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Fernando Magalhães no “Fórum Sons” – Intervenção #129 – “mas e___ a Meira Asher (Vítor Junqueira)”

#129 – “mas e___ a Meira Asher (Vítor Junqueira)”

Fernando Magalhães
24.07.2002 130118
Não foi mau. Mas também não saí de lá deslumbrado e, muito menos, massacrado.

A performance dela e do Guy Harries, embora poderosa, soou-me nalguns momentos algo gratuita e previsível (o tipo aos berros, ela aos berros, os dois aos berros…) sobre uma base rítmica eletrónica que pouco adianta em relação à música industrial dos anos 80 (lembrei-me sobretudo dos primeiros Test Dept…).

No disco a coisa funciona, paradoxalmente (ou nem tanto…) melhor, na medida em que se consegue seguir os textos e há uma dimensão abstrata e de “não mostrado” que acaba por conferir ao todo uma outra dimensão, muito mais perturbante.

É como nos filmes de terror. Às vezes mostrar muito sangue, monstros, etc, não é a melhor solução para provocar o medo…

FM

Fernando Magalhães no “Fórum Sons” – Intervenção #105 – “Sacana da Meira Asher! (FM)”

#105 – “Sacana da Meira Asher! (FM)”

Fernando Magalhães
07.05.2002 150323
Ouvi ontem o “Infantry”.
Se já não andava muito bem disposto, fiquei pior.

A sacana da israelita tem o condão de pegar nos temas mais incómodos e deprimentes e atirá-los à nossa cara.

Em “Infantry” o tema é o abuso de menores, nas suas várias vertentes. As letras são, em certos casos, aterradoras (descrições minuciosas de torturas, a morte que aniquila em instantes uma criança que atravessa uma rua num dia de sol e é baleada na cabeça).

Musicalmente, o álbum funciona num registo diferente (como o César já aqui fez notar) de “Spears into Hooks”, mas o resultado talvez ainda seja mais perturbador. É eletrónica pegajosa, programações de máquinas com maus instintos e sobre este lancinante mundo sem alma, a voz de Meira a declamar/cuspir/vomitar palavras onde a dor e a crueldade são uma constante.

É um daqueles álbuns que se odeia, porque nos obriga a confrontar com o lado mais negro e miserável da condição humana.

Não lhe atribuo qualquer classificação, por enquanto. Ainda não me consegui distanciar.

Quanto ao novo dos Chicago Underground Duo, está, de facto, na linha do anterior “Synesthesia”: Jazz-jazz, jazz digital, vibrafones ambientais, interlúdios eletrónicos, solos de R. mazurek na “cornet” (cujo som é um bocado mais irritante que o do trompete…). Bom, por vezes muito bom, sem ser brilhante.

Sobre as japonesas BUFFALO DAUGHTER…bem…aquilo é uma salada que às vezes atrai outras nos deixa sem saber o que pensar. Há um pouco de tudo em “I”: Jazz third stream, Anna Homler, Astrud Gilberto, After Dinner, eletrónica a la Laurie Anderson com o toque de elegância japonesa, pop semi-psicadélica…
O todo fez-me lembrar frequentemente os…DONNA REGINA.

FM

Meira Asher – “Spears into Hooks”

Sons

22 de Janeiro 1999
POP ROCK


Meira Asher
Spears into Hooks (10)
Crammed, distri. Megamúsica

Apocalypse Now


ma

Como o mundo acaba antes do ano 2000, Meira Asher antecipou-se, deixando para a geração de sobreviventes o seu próprio testemunho do apocalipse. “Spears into Hooks” é o segundo álbum desta israelita de cabelo rapado cuja estreia, intitulada “Dissected”, pese embora toda a sua força, não fazia prever o abalo emocional que a audição deste seu novo trabalho provoca. Os resquícios étnicos que aligeiravam um pouco a densidade musical de “Dissected” desapareceram, substituídos por um terramoto constante de electrónica industrial ultra-saturada, muito para além dos primeiros Test Dept. ou das litanias do inferno cuspidas por Diamanda Galas, que Meira ultrapassa na estética do grito, do vómito e do desespero.
“Spears into Hooks” explode-nos no estômago como uma granada. Obsessivamente, esfacelando o corpo e a alma, Meira Asher escalpeliza com uma minúcia que raia a crueldade a temática do Holocausto, tema após tema progressivamente mais perto do fundo do abismo. “Shahid 1” e “Shahid 2” são feridas, sons insuportáveis, samples de todas as guerras e todas as mortes e todas as torturas, música da agonia. Não se compreende como o estúdio aguentou, como as próprias máquinas suportaram a violência que lhes foi infligida. Imagine-se “Second Annual Report” dos Throbbing Gristle, mais “The Unacceptable Face of Freedom”, dos Test Dept., com uma dose extra de horror. “The Flood”, ainda no princípio, faz-nos já pensar na fuga, levando-nos a questionar como foi possível gravar um disco onde a dor está exposta de forma quase pornográfica.
Sob a voz, à beira do colapso, as máquinas agitam-se em fúria, elas mesmas esmagadas num sofrimento sem limites. E, como pano de fundo, um painel de morte: “samples” com gravações de mulheres e crianças atingidas por vários tipos de projécteis, descrevendo os seus efeitos físicos e as graduações da dor. Excertos adaptados do Génesis bíblico. Descrições de mortes, de assassínios, vozes vazias perante corpos que tombam, o testemunho de um sobrevivente do Holocausto. No final, a voz da israelita, cada vez mais distorcida, clama, escarra: “Die! Die” DIE!” Nada que se compare e nada que nos prepare para o que vem a seguir: “Weekend away break”. Um fim-de-semana turístico no campo de concentração de Birkenau. Uma batida de coração, amplificada até se confundir com a do planeta inteiro, em marcha para o inferno. “Uma canção de boas-vindas a um lugar criado por nós num momento de inspiração.” Golpes sobre golpes, dissecando a carne. E a canção saltando da hecatombe para uma valsa de Johann Strauss, “Spahrenklange”. Marlene Dietrich dançando com graciosidade, discos antigos, a elegância germânica, o mundo como um lugar cor-de-rosa.
“Birkenau e as suas florestas divinais, abrigo de espécies em extinção/De manhã vêem-se pessoas apanhando raízes e morangos/Outra atracção interessante: Elas não suportam o seu próprio cheiro a decadência/E à medida que o sol se põe por trás da floresta/Eles estarão a banhar-se e a fumar.” O martelo prossegue, a marcha torna-se fantasmática. A valsa do carrasco confunde-se com a ronda desconjuntada das vítimas. “Acordarás ao som das sirenes para outro dia passado no bar/e vais esquecer-te do pequeno-almoço porque vais experimentar os nossos pequenos jogos/E se não te apetecer jogá-los, bem, o que é que te podemos dizer mais?/Oferecemos-te a opção da sauna/Basta inalares e serás transportado para o paraíso.” O “ambiente celestial”, a “experiência etérea” culminando no silvo de gás e nos ecos de milhões de vidas que se vão extinguindo, como uma alucinação da mente, no “poema de Birkenau”. Não nos recordamos de um único disco que tenha ido tão longe.
Mas Meira Asher prossegue, implacável, atirando-nos à cara os coros de um povo que se extingue. Milícias de pedra, filmes sem imagem, queimados, esgotos e a fanfarra da Kocani Orkestar a incendiar o folclore dos Balcãs, em “Tiring night”, o único momento de “Spears into Hooks” em que se alivia um pouco a tensão. Mas logo a seguir os fornos reacendem-se com renovada intensidade. “Me last granny”, o amor e a destruição do amor, cantada em búlgaro e hebraico, metamorfoses vocais sobre electrochoques, chicotes eléctricos e ruídos de motor. Não faz mais sentido falar de música industrial. “I love you so – so – much.” Novo golpe. Doença do cérebro. Heresia e uma bênção. Uma criança com voz de demónio. Programações de Satanás.
O mal tudo cobre, por fim, em “É um Uomo”, resposta ao poema “Se questo é un uomo”, de Primo Levi. Insensíveis, com a inexorabilidade da morte, as máquinas (nunca os computadores se reduziram tanto a instrumentos de tortura, como em “Spears into Hooks”, conglomerando-se em rajadas de metralhadora, explosões e entropia de gases, vidro estilhaçado e metal) despedaçam os membros, braços e pernas, de uma mulher que grita até conseguir esquecer: “Lembramo-nos de tudo o que aconteceu/E agora é encarado como nunca tivesse acontecido/Não gravaremos nada nos nossos corações/Quando chegarmos a casa e já estivermos longe/Quando pudermos descansar e nos erguermos de novo/Não imprimimos nada do que vivemos nos nossos filhos/Deste modo perderemos a nossa essência/E a doença tomará conta de nós da cabeça aos pés/E a nossa descendência afastar-se-á de nós/Cada vez mais, para todo o sempre.” 1999 já encontrou o seu disco do ano. Chama-se “Spears into Hooks” e tem na contracapa um pardal crucificado.