Entrevista – Meira Asher: “As Cavidades Do Templo”

Pop Rock

12 Janeiro 1997

Meira Asher lança estreia controversa

AS CAVIDADES DO TEMPLO

O álbum de estreia da israelita Meira Asher, “Dissected”, promete dar que falar. Gritos e suspiros. Música das cavidades do corpo e da alma. Das suas doenças e dos seus sonhos. Poesia e experimentação sobrepostos num painel de tabus e sublimações. “World music” do fundo do poço.


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Meira Asher usa os textos bíblicos para dar a conhecer as suas visões. Ouve música de dança, mas não obedece às suas ordens de comando. Em viagem pelos caminhos da sexualidade, num “veículo próprio” entre a terapia e a denúncia, Meira Asher revelou ao PÚBLICO algumas das inquietações que manifesta em “Dissected”. Questionada sobre o diabo e a sua interferência na música, respondeu com uma citação de Job. Tão perturbante como a música.
PÚBLICO – “Dissected” é um álbum violento, de confrontação. Há alguma razão especial para ter escolhido esta estratégia de choque.
MEIRA ASHER – “Dissected” tem a ver com confrontação, mas não é violento. É um procedimento médico vulgar, uma observação mais de perto dos membros.
P. – Por que razão decidiu fazer também a produção do disco?
R. – Foi a coisa mais natural do mundo. Pretendi dar-lhe o toque mais pessoal possível. Em termos artísticos: projectar uma multiplicidade tumultuosa de disciplinas que resultasse numa síntese que pudesse manejar a meu bel-prazer. Em termos da indústria: as editoras que existem aqui [em Israel] não têm nem visão nem independência, todas elas lidam apenas com a música de Israel mais “mainstream”, que é extremamente chata. Os poucos músicos com uma atitude individualista que existem por cá geralmente produzem os seus próprios álbuns.
P. – O corpo e o sexo são duas das temáticas centrais de “Dissected”. Porque escolheu “Sida” para abrir o álbum?
R. – “Sida” tem por base uma oração de luto maravilhosa, chamada “Aquele que dá forma”. É uma invocação do poder de cura de Deus e refere-se a todas as cavidades do corpo humano. Quem ora não conhece nenhumas fronteiras, nem do tempo nem do espaço, nem da boca que canta…
P. – A relação que estabelece entre os textos bíblicos e alguns temas tabus da sociedade ocidental é outra estratégia de choque ou tem raízes mais profundas?
R. – Utilizo as escrituras por diversas razões. Uma dela é por ser uma grande obra de poesia, acessível, que emprega uma sábia sintaxe das sílabas hebraicas, o que resulta numa textura sonora de enorme profundidade. Aqueles que andam sempre a lamentar-se do desaparecimento da música do templo não se aperceberam deste facto. Por outro lado, a natureza eterna dos textos permite interpretações infindáveis, uma das quais é a sua manipulação tendenciosa por fanáticos, no contexto sócio-político de Israel.
P. – “Dissect me” fala de sofrimento, mutilação e tortura. Há uma relação óbvia com a Intifada, mas também permite outro tipo de leituras…
R. – … é um tema que traduz um sonho de horror que tive, durante a Intifada. Mas são possíveis outras leituras, sim… Sugerindo um Estado próprio chamado Palestina.
P. – “Maligora”, com poema de Tahar Bem Jelloun, é um dos temas mais fortes do disco. A energia sexual em circuito fechado. Uma espécie de tantrismo solitário. Que pretendeu dizer com este tema?
R. – O lugar é Marrocos. Na maior parte das sociedades orientais, quem não tem filhos e ainda por cima tem uma quantidade de filhas é objecto de desprezo. Um pai de sete filhas, frustrado, decide que o próximo será um rapaz, custe o que custar. O oitavo a nascer é, assim, uma “filha/filho”, como uma mentira, condenada a viver toda a vida na solidão. Ele leva as suas capacidades de escrita ao extremo de usar as palavras para preservar a sua sanidade. No parágrafo que utilizei, ela descreve o encontro sexual com o seu próprio corpo, à medida que vai descobrindo a sua identidade feminina. Tem 20 anos, o pai acabou de morrer e ela abandona a aldeia para uma longa viagem. “Maligora” é uma “raga” do Norte da Índia, entre a noite e a madrugada, em que os sentidos estão despertos e aguçados como o sabor do alho. A recitação do texto é feita pela harpista italiana Stefania Mpoiraghi.
P. – O incesto é abordado em “Daddy came”. Ainda e sempre o corpo e a pureza violentados?
R. – É um grito de despertar. Uma forma cáustica para nos recordar os direitos da criança.
P. – Está de acordo com que a sua música se pode considerar “ritual”, na medida em que induz a transformações, interiores e exteriores, de vária ordem?
R. – Sem dúvida.
P. – Trabalhou em musicoterapia, com crianças autistas. “Dissected” é, nesta medida, uma terapia ou, pelo contrário, uma contaminação?
R. – Digamos que um espelho da realidade. É necessária uma grande dose de energia para transformar um sonho como este em palavras. Lembro-me de, nessa altura, trepar pelas paredes e esborrachar os miolos contra elas…
P. – Que tipo de reacção tem tido este seu trabalho, em Israel?
R. – O “feedback” tem sido bom. As pessoas comovem-se, nalguns casos até às lágrimas. Os israelitas, embora raramente prezem a originalidade, admiram a honestidade.
P. – Sei que se interessa pela música electrónica, nomeadamente pela techno e industrial, formas musicais conotadas com a massificação, o apocalipse e o terror. De que maneira pretende trabalhar, no futuro, com estas formas musicais?
R. – Não posso predizer o que aí vem, mas planeio, de facto, entrar mais a fundo na electrónica. Há novo material a aparecer e estou na fase de procurar músicos para o tocar.
P. – Que relação mantém com a cena internacional da música de dança? Concorda que é uma óptima maneira de introduzir determinado tipo de mensagens ideológicas? O transe como veículo, não de ascese, mas de hipnose…
R. – Ouço bastante “dance music”, de toda a espécie, apesar de o meu corpo rejeitar a maior parte e não obedecer à ordem de comando “Move!” [Mexa-se!]. Propaganda e formas de hipnose podem e têm sido usados através de vários estilos de música. No que me diz respeito, sinto necessidade de criar um veículo protótipo.
P. – O demónio, caso acredite nele, está a trabalhar em pleno neste final do século. Concorda que a música é, presentemente, o seu instrumento privilegiado?
R. – “Satanás replicou ao Senhor: ‘Um homem é capaz de dar tudo o que tem, e até a sua própria pele, para poder salvar a sua vida! Mas experimenta levantar a tua mão contra ele, faz com que ele sofra a doença nos seus ossos e no seu corpo e verás se ele não te amaldiçoa, mesmo na Tua frente!’” Job, 2:4-5.



Entrevista: Arto Lindsay – “A Bossa Nova Tem Elementos Vanguardistas”

Pop Rock

29 Janeiro 1997

“A BOSSA NOVA TEM ELEMENTOS VANGUARDISTAS”

Em o “O Corpo Sutil”, Arto Lindsay canta toda a tristeza que pode ter a bossa nova. Uma música que “deixa o dito por não dito”, na qual encontra “elementos de vanguardismo”. Nutre uma admiração imensa por João Gilberto, “o maior cantor do universo”. Longe vão os tempos com os DNA, quando lia Fernando Pessoa, no meio de uma “barulheira danada”.


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Arto Lindsay, conhecido como uma figura de proa da “downtown” nova-iorquina, viveu quinze anos no Brasil. As sementes brasileiras ficaram, percorrendo a sua música desde o início, com os DNA, até ao seu mais recente álbum a solo, “O Corpo Sutil”, uma viagem em redor da bossa nova. O PÚBLICO conversou com ele. Em português.
PÚBLICO – Quantos anos viveu no Brasil e onde?
ARTO LINDSAY – Quinze anos, dos três aos dezoito. Vivi no Nordeste do Brasil, no interior, em Pernambuco, numa cidade chamada Garanhões. Mas viajava bastante pelo resto do país, com a minha família.
P. – Quando ouviu pela primeira vez bossa nova?
R. – Foi na rádio, quando a bossa nova começou. Tornou-se na música brasileira nacional. Sem dúvida, é uma música carioca mas também tem elementos do baião. Um exemplo é a batida de violão do próprio João Gilberto.
P. – Alem da bossa nova, ouve a música do Nordeste do Brasil?
R. – Com certeza! A música nordestina está sendo uma grande influência em toda a música jovem do resto do Brasil. Há actualmente músicos nordestinos geniais. Aliás, a melhor banda brasileira, hoje em dia, é pernambucana, Chico Science & A Nação Zumbi. Outra grande banda é a de Carlinhos Brown.
P. – Houve uma época em que todo o artista brasileiro fazia questão de gravar nos Estados Unidos. Falava-se, então, muito, em descaracterização. Concorda?
R. – No passado, isso ocorreu, de facto, nem sempre por culpa dos músicos, mas sim das editoras, que queriam encaixar os músicos num padrão americano. Não funcionou.
P. – A influência da bossa nova parece ter-se eclipsado no início da sua carreira, quando, no final dos anos 70, formou a banda de “noise rock” DNA. Ou não?
R. – Repare, o Brasil tem uma tradição muito forte de música de vanguarda. A própria bossa nova tem elementos vanguardistas, é muito conceptual. E a música do Tropicalismo foi a mais abrangente, no sentido intelectual do termo, dos anos 70. Havia, embora de maneira não óbvia, elementos de música brasileira nos próprios DNA. E tínhamos uma música cuja letra consistia em primeiras frases de vários poemas de Fernando Pessoa, que eu gritava no meio de uma barulheira danada!…
P. – Seguiram-se os Lounge Lizards. No disco de estreia, a sua guitarra era parte determinante do som do grupo. Depois, o saxofone de John Lurie passou a ocupar quase todo o espaço. Teve desinteligências com ele?
R. – Quando a gente começou, éramos, de facto, uma banda. Mas depois chegou uma época em que virou John Lurie e os Lounge Lizards, na qual não quis participar. Mas John Lurie continua sendo muito amigo meu. Ainda há dias falámos horas ao telefone.
P. – Um álbum em que as baladas cantadas, por si, em português, parecem algo deslocadas é “The Man in the Elevator”, de Heiner Goebbels…
R. – Exactamente por serem deslocadas é que elas surgem. Uma das escolhas foi do próprio Heiner, o tema da baiana. A outra música, do Cartola, fui eu que escolhi. O Heiner pretendeu colocar no meio daquela atmosfera, meio industrial, fria e triste, alguns momentos quase de sonho.
P. – Volta a cantar em português num disco pouco falado, “Comme des Garçons”, de Seigen Ono, em dois volumes repletos de estrelas da “downtown” e músicos brasileiros…
R. – É verdade. Foi uma das primeiras coisas que fiz como produtor, fiz a produção associada de algumas faixas. Por acaso, estou a trabalhar de novo com Seigen Ono, neste momento, na produção de um disco de um violinista japonês. O Seigen é o engenheiro de som.
P. – É verdade que foi Ryuichi Sakamoto a sugerir-lhe gravar um disco em torno da música brasileira, que viria a resultar em “O Corpo Sutil”?
R. – É verdade, sim. Ele gosta imenso de bossa nova e de coisas minhas que já conhecia, nesta área, coisas bem calmas. Pediu-me para fazer um disco de bossa nova. Eu concordei em fazer, pelo menos, um disco quieto.
P. – Um dos convidados mais assíduos no alinhamento do disco é Vinicius Cantuária…
R. – Foi uma escolha natural. A única pessoa que fui buscar a outro lado foi o Bill Frisell. O Vinicius veio morar em Nova Iorque; por isso, foi fácil. O Brian Eno também estava na altura da gravação a trabalhar em Nova Iorque, com David Bowie. Sakamoto também vive em Nova Iorque. Estava todo o mundo aqui.
P. – Por falar em Brian Eno, é uma das escolhas mais curiosas para o “line up”.
R. – Ele costumava vir ao estúdio onde estávamos, todos os dias, depois de trabalhar com o David Bowie, só para conversar. Em geral, finalizadas as sessões, saíamos os dois para jantar. Passou-se uma semana assim. No último dia, perguntei-lhe se não queria gravar um pouquinho. Nem tinha pensado nisso antes. Mas acho que combinou bem com a ideia do disco.
P. – O único tema de algum dos pais da bossa nova é “Este seu olhar”, de António Carlos Jobim. Por que razão escolheu este tema em particular?
R. – Foi composto e escrito por ele. É um tema sucinto, uma das qualidades que aprecio na bossa nova. Fazer uma música toda em cima de uma só percepção, de uma única ideia.
P. – “O Corpo Sutil” não é um álbum de bossa nova mas sim sobre a essência da bossa nova, não é?
R. – É por aí, sim. Já tentei várias vezes definir que essência é essa… Tem a ver com a tal batida de violão do João Gilberto. Tem a ver com o deixar o dito por não dito… tem a ver com uma relação da intimidade com uma emoção maior, pública mesmo, uma dialéctica entre dois sentimentos. Há alguém que se senta sozinho a tocar um violão. Mas o violão de João Gilberto sugere legiões de percussionistas, escolas de samba, está tudo implícito.
P. – É conhecido como guitarrista mas, neste álbum, quase só canta. Sentiu que não era capaz de adaptar o seu estilo de guitarra, eléctrico e fragmentado, ao ambiente da bossa nova?
R. – Só toco mesmo nesse estilo! Não sei tocar violão, um acorde sequer. Sou um instrumentista diferente. Ao vivo, já tenho misturado as duas coisas, mas neste disco foi diferente.
P. – A sua voz tem a mesma suavidade e fluidez de Tom Jobim ou de João Gilberto…
R. – Em termos técnicos, pode haver algumas semelhanças com Tom Jobim, sim. Digamos que vou aprendendo a cantar enquanto canto. Já João Gilberto tem uma técnica incrível. É o maior cantor do mundo!
P. – “Anima animale” é um dos temas mais estranhos do disco. No final canta “It’s no fun unless it bleeds” (“não tem piada se não sangrar”).
R. – O refrão fala da confiança animal, como se diz em inglês, “animal confidence”. “Anima animale” quer dizer, “animal soul”. É uma mistura engraçada entre estas duas ideias. Foi um amigo meu italiano que um dia me chamou de “Anima animale”. A letra trata de vários encontros da “anima”, alma, com o animal. Também se pode ler como sexo adulto. Ou a histeria da criança. Gosto imenso de crianças, embora não seja casado nem tenha filhos. Além de que podem ser muito úteis como metáforas.
P. – O que é o “Corpo Sutil”? O corpo astral?
R. – No ideário yogi (embora seja um conceito budista e também hindu), acredita-se na existência de três corpos. O corpo físico, corpo subtil, que é o corpo nervoso, e o corpo ultra-subtil, o espírito. O corpo subtil está no meio, é uma espécie de purgatório.
P. – Interessa-se por esse tipo de assuntos, pelo candomblé, por exemplo?
R. – O candomblé é muito interessante para mim. É uma religião que, embora linda, é muito prática. Com um reportório cultural incrível. E, no seu íntimo, há algo de moderníssimo. Uma grande parte da música brasileira vem do candomblé.



Sacerdotes de Alquimia – “Sacerdotes de Alquimia”

POP ROCK

14 Maio 1997
portugueses

Sacerdotes de Alquimia
Sacerdotes de Alquimia
ED. E DISTRI. NUMÉRICA


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V Império, Sacerdotes de Alquimia. Os novos grupos portugueses não fazem a coisa por menos. Por sinal, os Sacerdotes até têm um tema chamado “Quinto Império”, com texto de Fernando Pessoa e tudo. E outro, “Quinto mar”. E outro, “Saudade”. Até o fotógrafo da capa se chama João Portugal, bolas! É, sem dúvida, uma perspectiva original e nunca antes navegada, perdão, apresentada, pela música portuguesa. Portugal andava a precisar disto, de quem lhe avivasse os mitos e espicaçasse o orgulho. Os Sacerdotes de Alquimia, transmutados no meio académico de Coimbra a partir da matéria-prima do grupo Essa Agora, fazem-no no esplendor do seu rock sinfónico de Sociedade Recreativa, partindo, logo no primeiro tema, por uma “Aventura” de fazer corar de vergonha os Brilhantes do Ritmo + 1. “Escaravelhos” tem uma flauta a fingir o Peter Gabriel dos Genesis mais antigos. “Viagem” fala do “vento lusitano” que é “este sopro humano universal que enfuna a inquietação de Portugal”. “Enfuna” é bonito. Temos país, temos flauta, temos um sintetizador à Camel, temos neo-progs. Tantra, voltem, por favor. Agora a sério, não é qualquer um que sabe combinar o enxofre e o mercúrio no Atanor da imaginação. Os Sacristãos, hã, Sacerdotes de Alquimia mostram, para já, um som “mainstream” e um pretensiosismo de conceitos sem correspondência na música. O termo “progressivo” não tem nada a ver com eles. (3)