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John Cale – “Fear”

Pop Rock

14 JULHO 1993
REEDIÇÕES

John Cale
Fear

CD Island, distri. BMG


jc

A capa mostra um “close-up” do rosto de John Cale a preto e branco. Os olhos fitam-nos de frente. Noite e gelo. O medo. “Fear” é um dos melhores álbuns de Cale, apenas alguns furos abaixo dos magistrais “Honi Soit” e “Music for A New Society”. Editado no mesmo ano que “June 1, 1974”, mítica reunião ao vivo do ex-Velvet Underground (não vamos levar muito a sério a actual reformação do grupo) com Kevin Ayers, Brian Eno e Nico, “Fear” tem de comum com aquele a sonoridade abrasiva que, em parte, resultou da presença nos dois discos da guitarra de Phil Manzanera. Eno é outra das presenças determinantes no som geral de “Fear”, nos arranjos mais ambientais de “Emily”, “The man who couldn’t afford to orgy”, e “You know more than I know”. Compositor irregular, alternando o genial com o vulgar, Cale estava nesta altura em grande forma, agressivo e incisivo na guitarra, despindo as luvas de boxe ao piano, fazendo passar da melhor maneira o habitual pendor literário dos seus textos. O “medo é o melhor amigo do homem”, cantava ele no tema de abertura. John Cale soube tirar o melhor partido de tão perigosa amizade. (8)

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John Cale – “The Academy In Peril”

Pop Rock

 

5 JUNHO 1991

IMPORTAÇÃO DO CATÁLOGO DEMON RECORDS

 

JOHN CALE

The Academy in Peril (1972) ****

jc

John Cale, académico, é sempre suspeito. Pelo menos na época em que gravou o disco em questão. De formação clássica, o músico galês optara pelo niilismo e a violência conceptual dos Velvet Underground, guardando para a sua obra a solo as experiências mais periferias, que, ocasionalmente, viriam a resultar em discos esplendorosos, como “Fear”, “Slow Dazzle” ou “Music for a New Society”.

Gravado numa igreja com o acompanhamento da Royal Philharmonic Orchestra, “The Academy in Peril” pode considerar-se como obra que antecipa, com duas décadas de avanço, o formalismo clássico e o rigor estrutural do recente “Words for the Dying”, mas que, ao contrário deste, é permeável a um humor subtil, a que não é alheio a participação de Legs Larry (dos Bonzo Dog Band, variante pop/burlesco dos Monty Python). Música clássica assumida, subvertida ou subversiva? Podem levar-se a sério títulos como “Brahms”, “Faust” ou “John Milton”, com um “Legs Larry at Television Center” pelo meio? Estaria a academia realmente em perigo, ou tudo não passava de uma ressaca provocada pelos excessos de “The Church of Anthrax”, monstruosidade paquidérmico-minimal levada a cabo com a cumplicidade de Terry Riley? Estas e outras questões permanecerão talvez para sempre sem resposta. A capa (uma série de slides Kodachrome de Cale, assinados por Andy Warhol) ajuda a aumentar a confusão.

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John Cale – “HoboSapiens”

24.10.2003
John Cale
HoboSapiens
EMI, distri. EMI-VC
8/10

Não perdeu pitada da fúria que destilou nos Velvet. O novo álbum tempera a violência com a experimentação. Como o galês já não fazia desde Music For A New Society.

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John Cale, o galês ex-Velvet Underground das mãos de ferro (tocava piano como se envergase umas luvas de boxe, dizia a malograda Nico, a propósito da sua participação, como produtor e multinstrumentista, no álbum “The End…”). Bom, Cale não tem só as mãos de ferro. A cabeça também.
“Hobosapiens”, o seu mais recente álbum de estúdio, co-produzido por Nick Frangle, dos Lemon Jelly, e o primeiro num espaço de sete anos, confirma todas as virtudes, reduzindo ao mínimo os defeitos, deste músico que desde sempre mantém uma relação quase esquizofrénica entre a música pop (a saber, canções) e o experimentalismo (a saber, o risco formal – Cale fez parte, nos anos 60, do círculo do guru da escola minimalista, em versão zen, LaMonte Young, e gravou o álbum “Church of Anthraz” com Tery Riley). Virtudes que se revelam de imediato na primeira faixa, intitulada “Zen”, precisamente: a coragem de arriscar, misturar e refundir células melódicas e rítmicas, ideias e choques, através da fragmentação, do uso intensivo de samples e de arranjos idealizados por forma a tirar o maior partido das novas tecnologias “Pro Tools” que tem vindo a explorar nos últimos dois anos.
Os defeitos, aqui bastante minorados, limitam-se a essa tal síndrome das luvas de boxe (inexistente, por exemplo, no seu parente espiritual, Peter Hammill), sem que, todavia, tal impeça a detonação das granadas emocionais. Não que Cale (que hoje e a manhã se apresenta na Aula Magna de Lisboa) seja um brutamontes, nada disso; acontece apenas ser frequente a voz dar ideia de estar sempre um passo à frente do resto, tal a avidez de esmurrar a cara seja de quem for. “Hobosapiens” é um combate que só termina quando o adversário vai ao tapete por K.O. E esse adversário é o mundo.
“Reading my mind” prova ser a primeira grande canção, servida por uma batida rock sem descanso e uma guitarra afinada pelo diapasão de “Heroes”, de Bowie (a propósito, o propósito, o próprio Cale gravou um disco de rock-rock que poucos mencionam ou que menosprezam: “Honi Soit”) e um coro “doo-wop”: Difícil resistir.
“things” é Cale “vintage violence” com ex-Velvet a evidenciar a sua veia Dylaniana. “Look horizon” parte de sugestões etno, borbulha com efeitos electrónicos, faz contraponto vocal com uma declamação no feminino e é passada a ferro por uma orquestra digital que evoca tanto a dupla Brian Eno/Cluster como a absoluta e impenetrável bizarria que é “tilt”, de Scott Walker, disco do qual se tem falado para fazer uma comparação – abusiva – com “Hobosapiens”.
A habitual propensão para nomear canções com nomes próprios com caução cultural (segundo uma herança classizante que cristalizou em “Paris 1919” e, dispensando por completo a pop e o rock, em “The Academy in Peril”) manifesta-se em “Magritte” e “Archimedes”. O primeiro é outro dos momentos altos de “Hobospaiens”, verdadeiramente surrealista na estrutura, alternando violoncelo, filtragens e falsettos vocais, efeitos de luz e água e pormenores hammillianos, como tudo se desenrolasse no fundo de um lago, oculto por um véu de mistério. Já “Archimedes” condescende no “groove” sincopado do “drum ‘n’ bass” embora Cale faça gala em destruir as expectativas de quem gostaria que este fosse um disco de dança. Apesar de haver “Bicycle”, o mais dançável e redundante dos temas do álbum. A técnica pode ser essa mas o objectivo é outro, soando “Archimedes” como um falso calipso, cortado por um espantoso interlúdio orquestral (?) imune a quaisquer definições.
Cale, que já trabalhara com Brian Eno em “Fear” (uma das grandes e mais alucinadas obras do ex-Velvet) e “Caribbean Sunset”, demonstra não ter esquecido os ensinamentos do mestre das “estratégias oblíquas”, nos arranjos de “Caravan”, escorrendo tanta lava como em “Lodger”, de Bowie. Tema de viagem, como o era “Sanities” de “Music For a New Society”, ainda e sempre o expoente máximo, a solo, do artista.
Deixando “Bicycle” circular em direcção à meta, ao som de campainhas e balir de carneiros, deixando claro que Cale não é propriamente os Kraftwerk, o álbum entra na sua fase final no período mais ameaçador, aquele onde Cale se sente como peixe em águas pantanosas. Um par de temas, “Twilight Zone” e “Letter from abroad”, arrasam, moem os miolos, provocam suores frios. Tudo aquilo que seria suposto o rock provocar. Cale dá forte em “Twilight Zone”, moldando uma argamassa de vozes de comando – “Give up the ghost!”, “Bring out the dead!”, “Get on with your work!”, “Kick out the jams!” – guitarra sulfúrica e harmonias vocais em convulsão. Em “Letter from abroad”, inspirado num documentário para a televisão da jornalista Saira Shah sobre a ocupação do Afeganistão pelos talibãs, a guitarra derrama chumbo fundido sobre sonoridades orientais e uma batida demoníaca, com Cale a cantar como se estivesse possuído. Ou vivesse o último dia de vida. O coro eleva-se num “maelstrom” de agonia. Gritos. “They’re cutting their heads off in the soccer fields…”. Meira Asher adoraria ter sido ela a compor o tema. A revista “Uncut” lembra-se de citar, a propósito da sequência coral, o compositor Ligeti (ou Lee Getty, como foi chamado nas legendas de um documentário transmitido recentemente no Canal 2 da RTP, supostamente cultural).
Mais experiências de som e tempero de “drum ‘n’ bass” condimentam “Things X”, cultivando Cale aquele tom vocal etílico que, como bom galês e noutras ocasiões, nunca se coibiu de exibir, antes do pano baixar na balada épica final, “Over her head”. Supostamente de amor. “Ela vê chamas na cozinha/Uma visão do inferno” e “Ela ama toda a gente/Ela até me ama a mim”. E o tema dispara com o rock ‘n’ roll mais incendiário que se possa imaginar, embora Brian Eno tivesse acendido o fósforo, enquanto contava uma anedota, em “Blank Frank”, do álbum “Here Comes the Warm Jets”. Depois disto, quem apaga o fogo?
“Hobosapiens” tira John Cale da reserva e lança-o de novo para a frente de batalha. Aos 61 anos, é obra.