elementos masculinos da banda, juntas nas celebrações do “S. João” e a concepção teatral a que todo o concerto obedeceu, de modo a tornar as canções de “Terreiro das Bruxas”, numa espécie de livro de histórias a que não faltou sequer o toque picaresco do erotismo popular, na narração dos amores proibidos entre um alho-porro e uma donzela inocente… Os Vai de Roda regressaram ao palco para um merecido “encore”, através do instrumental “Realejo sacabruxas”, de mãos dadas com o mafarrico, que deixou no ar um aroma de flores e enxofre.
Os Gwendal, fundamentalmente um duo constituído por Youenn le Berre (flauta electrificada, “tin whistle” e gaita-de-foles”) e Robert Le Gall (violino electrificado e guitarra eléctrica), acompanhados na ocasião por quatro músicos, nos sintetizadores, baixo, guitarra eléctrica, guitarra acústica amplificada e bateria, interpretaram temas do seu mais recente disco “Glen River”, utilizando a receita habitual – técnica irrepreensível de todos os executantes (com destaque para as proezas na flauta de Le Berre), electricidade à solta e uma mistura de estilos que abrange o jazz, a música africana, as danças bretãs e os endiabrados “airs” e jigas irlandeses. Houve espaço para tudo, até para solos de bateria e guitarradas que mais faziam lembrar os Dire Straits. Oscilando entre o bom (nos temas mais tradicionais) e o péssimo (nas “rockalhadas” de bailarico de subúrbio), os Gwendal disfarçaram contudo os pontos fracos com as proezas técnicas dos músicos. Ainda houve quem, ao canto da sala, se atrevesse a dançar, mas a complexidade dos compassos e dos arranjos cedo desmotivou os atrevidos.
Feito o balanço do Festival, fica a certeza de um sucesso organizativo, em termos artísticos e de bilheteira, e a promessa de, para o ano, regressar ainda com mais força, se possível, integrado, a exemplo do “Fantasporto”, na programação oficial da Câmara Municipal. A cidade e a música só teriam a lucrar.
Uma palavra final de louvor para a organização, a cargo da Mundo da Canção, através dos seus mentores, Avelino Tavares e Mário Correia, impecáveis em todos os aspectos, sem esquecer Bernard Despaumadères (gaulês de coração tripeiro), do Instituto Francês do Porto, entidade produtora do Festival, que soube como ninguém fazer a ponte entre a capital nortenha e a Bretanha. O mundo celta está de parabéns.

Vários (Bagad Kemper, Jig, Na Lua) – “II Festival Intercéltico – Portuenses E Bretões Vencem Rock Galego”

Secção Cultura Domingo, 21.04.1991


II Festival Intercéltico
Portuenses E Bretões Vencem Rock Galego


Bretanha, Porto e Galiza, apresentaram-se no Teatro Rivoli. Se os bretões Bagad Kemper penetraram nas profundezas das “gavottes” e “an dro” bretãs, e os portuenses Jig foram a revelação do Festival, já os galegos Na Lua desiludiram, perdidos entre um som que não ajudou e uma indefinição estética que descambou num “folk ‘n’ rol” de qualidade duvidosa.



Antes da música, novamente a gastronomia bretã, desta vez representada pelos crepes e pela cidra, ajudou a preparar os espíritos para as cerimónias seguintes. Os Bagad Kemper, que durante a manhã transportaram a sua música e alegria até à baixa do Porto, abriram com chave de ouro as festividades nocturnas, no teatro Rivoli. Quinze músicos, divididos por três secções de gaitas-de-foles, bombardas e percussões, interpretaram uma sequência de “suites” da região que fez estremecer os alicerces do recinto e mergulhou o público num estado de transe telúrico. Momento muito especial, aquele em que as percussões se libertaram e, a solo, escavaram fundo nas rochas das costas encantadas da Bretanha.
Mestria técnica, um reportório criteriosamente selecionado do cancioneiro celta e muito entusiasmo, conferiram aos Jig, do Porto, o estatuto de grande revelação do Festival. Da Irlanda das florestas e dos duendes, mas também dos “pubs” eufóricos de Whiskey, fumo e Dubliners, a Trás-os-Montes, do “bluegrass” americano aos confins gelados da Terra-Nova, os Jig confirmaram-se como uma das melhores bandas do género, em Portugal. Congregando músicos provenientes da formação antiga dos Vai de Roda e da banda de “country” King Fisher’s Band, os Jig, em actividade desde 1986, surpreenderam pelas capacidades técnicas evidenciadas e pela completa assimilação da temática e sensibilidade célticas. Alfredo Farinha (bandolim e concertina), Carlos Adolfo (guitarra), Manuel Salselas (baixo), Manuel Apolinário (flautas transversal e de bisel), Isabel Leal (voz), Joaquim Teles (percussão) e Arlindo Silva (violino), fazendo jus ao nome, abriram com o crescendo rítmico de “King of the faeries” (tema que integra a gravação de Alan Stivell no Olympia de Paris) e terminaram com as reverberações etílicas do clássico dos clássicos “Whiskey in the jar”, alternando os instrumentais com baladas excelentemente interpretadas por Isabel Leal, um rosto e presença belíssimos e uma voz que pode ir longe na música portuguesa. Destaque também para as prestações de Arlindo Silva, violinista de formação clássica que alia a velocidade de execução, nas jigas e corridas “bluegrass” instrumentais, a uma sensibilidade contida nas baladas vocais, de Manuel Apolinário, na flauta e de Alfredo Farinha, impecável no dedilhar do bandolim, bem secundados, de resto, pelos restantes músicos dos Jig.
“I’m the man you don’t meet everyday”, “Wild rover” ou “Dancing masters”, todos tradicionais irlandeses, “The tem commandments”, (“tour de force” vocal do Canadá brilhantemente interpretado por Isabel Leal, apoiada na pulsação hipnótica doo tambor percutido por Joaquim Teles) e os portugueses “Agora baixou o sol” e “Mourinheira”, foram alguns dos pontos altos da actuação dos Jig que entusiasmaram a assistência.
Resultado da convergência de diferentes influências – “cada músico tem um percurso diferente, o Arlindo por exemplo, toca numa formação clássica, outros elementos vieram dos Folk Band ou dos King Fisher’s Band” – diz Isabel Leal – Os Jig apostam contudo num reportório português totalmente original, antes da estreia discográfica, prevista em CD, numa editora por enquanto desconhecida.
Os galegos Na Lua entraram a matar, que é como quem diz, fizeram folclore no pior sentido. Agitaram bandeiras, falaram a despropósito e, sobretudo, perderam-se completamente, entre a tentação de um rock saturado de electricidade, pontuado por sugestões tradicionais, e uma miscelânea de influências recolhidas de regiões tão díspares como o Nepal ou o Norte de Portugal, sem que da mistura tivesse resultado algo de minimamente original ou, pelo menos, interessante. Salvou-se do naufrágio a excelência técnica de Antón Rodriguez, na gaita-de-foles, flautas e saxofone soprano e de Francisco Alvarez, no violino e bandolim. De Uxia, a voz de fada presente no álbum “A Estrela de Maio”, sabe-se que abandonou os Na Lua, desagradada com a orientação seguida pelo grupo. A Galiza não espetou a pretendida lança em Portugal. Triunfo para a alegria contagiante dos Jig e para a autenticidade das raízes bretã dos Bagad Kemper.