Einstürzende Neubauten – “Einstürzende Neubauten ‘Arrasam’ Voz Do Operário – Orgasmo De Metal”

cultura >> segunda-feira, 13.09.1993


Einstürzende Neubauten “Arrasam” Voz Do Operário
Orgasmo De Metal


Saltaram as hormonas e as líbidos despedaçaram-se em estilhas de metal. Música, ou antimúsica, a prestação dos Einstürzende Neubauten em Lisboa foi qualquer coisa de esmagador e, para muitos, ensurdecedor. Mistura de êxtase e de medo. Orgia de ruído, de corpos em sintonia convulsiva com o inferno.

Há compadrios com Nietzsche, Wilhelm Reich, Foucault e Lautréaumont na estética desta banda berlinense que liberta cargas monstruosas de energia sexual. Em batimentos no metal, na electricidade em fúria, no grito orgástico do corpo enleado em maquinismos infernais. Os Einstürzende Neubauten praticam o culto do disforme, da brutalidade sonora, envolta numa aura de incompreensibilidade que a utilização da língua alemã torna em absoluto impenetrável. Mas se os cérebros não compreenderam, os corpos captaram a mensgame, e de que maneira! Só lhes restando aceitar ou repelir, com intensidade equivalente à da música, o ritual de horror que lhes foi proposto.
Os portugueses Lucretia Divina prepararam o cenário de pesadelo, na noite de sábado, no alto do salão-sótão da Voz do Operário, em Lisboa, pejado de um público maioritariamente vestido de negro que antecipava já o gozo das torturas que lhes seriam infligidas pelos alemães.
Teclados electrónicos e uma batida hipnótica, dois vocalistas – ele em tronco nu e calças de napa à Iggy Pop, ela de bruxa. Ele em frequente agonia rojando-se pelo chão, ela soltando risadas demoníacas – mostraram uma música provocatória onde cabem influências tão díspares como a teatralidade de um Marc Almond, danças tradicionais irlandesas, marteladas industriais, lenga-lengas de embalar infantis, culminando com uma versão do clássico-chique-decadentista “Lili Marlene”.
Depois deles veio o caos. Os Neubauten começaram devagar, passando em revista, numa questão de segundos, a violência pioneira dos Velvet Underground e o lirismo dilacerado de Nick Cave, para partirem em seguida numa cavalgada em direcção às profundezas. Impressionante a figura do colosso N. U. Unruh, exibindo o tronco nu de ogre, a percutir com ferocidade uma variedade de objectos de metal, como Thor, quando fazia soltar raios da bigorna.
A “performance” dos Neubauten, arrancada sobretudo dos álbuns “Hause de Luege” e “Tabula Rasa”, funcionou à maneira de um acumulador de energia sexual que periodicamente era ejectada em orgasmos de metal incandescente. Uma orgia báquica de ruído, domado com mão de ferro pelos cinco manipuladores, que convocou o instinto, as pulsações do corpo, fazendo-o estremecer, batendo-lhe sem dó nem piedade até o fazer gritar de dor – ou de prazer. Blixa Bargeld berrou como um danado, F. M. Einheit arrancou dos sintetizadores frequências sonoras no limite do suportável. De clímax em clímax o espectáculo evoluiu até ao transe. Os músicos resolveram lançar-se, desamparados, para o meio das primeiras filas da plateia em delírio, membros da assistência subiram por sua vez ao palco para mergulhar no mar humano. Uma rapariga, de longo vestido, ousou mesmo um salto mortal, iluminada pelos holofotes, boneca de trapos animada por forças Às quais não conseguiu resistir. O “show” (não era disso que se tratava?…) passou a ser total, impossível saber quem era quem, entre o magma humano, de corpos anónimos que se atiravam ao ar, à carne, à vertigem.
Sucederam-se os batuques – fábricas em plena laboração -, pontuados por uivos que se transformavam em hinos em louvor a divindades pagãs. No final, já em “encore” furiosamente exigido pela assistência, os cinco Neubauten edificaram o templo invertido, banhados por uma luz verde intensa, de algas. A Voz do Operário transformou-se em santuário do mal.


IWT


Annette Peacock – “Annette Peacock Regressou A Portugal – Voz De Gata”

cultura >> domingo, 12.09.1993


Annette Peacock Regressou A Portugal
Voz De Gata


Na sua segunda apresentação em Portugal, Annette Peacock fez questão de afastar os preconceitos de uma cantora fria e distante do público. Partiu com os “blues”, viajou com a “funky” e disse o que tinha a dizer na sua forma pessoal de fazer “rap”. Uma voz de gata que seduz e fere quando e como quer.

Estavam lá todos, na noite de sexta-feira, os do costume, os apreciadores e “poseurs”, frequentadores com passe vitalício destas coisas da “alternativa”, das vanguardas, enfim das músicas que fazem a diferença. Annette Peacock, a cantora norte-americana de voz como um semifrio, capaz de provocar paixões para logo de seguida as apagar, gelo e degelo, serviu de pretexto. Já cá tinha estado há três anos. Agora voltou, mais descontraída, qual “cat woman” portadora de uma mensagem que por vezes se tornou difícil de entender.
O teatro S. Luiz, em Lisboa, local bem mais apropriado para intimismos musicais que a Aula Magna, onde a cantora se apresentou na anterior visita ao nosso país, não estva a abarrotar mas pouco faltou. Na primeir aparte actuaram os portugueses Sensaborões, perdão, Ficções. Tocaram bem, muito afinados, muito atinados, muito “jazz rock” betinho, temas com princípio meio e fim (por esta ordem), sem derrapagens, montes de melodia, com tudo no lugar, onde é que nós e eles íamos…? Intervalo.
Para a passagem de modelos da praxe. Pela “passerelle” do “foyer” passaram várias raparigas disfarçadas de Annette Peacock, com base nas fotografias ou nas imagens conservadas na memória, em traje austero, negro, claro, gorro ou chapéu (faltou o véu…), armando um “look” frio e distante a condizer. A senhora pavão, a verdadeira, trocou-lhes as voltas, surgindo em palco de “jeans” e camisa claros, luvas brancas e o ar de quem estava ali para se divertir. Foi de facto uma Annette Peacock diferente da cantora de pose hierática que assombrou a Aula Magna. Vê-se que está mais madura, mais solta. Meneou as ancas, na procura do “beat” exacto para cada canção, encenou com o corpo o gesto sensual, rodopiou sobre si própria, num dos temas avançou até à boca de cena, atrevendo-se a uma proximidade com o público que não lhe é habitual.
Acompanhada por Michael Mondesir, no baixo, Eric Appapoulay, na guitarra, e Keith Le Blanc, na bateria, a cantora nova-iorquina interpretou temas de álbuns como “X-Dreams”, “The Perfect Release”, “Skay Skating” e “Abstract Contact”, além de uma canção nova apresentada na ocasião em estreia mundial. Num registo que começou por se deixar habitar pelas labaredas dos “blues” para aos poucos se instalar no território da palavra, que Peacock maneja com a concisão e perícia de um médico legista, o concerto progrediu de forma descontínua, entre o gemido e o manifesto, o sussurro e o grito, nas baladas de amor (e o amor, em Peacock, é sempre algo complexo que passa pelo cérebro) ou nos “raps”, declamados como um repto à sociedade norte-americana, racionalizados ao extremo. “The succubus” e “Elect yourself”, que a cantora procurou recriar simulando a atmosfera de um “dark club in New York”.
Canções conhecidas como “Memory is”, “Happy with my hand” (na qual faz a apologia da masturbação), “Pride”, “My mama never taught me how to cook”, “We’re adnate” ou a derradeira “The real & defined androgens” (onde a voz, transformada pelo sintetizador, adquiriu tonalidades angelicais) apareceram transfiguradas por arranjos, quase sempre “funky”, que já haviam sido explorados em “The Perfect Release”, com os textos a funcionar como catalisador.
E aqui residiu o principal problema. Não sendo fácil o inglês cantado (falado) por Peacock, ficaram perdidas pelo ar as frases que magoam e perturbam, sobrando o vulcão e a circularidade de um som não muito versátil que a artista utilizou na definição de um universo talvez demasiado fechado sobre si próprio. Deixados de fora, fomos como crianças que faltaram à chamada. Na posse da chave, entrámos num mundo sensível ao toque virtual, infiltrado pelo medo e pela alienação (“the age of the individual is over”, escutou-se numa das canções). Um mundo de imagens em constante mutação que aos humanos mais nãoconcede, di-lo o título do álbum mais recente (“Abstract Contact”), senão um contacto abstracto.

Devo – “Hot Potatoes: The Best Of Devo”

pop rock >> quarta-feira, 08.09.1993
REEDIÇÕES


Devo
Hot Potatoes: The Best Of Devo
CD Virgin, distri. EMI-VC



Génios ou batatas? No caso dos Devo, talvez a resposta certa seja que foram batatas geniais. Entre a postura pós-atómica e imbecilóide que ostentavam (expressa, por exemplo, na predilecção dos membros da banda em se vestirem daqueles tubérculos, como na presente colectânea) e o som sintético-futurista aliado a melodias pop irresistíveis, mistura que seduziu o próprio Brian Eno, a banda de Akron surgiu na altura (finais dos anos 70) décadas è frente da “new wave”. Aos Devo se deve a criação de uma teoria confusa e pouco científica, mas estranhamente profética dos tempos que haveriam de vir, a “de-evolution”, explanada em temas como “Jocko-homo” e “Mongoloid”, cuja correspondência visual, em vídeo, mostrava um bebé mongoloide a introduzir a mão numa torradeira eléctrica ligada. Versão paródica da “cold wave” europeia, a música da banda deu corpo e cérebro a um som diferente, estranho e bem-humorado, por vezes perturbante (quando se atravessava a camada de plástico dos arranjos e do “nonsense” dos textos), que a situava como parente deficiente mental dos Residents, que por seu lado costumavam disfarçar-se de camarões, de Beatles e de globos oculares.
Os sintetizadores e as guitarras motorizadas manipuladas pelos manos Casales e Mothersbough, juntamente com o “beat” esquizoide de Alan Myers, fizeram dançar ao som do holocausto uma nova geração de jovens saturados do punk e reconciliados com a electrónica, num par de exercícios delirantes de de-evolução: “Q: Are We not Men? A: We Are Devo” e “Duty now for the Future”. Dois portentos de minimalismo pop em estado de graça num universo alternativo, apenas retomado, embora em toada mais bm comportada, em “New Traditionalists”. A presente colectânea recupera praticamente os mesmos temas de um “greatest hits” editado há alguns meses pela Warner e inclui todos os melhores temas da banda: “Jocko-homo”, “Mongoloid” (os dois a abrir, em jeito de manifesto), “Satisfaction (I can’t get me no)”, “Whip it”, “Through being cool”, “Gates of steel”, “Come back Jonee”, “Secret agent man” (a melodia pop perfeita), “Beatiful world”, “Whip it” (com nova mistura), entre outros. Os tempos chegaram para a de-evolução. (8)