Arquivo da Categoria: Funny Electronics

Feliz Kubin – “Tetchy Teenage Tapes”

(público >> y >> pop/rock >> crítica de discos)
28 Fevereiro 2003


FELIX KUBIN
Tetchy Teenage Tapes
Skipp, distri. Matéria Prima
6|10



Vão-se rir mas é verdade: o génio alemão da pop eletrónica com legitimidade para se considerar herdeiro de Holger Hiller gravou “Tetchy Teenage Tapes” quando tinha entre 11 (!) e 18 anos. O Felix actual mostrou, no gozo, à editora as amostras dessas gravações efetuadas num gravador de quatro pistas com um sintetizador, um órgão caseiro, um computador de ritmos e um “dosophon” (set de bateria composto por latas de doces vazias) e que os tipos gostaram. A verdade é que foi graças a este trabalho pioneiro que, por volta de 1983, em plena “neue deutsche welle” (“new wave” alemã), surgiu em Hamburgo um movimento de bandas juvenis “underground” de eletrónica com nomes singelos como Voll Die Goennung, Intensive Styroporsymbole, Rekonstruirtes Relativpronomen e Universum. “Tetchy Teenage Tales” prova, por outro lado, que a eletrónica mais lúdica que hoje se faz pouco evoluiu desde então. Descontando a voz imberbe, as programações-pipoca e melodias arrumadas entre os Yello, os Der Plan e os Human League, é o mesmo Kubin excêntrico que encontramos, com uma frescura que os Nova Huta, Oleg Kostrow e Sergej Auto se encarregaram de dissecar. E o electroclash afinal começou aqui.



Mola Dudle – “O Futuro Só Se Diz Em Particular”

(público >> y >> portugueses >> crítica de discos)
28 Novembro 2003


MOLA DUDLE
O Futuro só se Diz em Particular
Ed. e distri. Ananana
7|10



Consumada a cisão nos Mola Dudle, Nanu é agora o porta-voz de uma música que diverge radicalmente do anterior álbum do grupo, “Mobília”. A palavra e as vocalizações tornaram-se essenciais na economia do projecto ainda que as “canções” continuem a pautar-se pelo esforço em “fazer diferente”. Mas algo se perdeu no desfazer da mobília. A música parece ter-se deixado apanhar pelo vírus do “estilo”, caindo em tiques de uma certa pseudomodernidade pop que afasta “O Futuro só se Diz em Particular” do anterior experimentalismo, considerando, apesar e tudo, que um tema como “Redrock one:um” possa ser uma leitura irónica desse mesmo universo de referências. Num álbum em cuja lista de convidados constam Manuela Azevedo, dos Clã, e Armando Teixeira, presenças que, de certa forma, ajudam a compreender a mudança de orientação, ajuste-se a sensibilidade ao chique de arranjos de cordas à la Kronos Quartet, versos em francês, atmosferas de “film noir”, valsas, Nova Huta, e um tema, “Diva”, digno dos A Fúria do Açúcar. A Mola não quebrou mas faz agora parte de um maquinismo pronto a usar.



Stealing Orchestra – “Querida, Encolhi A Música!” (artigo de opinião e entrevista a propósito do lançamento de ‘The Incredible Shrinking Band’) + Residents (The) + Kubik + Mola Dudle + Negativland + Biota

(público >> y >> portugueses >> artigo de opinião)
26 Setembro 2003


Querida, encolhi a música!

Para os Stealing Orchestra um disco é um mundo de possibilidades. Com velhos discos e filmes montaram “The Incredible Shrinking Band”, que alargou o espectro sonoro da orquestra.



“The Incredible Shrinking Band”, segundo longa-duração dos Stealing Orchestra, depois de “Stereogamy” (e do EP “É Português? Não Gosto!”), rouba o que pode e onde pode. A começar pelo título, adaptado de um filme de série B, “The Incredible Shrinking Man” (Jack Arnold, 1957), hoje fita de culto.
A operação de encolhimento traduz-se graficamente numa capa a fazer lembrar os Negativland e materializa-se literalmente na faixa de encerramento, “Happy ending theme”, segmento sónico que em segundos condensa as restantes 14 faixas. O disco termina com uma mensagem subliminar na voz de um Wally ambíguo que cada um tentará identificar.
Pelo meio, os Stealing Orchestra, sob a alçada ideológica de João Mascarenhas, propõem as sonoridades mais estranhas, designadas por títulos não menos bizarros como “Que Deus te dê o dobro de tudo o que nos desejares”, “Tetris (beware boy, videogames are evil)”, “The darkside of a travesti”,”The living dead whistlig quartet”, “How to make a killer rat” e o inultrapassável “Sorry captain.but…shouldn’t we be thinking about cosmic hazards instead of destroying our spaceship and kitting the crew?”.
São ilustrações, pinturas de som equivalentes às colagens surrealistas que Armando Brás criou para o folheto, ilustrativos de uma insanidade controlada que remete os Stealing para uma linhagem de grupos que inclui os Residents, Biota, Renaldo and the Loaf, Yello, Startled Insects, Olívia Tremor Control ou os já citados Negativland, bem como Pascal Comelade ou artistas como Duchamp, Breton, Ernst, e Salvador Dali.

asilos. Vale tudo e vale a pena averiguar. Os Stealing Orchestra sacam aos discos e filmes de vários estilos e épocas aquilo que neles é passível de ser manipulado até adquirir a forma de música. Os resultados variam de faixa para faixa como as simetrias de um caleidoscópio: valsas à maneira dos Stranglers, surf music, easy listening, jogos de consola, eletrónica-champagne, uma citação intrusa dos Pink Floyd psicadélicos (não, eles nunca ouviram, juram, e nós fingimos acreditar…), excertos de emissões e estática de rádio, vozes camufladas e melodias umas vezes diabolicamente retalhadas outras de uma simplicidade desarmante. Para confundir ainda mais, não faltam “Os Caretos de Podence”, com emulações de gaita-de-foles sintética de folk mirandesa formatada em disquete.
Não há uma tradição, cá dentro como lá fora, para este “tipo” de música, pela razão de que a loucura, mesmo quando elevada a método (estético ou sociológico), é ferozmente individualista. Cada caso é um caso e entrar em cada um deles pode ser uma aventura imprevisível.
Claro, encontram-se na pop asilos bem demarcados. Se os Negativland abusam da colagem como dispositivo de sabotagem, não só estética como política, e os Olivia Tremor Control recorrem ao “corte e costura” como ferramenta de um novo Psicadelismo, já Pascal Comelade se perfila como genuíno “naif” para quem a música é, como nos Stealing Orchestra, uma miniaturização de géneros e mitologias enrolados no cilindro de um realejo. O autor de “El Cabaret Galactico” é, de resto, das poucas influências assumidas pelo grupo português.
Outros mestres-redutores, como os Residents (o seu álbum de 50 “jingles” de um minuto cada permanece como símbolo da publicidade filtrada pela esquizofrenia e pela perversão), inserem-se num projeto mais global de subversão que procura atingir o âmago da pop. Os Biota fazem o mesmo mas propagam a doença, infetando cada som com uma agonia. Idem em relação aos Startled Insects, com a diferença de que estes ousam interferir com os cânones da música de dança. Já os Renaldo and the Loaf são malucos a quem ofereceram instrumentos de música e um contrato de gravação e os Yello uma variação “light” dos Residents. Ponto assente: sem o trabalho pioneiro de Raymond Scott, o cientista e visionário louco de “Manhattan Reserach Inc.”, nenhum dos outros se atreveria a fazer o que fez e a expor as respetivas
taras em público.
De entre esta lista de ilustres anjos do bizarro (parafraseando o título de um conto de Edgar Allan Poe) é no mundo mais afastado do horizonte de referências dos Stealing Orchestra que se detetam enigmáticas coincidências. E que outro grupo pode estar mais afastado da normalidade do que os Biota, autores de “Almost Never”, “Tinct” e “Object Holder”, compêndios e rituais de passagem para o pesadelo? Como os Biota, os Stealing Orchestra constroem parte da sua estranheza através da justaposição de instrumentos acústicos, como o piano ou o acordeão, e programações eletrónicas, segundo a lógica de “cadavre-exquis” surrealista, que encadeia as imagens mais incongruentes. Desta conjunção de contrários resulta uma fenda entreaberta que faz desequilibrar, ou apagar, as mnemónicas a que se recorre para fazer a descodificação de uma particular organização mental/musical. Se os Biota filtram no estúdio sanfonas e saxofones até estes soarem como emanações tuberculosas de hinos sobrenaturais, os Stealing Orchestra sequenciam valsas e fragmentos de uma folk imaginária, ou nem por isso (como nuns “Caretos de Podence” cujo mistério se desvanece ao conhecermos as origens transmontanas de João Mascarenhas), cuja força advém, precisamente, da ausência ou deformação de contexto. Nos Stealing Orchestra nada encaixa numa explicação lógica e tudo se passa como as imagens de um sonho. E, no entanto, o filme que fazemos com elas fala uma linguagem que reconhecemos. Ou julgamos reconhecer.
E daí, talvez não, se pensarmos que “The Incredible Shrinking Band” demorou três anos e meio a gravar e que a organização destes O.V.N.I.s sonoros terá custado a João Mascarenhas mais do que uma noite sem dormir. Foi difícil encontrá-lo, porque encolheu até à escala de 1:260. Encontrámo-lo a praticar natação no interior de um dos sifões de água que matam a sede à Redação do PÚBLICO. Como é que lá foi parar, não quis dizer nem nós conseguimos imaginar. Mas não podíamos desperdiçar a oportunidade. Depois de se enxugar num pedaço de toalhete de papel e de escapar por um triz a ser espezinhado por um jornalista, prontificou-se a dar explicações. Já instalado no aconchego de uma caixa de fósforos, foi mesmo assim com alguma dificuldade que conseguimos ouvir com nitidez este “incredible shrinking man”. Segue-se a relação de algumas das verdades liliputianas que nos transmitiu.

ideias em lata.
MÉTODO DE COMPOSIÇÃO: “Faço as bases, com samples, depois gravo para CD, passo aos outros músicos [Pedro Vidal, Fernando Sousa, Gustavo Costa] e discutimos o que se pode aumentar aqui ou colar ali. Finalmente trabalho outra vez os temas e dou-lhes as programações para trabalharem sozinhos”.
LOCAL DE TRABALHO: Em casa. “Às vezes não consigo dormir. Estou com um som na cabeça e não descanso enquanto não conseguir fazê-lo. Vou para o computador ver se sai alguma coisa. Se sai, continuo, se não…”
FONTES SAMPLADAS: Discos e filmes. “A mais descarada: os Bonzo Dog Doo Dah Band, em ‘Time travelling waltz’, cinco segundos de Brigitte Bardot, de “Tous les garçons”, num ‘pitch’ lento.”
AUDIÇÕES RECENTES: Robert Mitchum. Ouve pouca eletrónica. “Não gosto do som eletrónico”. Nos anos 80: Front 242, Skinny Puppy. Mais tarde: Portishead. Massive Attack, Aphex Twin…
SOFTWARE UTILIZADO: “Básico e primitivo. Já o uso há 11, 12 anos, um programa que cabe três vezes numa disquete, quando hoje é tudo ‘software’ em dois CD. Habituei-me. É como um gajo que toca guitarra e não quer mudar de instrumento”.
UM HERÓI: Raymond Scott. A fase do jazz. “Gosto de todos os discos que saem pela Basta, como os dos Beau Hunks”. “Adoro os anos 20”.
O LIXO E O LUXO: “Um sample não tem que ser lixo só porque é de um artista mais foleiro. Às vezes ouço bandas a dizer, orgulhosas, que samplam os Kraftwerk. É uma treta. O que é que interessa de onde vêm os sons? O que interessa é o que se faz com eles. Tanto pode ser Piazzolla como Quim Barreiros”. Critério: “Tem a ver com a preguiça. Uso os sons disponíveis, não tenho pachorra para arranjar mais. Na escola, quando me mandavam fazer uma redação, se não me dessem um tema, não era capaz. Com um tema, desenvolvia facilmente. Um ‘sample’ é como se fosse um tema”
MÚSICO OU NÃO-MÚSICO: “Não-músico. Não leio pautas. Músico é um gajo que tanto toca num projeto experimental como numa cena mais foleira, para ganhar dinheiro. É uma profissão”.
ECLETISMO: “Tanto podemos fazer misturas de uma banda de ‘dead metal’ como os Holocausto Canibal como de Kubik. Uma vez tentei fazer uma música pimba, para ver se era fácil. Não saía. Afinal não é assim tão fácil. Como não é fácil fazer electroclash ou hip-hop”
CONCERTOS: “Nunca vi ninguém fazer nada de jeito em palco com um computador, os tipos estão ali a fazer de conta que estão a tocar. Antigamente levava um até que me fartei. Gravo as programações todas em CD, fazemos ‘play’ e tocamos por cima, como uma orquestra que estivesse lá atrás”.
UM FINAL FELIZ: “‘Happy ending theme’ é o disco todo comprimido a andar para trás, como um grande loop. Não vou revelar o que a voz diz no final. Dá mais gozo pôr o disco a rodar ao contrário e tentar perceber. Esperemos que ninguém leve a mensagem a sério…”


anjos do bizarro

No corpo da hidra monstruosa que é a
música pop não faltam excrescências
que extravasam os limites impostos
pelo “mainstream”, ou seja, pela
“normalidade”. Os álbuns
seguintes, nacionais e
estrangeiros, são clássicos
da marginalidade
cultivada como estética, em
que as únicas regras são as
da loucura, do perigo e da
transgressão. E do humor,
tantas vezes separador entre
a patologia, a obra de arte e o
gratuito.


THE RESIDENTS
The Third Reich ‘n’ Roll

Ed. Euro Ralph

Quem são, de onde vêm, o que pretendem? Ninguém sabe. Agem como toupeiras a escavar os túneis que minam os alicerces da pop. Os “eyeballs” de fraque e cartola são os diletantes do horror em banda-desenhada, “compères” de uma alucinação sem fim que vem dos anos 70 e hoje se estende por videojogos para maiores de 21. “The Third Reich ‘n’ Roll”, de 1976, é uma das etapas mais bizarras deste percurso pelos subterrâneos da pop, dividida num par de aberrações onde são amolgados e cuspidos, numa avalanche de ruído e vozes de diabretes, “hits” pop dos anos 60 e 70: “Swastikas on parade” e “Hitler was a vegetarian”. Ou de como destapar o diabo e escancarar o carácter intrinsecamente totalitário da música de massas.

BIOTA
Object Holder

Ed. Recommended

Ao contrário dos Residentes, é conhecida a identidade dos Biota: uma equipa de músicos e artistas gráficos sediados em Fort Collins, EUA, preocupados com o “bombardeamento das crianças pela tecnologia” e empenhados na manipulação eletrónica, até à aniquilação, de instrumentos acústicos como a sanfona, trompete, teclados e, em “Object Holder”, da voz humana
Se os Residents são a subversão da pop os Biota transferem-na para um mundo de espectros. A música é um aglomerado tóxico de anti-matéria em metamorfose, miasmas desfocados de “world” inexistente, “free jazz” nas rotações e pelos músicos errados. Como num teste Rorschach é a nossa imaginação que faz nascer os monstros.

NEGATIVLAND
Escape from Noise

Ed. Seeland

Os Negativland disparam aqui rajadas de colagem e eletrónica devedoras de Raymond Scott mas que antecipavam as atuais “funny electronics” alemãs, em canções que denunciam o ridículo e os podres do quotidiano da América. Pulveriza-se com veneno mata-ratos a mediocridade do rock “mainstream” (o verdadeiro “noise”), expõem-se os vícios do pai de família que vê às escondidas o canal Playboy ou, simplesmente, sintetiza-se o atual estado de coisas num título como “Methods of torture”. Entre os convidados, encontram-se “freaks” como Steve Fisk, Fred Frith, Mickey Hart e Jerry Garcia (Grafteful Dead), Henry Kaiser, Mother Mothersbaugh (Devo), Tom Herman (Pere Ubu), Alexander Hacke (Einsturzende Neubauten) e os…Residents.

MOLA DUDLE
Mobília

Ed. Anana

Os portugueses também sabem fazer esgares. Os Mola Dudle desarrumam a eletrónica de entretenimento para nos fazer tropeçar no espanto. Desarrumação com a aparência de caos, todavia encenada com uma exatidão matemática por Nanu e Miguel Cabral, os dois que arrastam a mobília e eletrodomésticos de museu pelo chão. “Found objects”, instrumentos convencionais manipulados até ao âmago da sua estrutura atómica, programações histéricas ou “easy listening” arrancadas aos cartazes da escola de circo da editora Storage Secret Sounds e vocalizações sem tino condensam uma música inteligente mas por enquanto capaz de divertir apenas aqueles ouvidos sem receio de gozar consigo mesmos. Vale a pena mobilar a música portuguesa desta maneira. Os Mola Dudle foram ao ponto de porem microfones nas mãos do caruncho.

KUBIK
Oblique Musique

Ed. Zounds

O que nos Mola Dudle soa a polimento dos móveis, em Kubik (Victor Afonso) é metal, cimento e objetos brutos. “Oblique Musique” insere-se numa escola de sons que remonta à música industrial, aproveita os ensinamentos do minimalismo e assimila métodos de colagem, quer da eletro-acústica e acusmática quer dos figurinos “prêt-a-porter” da pop, mas neste campo, como em tudo, vale a imaginação do autor. Kubik usa o sampler como artilharia pesada, avançando nas programações a bordo de um tanque e fazendo denotar granadas a cada intersecção de géneros como a música étnica, melopeias repetitivas e o catálogo geral de deformações causadas pela “industrial”. Admirável é o modo como Kubik sobrepõe citações e humor, tripas e automatismos, linguagem de máquinas e existencialismo humano, criando perspetivas mutáveis como uma gravura de Eischer.