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24 Outubro 2003
Não perdeu pitada da fúria que destilou nos Velvet. O novo álbum tempera a violência com a experimentação. Como o galês já não fazia desde Music for a New Society.
John Cale
na frente de batalha
JOHN CALE
HoboSapiens
EMI, distri. EMI-VC
8|10
John Cale, o galês ex-Velvet Underground das mãos de ferro (tocava piano como se envergasse umas luvas de boxe, dizia a malograda Nico, a propósito da sua participação, como produtor e multi-instrumentista, no álbum “The End…”). Bom, Cale não tem só as mãos de ferro. A cabeça também.
“Hobosapiens”, o seu mais recente álbum de estúdio, co-produzido por Nick Frangle, dos Lemon Jelly, e o primeiro num espaço de sete anos, confirma todas as virtudes, reduzindo ao mínimo os defeitos, deste músico que desde sempre mantém uma relação quase esquizofrénica entre a música pop (a saber, canções) e o experimentalismo (a saber, o risco formal – Cale fez parte, nos anos 60, do círculo do guru da escola minimalista, em versão zen, La Monte Young, e gravou o álbum “Church of Anthraz “com Terry Riley). Virtudes que se revelam de imediato na primeira faixa, intitulada “Zen”, precisamente: a coragem de arriscar, misturar e refundir células melódicas e rítmicas, ideias e choques, através da fragmentação, do uso intensivo de samples e de arranjos idealizados por forma a tirar o maior partido das novas tecnologias “Pro Tools” que tem vindo a explorar nos últimos dois anos.
Os defeitos, aqui bastante minorados, limitam-se a essa tal síndrome das luvas de boxe (inexistente, por exemplo, no seu parente espiritual, Peter Hammill), sem que, todavia, tal impeça a detonação das granadas emocionais. Não que Cale (que hoje a amanhã se apresenta na Aula Magna de Lisboa) seja um brutamontes, nada disso; acontece apenas ser frequente a voz dar ideia de estar sempre um passo à frente do resto, tal a avidez de esmurrar a cara seja de quem for. “Hobosapiens” é um combate que só termina quando o adversário vai ao tapete por K.O. E esse adversário é o mundo.
“Reading my mind” prova ser a primeira grande canção, servida por uma batida rock sem descanso e uma guitarra afi nada pelo diapasão de “Heroes”, de Bowie (a propósito, o próprio Cale gravou um disco de rock-rock que poucos mencionam ou que menosprezam: “Honi Soit”) e um coro “doo-wop”. Difícil resistir.
“Things” é Cale “vintage violence” com o ex-Velvet a evidenciar a sua veia Dylaniana. “Look horizon” parte de sugestões etno, borbulha com efeitos eletrónicos, faz contraponto vocal com uma declamação no feminino e é passada ferro por uma orquestra digital que evoca tanto a dupla Brian Eno/Cluster como a absoluta e impenetrável bizarria que é “Tilt”, de Scott Walker, disco do qual se tem falado para fazer uma comparação – abusiva – com “Hobosapiens”.
A habitual propensão para nomear canções com nomes próprios com caução cultural (segundo uma herança classizante que cristalizou em “Paris 1919” e, dispensando por completo a pop e o rock, em “The Academy in Peril”) manifesta-se em “Magritte” e “Archimedes”. O primeiro é outro dos momentos altos de “Hobosapiens”, verdadeiramente surrealista na estrutura, alternando violoncelo, filtragens e falsettos vocais, efeitos de luz e água e pormenores hammillianos, como tudo se desenrolasse no fundo de um lago, oculto por um véu de mistério. Já “Archimedes” condescende no “groove” sincopado do “drum‘n’bass” embora Cale faça gala em destruir as expectativas de quem gostaria que este fosse um disco de dança. Apesar de haver “Bicycle”, o mais dançável e redundante dos temas do álbum. A técnica pode ser essa mas o objetivo é outro, soando “Archimedes” como um falso calipso, cortado por um espantoso interlúdio orquestral (?) imune a quaisquer definições.
Cale, que já trabalhara com Brian Eno em “Fear” (uma das grandes e mais alucinadas obras do ex-Velvet) e “Caribbean Sunset”, demonstra não ter esquecido os ensinamentos do mestre das “estratégias oblíquas”, nos arranjos de “Caravan”, escorrendo tanta lava como em “Lodger”, de Bowie. Tema de viagem, como o era “Sanities” de “Music for a New Society”, ainda e sempre o expoente máximo, a solo, do artista.
Deixando “Bicycle” circular em direção à meta, ao som de campainhas e balir de carneiros, deixando claro que Cale não é propriamente os Kraftwerk, o álbum entra na sua fase final no período mais ameaçador, aquele onde Cale se sente como peixe em águas pantanosas. Um par de temas, “Twilight zone” e “Letter from abroad”, arrasam, moem os miolos, provocam suores frios. Tudo aquilo que seria suposto o rock provocar. Cale dá forte em “Twilight zone”, moldando uma argamassa de vozes de comando – “Give up the ghost!, “Bring out the dead!”, “Get on with your work!”, “Kick out the jams!” – guitarra sulfúrica e harmonias vocais em convulsão. Em “Letter from abroad”, inspirado num documentário para a televisão da jornalista Saira Shah sobre a ocupação do Afeganistão pelos talibãs, a guitarra derrama chumbo fundido sobre sonoridades orientais e uma batida demoníaca, com Cale e cantar como se estivesse possuído. Ou vivesse o último dia de vida. O coro eleva-se num “maelstrom” de agonia. Gritos. “They´re cutting their heads off in the soccer fields…”. Meira Asher adoraria ter sido ela a compor o tema. A revista “Uncut” lembra-se de citar, a propósito da sequência coral, o compositor Ligeti (ou Lee Getty, como foi chamado nas legendas de um documentário transmitido recentemente no Canal 2 da RTP, supostamente cultural).
Mais experiências de som e tempero de “drum ‘n’ bass” condimentam “Things X”, cultivando Cale aquele tom vocal etílico que, como bom galês e noutras ocasiões, nunca se coibiu de exibir, antes do pano baixar na balada épica final, “Over her head”. Supostamente de amor. “Ela vê chamas na cozinha/Uma visão do inferno” e “Ela ama toda a genet/Ela até me ama a mim”. E o tema dispara com o rock ‘n’ roll mais incendiário que se possa imaginar, embora Brian Eno tivesse acendido o fósforo, enquanto contava uma anedota, em “Blank Frank”, do álbum “Here Comes the Warm Jets”. Depois disto, quem apaga o fogo?
“Hobosapiens” tira John Cale da reserva e lança-o de novo para a frente de batalha. Aos 61 anos, é obra.