Arquivo mensal: Dezembro 2021

Nóirin Ní Riain – “Nóirin Ní Riain Cantou No Convento Do Beato, Em Lisboa – A Voz Que Cura” (concerto)

cultura >> segunda-feira, 29.11.1993


Nóirin Ní Riain Cantou No Convento Do Beato, Em Lisboa
A Voz Que Cura


As pessoas habituaram-se a associar a música irlandesa aos copos e à dança. Nóirin Ní Riain revelou o lado oculto da ilha, convidando ao recolhimento e à escuta do silêncio. “A voz humana vem de Deus”, diz. Ao ouvi-la, fica-se com a certeza de que sim.



No Convento do Beato, em Lisboa, no sábado à noite, a voz da cantora irlandesa Nóirin Ní Riain começou por descer não das nuvens, como no álbum “Voz de Nube”, mas da parte superior dos claustros do convento, entoando um cântico de louvor a S. Francisco ao mesmo tempo que fazia soa r uma “drone” infinita numa caixa “shruti” indiana. A assistência, que encheu por completo o recinto, rendeu-se de imediato a esta voz de anjo que nos últimos anos se tem dedicado à interpretação de temas religiosos, irlandeses sobretudo, mas também indianos, além de composições da autoria da abadessa mística medieval Hildegard de Bingen ou da visionária contemporânea suíça Joa Bolendas.
O concerto durou pouco mais de uma hora. O suficiente para os ouvintes se deixarem impregnar por canções de respiração ampla, ressumando espiritualidade. A cantora irlandesa saudou o fado, abençoou pessoas e lugares, falou do seu fascínio pela serra de Sintra, que conhecera na véspera, mencionou a ocasião em que conheceu Mário Soares e cantou como só ela sabe cantar. Ora ajoelhada diante de um “surpeti” (pequeno órgão de foles indiano), ora passeando em frente à assistência. Nóirin assumiu sempre o seu canto como uma oração.
Hinos religiosos de Joa Bolendas, uma sequência de composições de Hildegard de Bingen, um “Lament for a dead child” em que aludiu à dor real de mulheres que visitou num campo de refugiados na Croácia, outrolamento, de Nossa Senhora chorando aos pés da cruz e maorte do seu filho, Jesus, uma canção de Dublin, “Cockles and mussels” (que comparou com Lisboa, pelo mesmo número de letras, que, ao contrário do que geralmente se pensa e o tradutor e apresentador de serviço teve o cuidado de referir, são cinco e não seis…), outra, “Once I Loved”, sobre amores não correspondidos, um hino de louvor a Krishna, um “Magnificat” e “The river and the ocean”, outra ainda já do novo álbum, de título “Soundings”, que será editado na próxima semana, foram alguns dos temas que se elevaram como espirais de incenso na voz sem mácula de Nóirin Ní Riain.
Há vozes como esta que navegam contra as correntes inferiores que vão empurrando o mundo para o abismo. Vozes que acordam. Vozes que oram. Vozes que curam. Nóirin Ní Riain construiu pelo canto uma ponte que conduz acima das nuvens. Ontem, domingo, de manhã, Nóirin iluminou com a sua voz uma missa realizada na Igreja do Corpo Santo, em plena zona do Cais do Sodré, local de perdição.

Sérgio Godinho – “Sérgio Godinho Inaugura Novo Espectáculo No Porto – O Gosto Das Palavras” (concertos)

cultura >> segunda-feira, 22.11.1993


Sérgio Godinho Inaugura Novo Espectáculo No Porto
O Gosto Das Palavras


Um triunfo em toda a linha assinalou o regresso de Sérgio Godinho à cidade do Porto. No novo espectáculo, de genérico “A Face Visível”, o autor de “Tinta Permanente” saboreou e deu a saborear as palavras e novos arranjos de canções que nos falam como se fosse sempre o primeiro dia. A digestão da luz fez-nos bem. Lisboa terá oportunidade de ouvir Sérgio Godinho nos próximos dias 24, 25, 26 e 27, no Teatro de São Luiz.



Vinte e oito canções, casa cheia, entusiasmo crescente da assistência à medida que o concerto decorria. Sérgio Godinho punha em prática uma estratégia de conquista planificada ao segundo. Eis as medidas exteriores do êxito desta “Face Visível” – “Segredo da luz levantando o som, segredo do som estilhaçando a luz”, como quis o escritor de canções a “Tinta Permanente”.
Pelo lado de dentro sobressaíram a força interpretativa e o empenho de todos os músicos. E as canções, recentes umas, revisitadas outras, vestidas na totalidade com novos arranjos capazes de iluminar de novos ângulos as palavras que muitos aprenderam a sentir e trautear.
Melhor que isto só “Melhor que o amor”, primeiro foco de luz a mergulhar nas entranhas das palavras, para lhes tirar o sumo e recriar o sentido. Desde logo tornou-se evidente a importância do coro feminino – Filipa Pais, Dora e Sandra Fidalgo – no novo figurino harmónico das canções. As três, não sendo tristes nem tigres, foram originais, divertidas e cem por cento eficazes. Entrelaçaram-se num “canon” intricado logo no primeiro tema, deram espectáculo em “Espectáculo”, fizeram-se velhas guinchantes e suspirantes no “Coro das Velhas”, foram cascata de reflexos e refracções. Tudo o que um coro deve ser. Diferente do mero artefacto decorativo com saia curta e decote cavado que costuma ser (o ideal é juntar o que deve ser ao que costuma ser). E já que falamos da criatividade dos arranjos, é necessário fazer incidir os holofotes sobre a figura que se sentou à esquerda do palco em frente a um piano: João Paulo Esteves da Silva, director musical e estratego-mor deste espectáculo. A ele se deve o baralhar e dar de novo das canções. E o traçar de caminhos no piano, com agilidade de mãos, fluência de raciocínio e afecto no coração.
Em termos de apreciação individual, saliente-se de igual modo o notável trabalho de José Salgueiro nas percussões, ora subtis e quase subliminares como o voo de um insecto, ora pujantes e afirmativas como um tambor de guerra. Retemos na memória o solo que assinou em “Caramba”. Jorge Reis, nos sopros, alternou bons momentos (um “Coro das Velhas”, “Pequenos Delírios Domésticos”) com outros de alguma hesitação. Igualmente bem esteve, sobretudo no contrabaixo, Mário Franco. Dialogou sempre a-propósito com o piano e a voz, solou em “Horas Extraordinárias”, chorou no túmulo, no arrastar do arco, nas notas finais sem esperança de “Pequenos Delírios Domésticos”. Cumpriram sem grandes deslumbramentos António Pinto, na guitarra eléctrica e Paleka, na bateria. Filipa Pais, mais solta do que há duas noites atrás no concerto de Vitorino, no CCB, em Lisboa, cantou em dueto com Sérgio Godinho “Balada da Rita” com a dose suficiente de emoção.

Intimismo, Festa, Humor

Claro que tudo isto seria nada sem as canções e a voz de Sérgio Godinho. As primeiras fazem já parte da História. A segunda é outra história que acredita que há sempre novas maneiras de a sai própria se contar. Sérgio Godinho, a cada vez mais, mostra o gosto pelas palavras. Canta-as como se as saboreasse. E ainda se espanta com elas o que significa que continua a saber ouvi-las. Descobre-as, antigas – “Arranja-me um Emprego”, “Quimera de Ouro”, “Senhor Marquês” – como sendo outras. E volta a cantá-las com a mesma urgência e porque não dizê-lo, o mesmo apetite.
Sérgio Godinho passeou entre o intimismo, a festa e o humor (nas apresentações das canções, em pequenos apartes, no diálogo mantido com a plateia e os outros músicos, que contribuíram para o clima de familiaridade que se instalou na sala. “Coro das Velhas” mostrou-se absolutamente efusivo. “O Carteiro” de António Mafra deu origem a desbunda em ritmo de “skiffle”. “A Democracia” não foi palavra vã num “rap calypso” que voltou a deixar recados. Noutro falso “rap” passou a ironia e a vida que o reumatismo vai minando, em o “Elixir da Eterna Juventude”. O silêncio desceu em “Enfim S. O. S.”, “Pequenos Delírios Domésticos”, nas fabulosas “Fotos de Fogo” (desde já um dos clássicos do autor) e em “Lisboa que Amanhece”.
“O Porto Aqui Tão Perto” e “O Fim de Tudo” fecharam a “Face Visível”, mas não deixaram saciada a assistência: Quatro “encores” – “Com um Brilhozinho nos Olhos”, “É Terça-Feira”, “O Namoro” e “O Primeiro Dia” – serviram acima de tudo para cada um cantar a própria memória. O pano desceu. O Rivoli vai fechar para obras. Até que novas faces se revelem. Nos próximos dias 24, 25, 26 e 27, no Teatro de São Luiz, Lisboa, vai assistir a um grande espectáculo por um grande artista.

Vitorino – “Vitorino No Centro Cultural De Belém – Comoções Sob Controlo” (concertos)

cultura >> sábado, 20.11.1993


Vitorino No Centro Cultural De Belém
Comoções Sob Controlo



O CENTRO Cultural de Belém, como o Braz & Braz, tem. Tem montes de modernidade. Tem uma programação cultural. Tem espaço. Tem luz. Tem vista para o mar. Mas não tem telefone. Quem quiser ou precisar de telefonar no intervalo, terá de se deslocar em contra-relógio até uma cabina no exterior (neste caso junto ao planetário), e regressar antes do começo da segunda parte. Senão arrisca-se a que, quando voltar, um arrumador zeloso das suas funções o impeça de reocupar o seu lugar, alegando o desconforto que tal irá causar aos outros espectadores.
Adiante. Vitorino ocupou, quinta à noite, com um concerto sóbrio e intimista, um Grande Auditório que não encheu. Ontem a lotação esgotou. Os nervos da maioria dos participantes eram evidentes, ressalvando-se a mestria do pianista João Paulo Esteves da Silva e o profissionalismo do quarteto de cordas Lusitância. Da primeira parte, que privilegiou as canções do álbum “Eu que me Comovo por tudo e por nada”, com as palavras de António Lobo Antunes, destaque para “Canção prá minha filha” (dedicada pelo escritor à filha, “quando tiver medo do escuro”9, que Vitorino interpretou de forma tocante, e para a canção que dá título ao álbum, em registo de tragédia de costumes.
Filipa Pais entrou super-elegante, em negro e vermelho, e híper-nervosa, para cantar a “Valsa das Viúvas” (da pastelaria Bénard), sozinha e quase angustiada, como se quisesse fugir. No final, valsou com Vitorino pelo palco. Na segunda parte entraram em cena os manos Janita e Carlos da Lua Extravagante. Bom, o dueto em “cante” alentejano travado entre o primeiro e Vitorino, em “Eu hei-de amar uma pedra”. Depois, Vitorino comoveu-se de verdade numa “Laurinda” inesquecível. Entre boleros, dedicatórias e um cheironho de “salsa” (em “Os maridos” – “que são sempre os outros”…) Vitorino e a Lua terminaram a cantar em coro com a assistência. “Queda do império” e o inevitável “Menina estás à janela”. O som, impecável, acabou por falhar já perto do fim, no precisomomento em que Vitorino pronunciava as temíveis palavras “Carbonária” e “anarquismo”. Até um dos holofotes explodiu de raiva…