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Adolfo Luxúria Canibal – “Mão Morta Junta-se À Homenagem A Zeca Afonso – Filhos Desavindos” (artigo | polémica)

cultura >> sexta-feira >> 17.06.1994


Mão Morta Junta-se À Homenagem A Zeca Afonso
Filhos Desavindos



ERA PARA ser uma coisa pacífica. Quase uma reunião de amigos. Com copos e palmadinhas nas costas. Afinal, a conferência de imprensa dada antontem de tarde no Hotel Tivoli, em Lisboa, pela organização do espectáculo de homenagem a José Afonso pelos Filhos da Madrugada, agendado para dia 30 em Alvalade, acabou por provocar celeuma.
Ruben de Carvalho, elemento de Lisboa 94, e Manuel Faria, director artístico do projecto, divulgaram números e percentagens. O espectáculo começa às 20h30 e está previsto durar quatro horas. As dezanove bandas (incluindo os Mão Morta que, após posterior reunião do seu empresário, Vítor Silva, com Ruben de Carvalho, decidiram participar) reunidas sob a bandeira Filhos da Madrugada vão actuar sem interrupções segundo um alinhamento que não é o mesmo do disco. Sérgio Godinho, o único dos nomes presentes que não consta do álbum, vai actuar com os Sitiados. Cada banda interpretará o respectivo tema de José Afonso que tocou no disco mais composições próprias num total, flexível, de quinze minutos por actuação. O orçamento final, calculado já depois de confirmada a impossibilidade dos GNR actuarem em Alvalade, ronda os 12 mil contos, “incluindo a chamada margem de caçago” como referiu Ruben de Carvalho que classificou o espectáculo como “uma média-grande produção”.
Surgiu então a questão dos “cachets”. A edição da passada quarta-feira do suplemento PopRock do PÚBLICO alertara já para a existência de problemas. Adolfo Luxúria Canibal, vocalista dos Mão Morta, afirmou que a sua banda esteve sempre disponível para tocar com os Filhos da Madrugada: “Após uma votação interna decidimos fazer o espectáculo. O Mário Dimas [agente dos Mão Morta] comunicou-nos o ‘cachet’ que a organização nos propusera. Respondemos eu esse não era o nosso ‘cachet’ habitual para este tipo de espectáculos. O Mário Dimas disse-nos que a organização era perfeitamente intransigente nesse ponto.” Luxúria Canibal critica o critério de atribuição de “cachets” que, segundo ele, peca por “ausência total de objectividade” – exemplificando com o facto de haver “bandas” que tocam muito e recebem pouco e bandas que costumam receber ‘cachet’ alto e vão receber ‘cachet’ baixo, nada fazendo acreditar nos escalões propostos”. Escusando-se a divulgar os nomes das bandas incluídas no tal “primeiro escalão” com a justificação da “deontologia do meio e do trabalho”, Ruben de Carvalho salientou, porém, que o critério escolhido de atribuição de “cachets” obedece a uma evidência ditada por ninguém ou nenhuma entidade em especial mas pelas próprias leis de mercado”.
Mais grave foi a acusação de Luxúria Canibal de que “face à envergadura do investimento de Lisboa 94 e, sendo o espectáculo dos Filhos da Madrugada feito com dinheiros públicos, deveria ter havido um concurso público como manda a lei”. “Uma pessoa olha para o escalão de ‘cachets’ das bandas que vão tocar, diz o elemento dos Mão Morta, “e verifica que a Regiespectáculo, que organiza o concerto, faz também a representação de bandas. E que a maior parte das bandas da Regiespectáculo está incluída nos escalões superiores de atribuição de ‘cachets’.”
Ruben de Carvalho reagiu com violência ao que considerou como “insinuações graves”, referindo que sendo Lisboa 94 “uma entidade de direito privado de capitais públicos, nada a obriga a fazer concursos públicos. Mesmo a administração pública não é obrigada a fazer qualquer opção de compra de serviços de mercadoria exclusivamente por concurso público. Poderá fazê-lo de outras formas. Assim o entendeu Lisboa 94”.
Quanto aos Sitiados e aos Censurados, outras duas bandas “dissidentes”, os primeiros resolveram oferecer o seu “cachet” À Fundação José Afonso, enquanto os segundos, bem ora não concordando com os critérios de atribuição de “cachets”, vão tocar, segundo a sua representante, Ana Moitinho, apenas “porque vai ser a oportunidade de se despedirem do seu público, uma vez que a banda acabou”.
No meio de toda esta polémica ficou a sugestão feita por Ruben de Carvalho, para “as bandas todas se reunirem e dividirem o total dos ‘cachets’ equitativamente entre si”.

Mão Morta – “Corações Felpudos”

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 26 SETEMBRO 1990 >> Pop Rock

O APELO DO SANGUE

MÃO MORTA
Corações Felpudos
LP, Fungui


Sangue, muito sangue! – clamam, sedentos, os Mão Morta. A banda de Adolfo Luxúria Canibal não faz a coisa por menos: faixa sim, faixa não, escorre hemoglobina a rodos, tornando o coração mais felpudo numa massa ensopada de vermelho. A ideia que têm das atividades geralmente designadas de “amorosas” consiste basicamente em espetar facas na barriga do parceiro(a). Tudo é escuridão e terror. “Corações Felpudos” (título sugerindo coisas como Gremlins sequinhos ou bichos de peluche) esconde horrores inomináveis, abomináveis, perversões. “Gritos e lâminas afiadas / tingem de sangue os lençóis”, crimes, reais ou sublimando uma sexualidade cruel, em que o prazer se alcança inevitavelmente pela dor. “Este punhal uma ilusão / que seguro firme contra o corpo / metal frio de carne sedento”. Enquanto os Xutos se divertem e enriquecem à custa da Pepsi e os UHF militam no combate a velhos fantasmas – os Mão Morta encarnam a violência e o vazio urbanos do final do século.
Adolfo Luxúria Canibal não canta – berra, vocifera, blasfema, esbofeteia os preconceitos auditivos, destila ódio, como no tema do mesmo nome, um dos melhores do disco, fazendo de cada palavra uma faca, cada entoação uma punhalada dirigida ao âmago das pequenas e grandes coisas que fazem da vida um inferno. No limite do ódio, a paranoia absoluta – “As trevas estão por aí escondidas / à espera que eu apague a luz / para se lançarem sobre mim” ou a violência ritual exemplificada no tribalismo onomatopaico de “É Uma Selvajaria” (outro dos grandes temas do disco). “Facas em Sangue” sumariza na perfeição as cores prevalecentes: negro e vermelho, o sangue e a noite, onde se gritam blasfémias e se ama até ao aniquilamento. “Das trevas nasce a luz / mas a luz sempre às trevas regressa” – eterna e cíclica viagem sem redenção possível, que só a morte liberta.
Musicalmente, “Corações Felpudos” investe no furor das guitarras, no ruído controlado, na repetição angustiada, na brutalidade dos arranjos. Em alguns temas notam-se algumas influências ou meras semelhanças, nada de grave, se considerarmos a excelência das mesmas: Pere Ubu (o desfalecimento das guitarras nos instrumentais “Olho da Máscara” e “Santana Menho”), Einsturzende Neubauten (nalgumas vocalizações de A.L. Canibal e na organização do ruído, como em “Ventos Animais”) ou, curiosamente, Snakefinger (em “Freamunde, Acapulco” e no instrumental final “Arlequim”).
Com “Corações Felpudos” os Mão Morta situam-se definitivamente do lado mais negro e marginal do rock português. Onde outros procuram a claridade dos tops, alcançada quase sempre à custa de cedências, Adolfo Luxúria Canibal, Joaquim Pinto, Zé dos Eclipses, Carlos Fortes e Miguel Pedro escolhem deliberadamente mergulhar no abismo. Acompanhá-los no mergulho pode ser penoso. Como apertar a mão a um cadáver e senti-la latejar.

Vários – “Insurrectos”

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 24 OUTUBRO 1990 >> Pop Rock >> LP’s


VÁRIOS
Insurrectos
LP e MC, Área Total



Portugueses, jovens e quase todos deprimidos. São bandas marginais à procura de um lugar ao sol, embora para elas faça sempre mau tempo. Outros nomes, mais conhecidos, aproveitam para fazer algumas experiências longe das cedências que o mercado impõe. Como João Peste e Flak, divertidos na contemplação do umbigo. O primeiro num poema fonético que mistura vozes e línguas sortidas, sem rede sem suporte instrumental, o guitarrista, perdido em interessantes abstrações eletrónicas querendo com isso dizer que os Rádio Macau não lhe esgotam a veia criativa. Os Ocaso Épico, ou seja Farinha, são como quase sempre imprevisíveis e experimentais-foleiros. Não lembra ao diabo misturar as percussões metálicas dos Einstuerzende Neubauten com a voz portuense de um empregado de mesa. Para Farinha a associação é mais que lógica – “Um café e um Neubauten”? Porque não? Sempre pops, os Requiem pelos Vivos, prosseguem, em “Dança dos Golfinhos”, a metódica tarefa de reciclagem dos Heróis do Mar. Os Mão Morta estão bem obrigado, isto é, estão mal. No seu caso quanto pior melhor. Adolfo Luxúria Canibal aproveita, em “Véus Caídos”, para destilar mais uma dose de veneno. Do contingente negro da Guarda só os nomes são arrepios: Deadly Gas, Nihil Aut Mors, Pervertidos da Fé. Infernos Joy Division em cujas fileiras há um sem número de Ian Curtis à procura de corda para se enforcar. Não há anjo da Guarda que os proteja. Os Gabardine 12 também cabisbaixos, vingam-se com o divertido da designação. Serão a réplica lusíada das Raincoats? E que dizer da Morte do Régio com um título tão sugestivo como “A Verdade Pura como o Cálice da Nascente Contrária” com texto de “Eu Sou”, produção de “Eu” e a frase “O Régio ou ‘Eu sou eu ou não!?’” Régio, não sei quem te possa responder. Compare-se o título anterior com o “Yuppie Yuppie, lá lá lá” dos M’as Foice, que não se levam tão a sério e até conseguem ser engraçados. Finalmente os More República Masónica voltam a conspirar com a ajuda do rock ‘n’ roll e da turbina Hawkwind. Insurrectos são uns mais do que outros. A maioria só um poucochinho. Aos portugueses jovens e músicos sobre em entusiasmo e espírito de iniciativa o que escasseia em ousadia e originalidade. À cena alternativa falta ainda muito espaço para ser área total. **