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sábado, 14 Junho 2003
Na antecâmara do “jazz rock”, Chick Corea montou um jogo de ilusões onde a realidade do jazz não é o que parece. E afirmou e estendeu os seus limites quando toda uma geração se ligava à eletricidade.
CHICK COREA
Now He Sings, Now He Sobs
8 | 10
The Complete “Is” Sessions
2xCD
9 | 10
Blue Note, distri. EMI-VC
Pianista de múltiplas facetas — do “latin jazz” ao free jazz, do “cool” ao “hard bop”, da música brasileira e das espanholadas ao jazz rock, passando pelo tecido impressionista e a improvisação, Chick Corea tem sido uma espécie de “rival” de Keith Jarrett, inclusive no bigode.
O homem que em meados dos anos 60 substituiu Horace Silver no quinteto de Blue Mitchell, no Verão do Amor de 1967 marcou presença no quarteto de Stan Getz e, dois anos mais tarde, entrou para o quadro de honra de “In a Silent way”, de Miles Davis (tirando o lugar a Herbie Hancock), é o mesmo homem que, já na década de 70, cedeu ao sol e aos aromas de maresia da música brasileira (com os Return to Forever), cometeu o pecado do funk e da fusão (se “Romantic Warrior” e “The Leprechaun” são queridos mesmo dos apreciadores de rock progressivo, já coisas como “My Spanish Heart” e “Music Magic” são pastilhadas dificilmente tragáveis…) e, finalmente, sacudiu o rock do capote, redescobrindo na ECM e na GRP a luz e os prazeres do jazz.
Mas, em 1968, o jazz corria ainda como jazz, embora as correntes de energia do rock estivessem prestes a infiltrar-se. “Now He Sings, Now he Sobs”, lançado nesse ano pelo pianista em trio com Miroslav Vitous, no baixo, e Roy Haynes, na bateria, é um clássico coreano. Ao contrário do vinilo, com selo Solid State, com apenas cinco faixas, a presente reedição em CD reúne a totalidade dos 13 temas da sessão original. Em remasterização de 24-bits.
Percetível o gosto do pianista pelas ornamentações impressionistas e um fraseado onde a extrema precisão do “touching” se alia a um timbre cristalino. “The law of falling and catching up” prima pelo experimentalismo, com Corea a percutir as cordas do piano e Vitous e Haynes a pulverizarem o tempo, dando sequência a um fabuloso “Samba yantra”, onde o “hard” serve tanto o brasileirismo já latente nas suas conceções como um misticismo recorrente (outro ponto em comum com Jarrett…). “Fragments”, em regime “free”, joga com a aceleração, os círculos, a secura e um fantástico trabalho de pontuação de Haynes, enquanto “Windows” regressa à pura sedução da melodia e às tonalidades “cool”. Um original de Monk, “Pannonica”, e “My
one and only love” permitem vislumbrar por detrás da cortina os olhares de Bud Powell, Bill Evans, Hancock e McCoy Tyner, sublimados por uma síntese visionária.
“Now He Sings, Now he Sobs”, no seu movimento dialético de aproximação e distanciamento da Beleza (“Clinging to beauty; clinging to ugliness”), apresenta ainda um curioso toque de profetismo, na faixa “Matrix”. “O vento sopra sobre o lago/E agita a superfície da água/Assim se manifestando os efeitos visíveis do invisível”, pode ler-se no emblema zen da capa. Ocultação/desocultação, realidade e aparência. Como é a própria estrutura, toda ela ilusória de “Now He Sings, Now He Sobs” (o disco foi montado a partir de fragmentos sabiamante colados e improvisações estruturadas “a posteriori”). “Matrix” que, de entre todos os temas onde o jazz se torna realidade a partir de jogos, é o único tema composto de forma tradicional. Corea, 30 anos antes de Neo, penetrara já no programa de “Matrix”.
Igualmente disponíveis em reedição remasterizada da Blue Note estão “The Complete ‘Is’ Sessions”, gravadas em 1969 em Nova Iorque, por Corea, Woody Shaw (trompete), Hubert Laws (flauta, “piccolo”), Bennie Maupin (saxofone tenor), Dave Holland (baixo), Jack DeJohnette (bateria) e Horace Arnold (bateria e percussão).
Corea integrava então o grupo que gravou com Miles Davis o álbum “Filles de Kilimanjaro”, com DeJohnette e Dave Holland. Período de excitação e descobertas. “Estávamos constantemente a forçar, a tocar de uma maneira completamente livre, à espera que Miles nos dissesse alguma coisa. Como não dizia nada, forçávamos ainda mais.” “The Complete ‘Is’ Sessions” reflete esta liberdade, constituindo um complemento perfeito para a música da fase elétrica do trompetista. Woody Shaw já inoculara no pianista a adrenalina e o veneno da fusão. Maupin delira no “free”. Laws confere lirismo e floreados progressivos. Corea passa grande parte do tempo agarrado ao piano elétrico, continuando as explorações encetadas com Miles, a abrir caminho para a entrada em cena de grupos como os Soft Machine e Nucleus (“Sundance” antecipa obras como “Third”, “42 e 5”, dos Softs, ou “Elastic Rock”, da banda do trompetista Ian Carr). Miles preparava a ogiva nuclear “Bitches Brew”. Os Lifetime de Tony Williams abriam trincheiras com arame farpado. John McLaughlin recebia instruções do seu guru para formar a Mahavishnu Orchestra. Wayne Shorter e Joe Zawinul tinham aprendido, ainda com Miles, os fundamentos que dariam origem aos Weather Report. Na época em que o “jazz rock” se preparava para virar o jazz do avesso, tudo se movia e transformava. Corea, curiosamente, relia os manuais do “hard bop” e do “free”, firme no meio da confusão e excitação que se instalara. Quando o “jazz rock” o agarrou, por fim, o tempo das descobertas, o seu tempo, tinha passado. “Is” é, paradoxalmente, a afirmação da tradição levada ao paroxismo e às fronteiras de um futuro que se revelaria glorioso ou letal para todos os “jazzmen” que ousaram dar o passo em frente.