PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 19 DEZEMBRO 1990 >> Pop Rock
A VOZ DA LIBERDADE
Não quer ser estrela nem que a considerem um objeto. Recusou tocar com David Bowie e Brian Eno – o sucesso não lhe diz nada. Prefere o prazer de um percurso solitário, sem perder o controlo da sua arte. Pôs os sintetizadores a cantar quando estes não tinham ainda sequer voz. Ao fim de 25 anos de carreira, acha que as pessoas estão aptas a compreendê-la. É o que veremos em Lisboa, onde atua na Aula Magna, na próxima sexta-feira.
PÚBLICO – Cresceu entre músicos de jazz, como Mingus ou Albert Ayler. A sua música, no entanto, parece afastar-se constantemente dessa linguagem. Ainda se considera uma intérprete de jazz?
Annette Peacock – Só em relação às minhas raízes, na altura em que escrevia música instrumental para ser tocada por improvisadores. Havia a responsabilidade de compor uma base musical que eles pudessem desenvolver. Preocupo-me sempre com a liberdade que os músicos têm, num contexto jazzístico. No meu caso pessoal, interessa-me a liberdade de que disponho para trabalhar elementos como a harmonia ou o ritmo, enfim os próprios elementos estruturais da música. Tudo isto está presente no idioma do jazz e só nesta medida é que fui por ele influenciada.
P. – As palavras desempenham um papel importante nas suas canções, em termos de significado e musicalidade. Escreve poemas, à maneira tradicional ou, pelo contrário, estes surgem a partir da voz e das técnicas vocais.
R. – Dou prioridade à música. O que surge em primeiro lugar é o ambiente musical. Às vezes parto de uma atitude ou de uma visão particular daquilo que quero dizer. A última coisa que me preocupa é o que vou fazer com a minha voz. Defino primeiro o que quero fazer e só depois como o irei fazer.
P. – Gravou há anos um disco com o seu ex-marido Gary Peacock e com Paul Bley, para a editora de Manfred Eischer. O denominado “som ECM” exerceu alguma influência no seu estilo?
R. – Pelo contrário. Paul Bley acha que fui eu que influenciei o tal “som ECM”. Nessa altura escrevia sobretudo baladas, tocadas por pequenos grupos de duas ou três pessoas. Ele acredita que a audição da minha música, por parte de Manfred Eischer, foi determinante para a orientação estética da editora. Antes não havia música lenta, era o “free jazz”, tudo muito rápido e agressivo. Faltava “espaço” à música. Faltava doçura.
Ironia
P. – Nas suas canções cruzam-se palavras por vezes violentas com uma maneira extremamente suave de as cantar. O tom dominante parece ser a ironia…
R. – Ironia, sim. Gosto de lidar com opostos. Procuro alcançar o equilíbrio estético entre extremos. As ideias mais agressivas têm sempre um maior impacte quando são cantadas de modo não agressivo.
P. – Por falar em ironia, o que a levou a criar uma editora própria, a Ironic Records?
R. – Na altura estava a escrever um tipo de música sem qualquer hipótese de ser aceite por uma grande companhia, pois não era de molde a agradar às massas. Atualmente é diferente, as pessoas têm uma maior abertura de espírito, foram educadas num leque de experiências musicais mais alargado. Mas no início dos anos 80, quando formei a minha editora, a minha música destinava-se somente às audiências mais esclarecidas.
P. – A Ironic Records possui mais alguns artistas, para além de si?
R. – Apenas formei a editora para poder fazer e editar a minha música. Muitos músicos já me pediram para incluir trabalhos seus na etiqueta, mas esquecem-se de uma coisa: não quero transformar-me numa editora de discos, mas simplesmente editar os meus trabalhos sem problemas e torná-los acessíveis a qualquer pessoa que os queira ouvir.
“Não quero ser um objeto”
P. – Porque recusou a proposta de David Bowie para tocar com ele, na época de “Alladin Sane”?
R. – Não quis fazer esse tipo de música. O que eu pretendia era andar em “tournée” pela Europa, utilizando sintetizadores numa base de improvisação sobre novas estruturas musicais. Disse-lhe que, na sua qualidade de músico, devia arranjar os seus próprios sintetizadores, fechar-se num quarto e aprender a tocá-los…
P. – Também se recusou a trabalhar com Brian Eno…
R. – Sim, recusei o convite de Brian Eno porque ele queria separar a música da voz. Era como cortar-me ao meio. Eu preferia que a minha música aparecesse como um todo, com a voz indissociada dos poemas.
P. – Por outro lado, colaborou com Andrew Poppy, no álbum “Alphabed (a mystery dance)”…
R. – Dessa vez aceitei. Gosto de colaborar nos projetos de outras pessoas quando elas respeitam aquilo que eu faço. No caso de Andrew Poppy não me vi confrontada com ter de aceitar um certo estilo de vida, como decerto teria acontecido se tivesse aceitado os convites de Bowie ou Eno, em que seria tratada como se fosse um objeto. É difícil ser-se real e verdadeiro quando se entra nessa grande mentira que é o estatuto de estrela pop.
P. – O que quer dizer com “ser-se real e verdadeiro”?
R. – Nessa altura eu e David Bowie, que era fã da minha música, partilhávamos o mesmo “manager”. Deste modo pude observar de perto a ascensão de Bowie, quando os seus discos começaram a tornar-se êxito na América. As pessoas tratavam-no como se fosse um objeto. Claro que era essa a imagem que ele gostava de dar aos outros, mas eu não me teria sentido bem nesse papel. Para mim, a música é a maneira de expressar a minha visão pessoal, a minha arte, o meu trabalho. Não a faço para obter resultados, sejam eles ganhar dinheiro ou tornar-me famosa. Faço música porque tenho de a fazer.
P. – Tem medo do sucesso?
R. – Sim, de certo modo. Não gosto de ser obrigada a fazer as coisas, penso que isso não me traria grande satisfação. O sucesso acarreta a perda de controlo. O controlo da qualidade do meu trabalho é imprescidível para poder continuar. Mantenho-me fiel a estes princípios e é graças a eles que garanto a minha sanidade mental. O sucesso só me interessa se obedecer às condições que eu própria imponho. Se o sucesso acontecer, não será concerteza nos tempos mais próximos… Preocupo-me apenas com a satisfação que retiro do meu trabalho. Não vou modificar esta maneira de proceder para obter resultados que não me trarão qualquer felicidade.
P. – Os seus textos tratam, por vezes, temas incómodos como a masturbação, o incesto ou o sadomasoquismo. Não acha que é a maneira mais difícil de alcançar o reconhecimento público?
R. – Não gosto que me considerem uma rebelde, mas não tenho outra escolha: esses temas fazem parte da essência da vida que todos vivemos e se não falarmos deles estamos a incorrer numa mentira. Para se conseguir um trabalho continuado e prolífico, há que evitar duas coisas: uma é não fazer nada, outra é mentir. É necessária a sinceridade. Decidi fazer música durante toda a vida. Esta decisão torna-me capaz de ver as coisas a longo prazo e dá-me liberdade para as fazer, sem as pressões de uma editora convencional que não seria capaz de assumir riscos. Sem correr riscos, não consigo descobrir nada. Sem risco, não há prazer…
P. – Nos seus até agora quatro álbuns, gravados para a Ironic – “Sky Skating”, “Been in the Streets too long”, “I Have no Feelings” e “Abstract Contact” –, utiliza praticamente apenas o piano e os sintetizadores…
R. – Basicamente, a música que gravo destina-se posteriormente a ser tocada ao vivo. Penso sempre nestes termos: “Como vou tocar isto ao vivo?”. Gosto de manter apenas um pequeno grupo de pessoas porque, em palco, há deste modo uma maior liberdade e a sensação constante de que “tudo pode acontecer”, o que, para mim, se torna extremamente estimulante…
P. – É verdade que foi um dos primeiros intérpretes a utilizar o sintetizador Moog em palco?
R. – Sim, com um dos primeiros protótipos do instrumento que me foi oferecido pelo seu inventor (Robert Moog). Há três anos, alguém me entregou uma revista técnica de computadores, em que se afirmava serem impossíveis as proezas técnicas que então me eram atribuídas… Pensei inicialmente em fazer passar todos os outros instrumentos pelo sintetizador, transformar-lhes o som e controlá-los como se fosse um dirigente de orquestra. Mas acabei por achar mais interessante filtrar antes a minha voz. Nessa altura o Vocoder (mais tarde largamente utilizado por Laurie Anderson, por exemplo) ainda não tinha sido inventado. O sintetizador que eu utilizava nem sequer tinha sido concebido para receber o som doutros instrumentos… Era uma coisa enorme e pesada. Músicos como Tony Williams e John McLaughlin, costumavam então assistir aos meus concertos. Para eles, era uma novidade. Tinham de esperar 20 minutos entre cada canção, que era o tempo necessário para mudar as ligações…
“Rap” longo e profundo
P. – O que a levou a escrever o quase manifesto que é “Elect yourself”, incluído no seu mais recente disco, “Abstract Contact”?
R. – Tem tudo a ver com a nova geração de putos que acreditam que a música pode mudar o mundo. É um “rap” escrito à minha maneira (como “Loss of Consciousness”, de “The Perfect Release”); longo e profundo, que não tem nada a ver com os habituais egotismos do género, do tipo “Olhem para mim, sou o melhor compositor do mundo”…
P. – Tem planos para um próximo álbum?
R. – De facto, preparo atualmente um novo disco que será qualquer coisa de muito perfeito. É uma obra em que trabalho já há alguns anos e que não será editada na minha editora. Desta vez a música será menos elitista e qualquer pessoa está apta a compreendê-la…
P. – Em Lisboa, como será? Quais os músicos que a acompanham e qual o reportório escolhido?
R. – Venho acompanhada de um trio de músicos muito jovens: Simon Price, na bateria, que participou na gravação de “Abstract Contact”, Michael Mondesir, no baixo, durante três anos acompanhante do saxofonista Courtney Pine, e Amit Mukherjee, na guitarra. Cantarei canções de todos os meus álbuns, a partir de “X-Dreams”. Tenho muito por onde escolher, entre 25 anos de canções. Organizei uma sequência estruturada de forma “dramática”, para o impacte ser maior. Espero que as pessoas percam a cabeça, do estilo de saírem da sala sem saber onde moram…
DISCOGRAFIA
1968 – REVENGE
Polydor
Estreia de quase impossível acesso. Inclui o “punk rap” “I Belong to a World that’s Destroying Itself”. Prováveis delírios eletrónicos, suavizados pelas carícias da voz aveludada. Vingança contra os habitantes do mundo, na época entretidos a brincar às cores nas traseiras da realidade.
1971 – I’M THE ONE
RCA
Foi quando Bowie a descobriu. Na altura até o NME dizia maravilhas. Também é difícil encontrá-lo. Adivinham-se paraísos a que a inacessibilidade acrescenta o sabor do desconhecido.
1978 – X-DREAMS
Aura
Apareceu por cá na altura e foi um estouro. Com que cara se escuta alguém cantar “My Mama Never Taught me How to Cook” como se fosse a atividade mais erótica do mundo? Em “Too Much in the Skies”, ficamos a saber como cantam os anjos nos ardores da primavera.
1979 – THE PERFECT RELEASE
Aura
Menos aparatoso que o anterior. “O amor saiu para almoçar”, “Perda de Consciência”. Os extremos tocam-se, a violência e a sensualidade da voz. Destaque para “Survival”, longo tema, discretamente “jazzy”, em que as palavras se transformam em mantra hipnótica.
1982 – SKY SKATING
Ironic
Obra máxima. Voz, piano e sintetizador bastam para fazer da balada um género maior. Cada canção arranha céus. A bailarina dança no topo dos edifícios e flutua mais para cima. A vertigem é nossa.
1983 – BEEN IN THE STREETS TOO LONG
Ironic
Talvez, mas para nós não. É a continuação musical do álbum anterior. Seduz irremediavelmente, como todos. A mesma instrumentação, a altura de sempre das palavras. A voz. A voz que parece ter corpo e tocar-nos diretamente onde somos mais sensíveis.
1986 – I HAVE NO FEELINGS
Ironic
Mais eletrónico que os anteriores. Às vezes lembramo-nos de Robert Wyatt, no som, na desolação, no tom intimista e sombrio das palavras. Ainda e sempre a ironia…
1988 – ABSTRACT CONTACT
Ironic
O mais acessível de todos. “Funky” à maneira da senhora. Os mais despreocupados podem pois dançar. “Elect Yourself” – 15 minutos, os suficientes para tocar em todas as feridas da América e mesmo nas nossas. Mesmo assim, queremos mais. Annette canta todas as coisas como se fizesse amor.