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Carla Bolito + Luciana Fina + Vera Mantero + Isabel Ruth – “O Rosto De Três Mulheres Que Cantam” (artigo de opinião / festivais / concertos)

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quinta-feira, 25 Setembro 2003


PARES IMPROVÁVEIS REINVENTAM IMAGENS

Artigo de Lucinda Canelas sobre o Festival Temps d’Images, em que FM assina a caixa:

O rosto de três mulheres que cantam

CARLA BOLITO, LUCIANA FINA
VERA MANTERO E ISABEL RUTH



Três rostos de mulher são projetados em separado, lado a lado, durante uma hora, formando um tríptico de olhares, de silêncios e de músicas, exteriores e interiores. Parecem dialogar telepaticamente entre si e, se prestarmos atenção, connosco. Carla Bolito, atriz, Vera Mantero, bailarina e coreógrafa, e Isabel Ruth, também atriz, deixaram-se filmar durante uma hora, por esta ordem, cada uma num único plano, pela realizadora Luciana Fina, autora de filmes e instalações de carácter documental. O resultado recebeu o título de “CHANTier”, projeto em que o canto é o motivo subjacente a três “retratos em movimento” que procuram, no fluir da imagem e dos movimentos dos rostos, descobrir a intimidade que se oferece nos atos de cantar, representar e, em última instância, de se ser no tempo da representação. Para a câmara e para a própria realizadora.
É uma dança. Um jogo de intensidades. Revelação e ocultação. E uma transgressão, já que, em vez de um trabalho em dupla, Luciana Fina criou para este festival três “pas de deux” com as suas artistas convidadas. Ou, nas suas próprias palavras, “um jogo interno dentro do conceito”, aumentado para uma “relação a quatro”, construída com base na intuição mas também num estudo rigoroso das estruturas que regem o tempo de exposição. Fina refere, a propósito, o trabalho de Roland Barthes sobre a análise do trabalho fotográfico, que a levou a investigar “a sobreposição da imagem que o retratado tem de si próprio e quer projetar para o exterior e a imagem que o retratista tem do retratado”. O desafio: “Criar um retrato em movimento” em que o canto é tanto “um pretexto” como uma “fascinação”.
Carla Bolito interpreta para a câmara de Luciana Fina a canção “Sino all’ultimo minuto”, de Piero Ciampi, “cantautor dos anos 70 que vivia a música na sua forma mais existencialista”, apresentada originalmente na peça “Seres Solitários”, de Lúcia Sigalho. Uma canção que fala da ausência e de “esticar o sentimento até ao último minuto”.
“Oração ao tempo” de Caetano Veloso (do álbum “Cinema Transcendental”) metamorfoseia-se na voz de Vera Mantero que já a havia cantado em “Sequência para um Estado de Graça”, filme em Super8 com assinatura de Fina. “Podia ser o título desta instalação”, garante, ao mesmo tempo que lê um excerto do poema que fala do tempo como “compositor de destinos” e “tambor de todos os ritmos”.
“Io te vvurria vasà” é uma canção que “fala do tempo que uma mulher demora, olhando para o rosto do homem amado, a decidir se obedece ao desejo de o beijar ou ao carinho de não o acordar”. Mulher que finalmente exprime o desejo de também ela poder dormir “pelo menos uma hora”.
Uma hora é o tempo que Luciana Fina recortou da vida de cada uma destas três mulheres pertencentes a gerações diferentes. Oscilação, corte, separação e reunião. “CHANTier” propõe encarar o olhar de quem canta e morre e ressuscita num “loop” de uma hora durante a qual a vida, aprisionada, fulge e adormece.

Fátima Miranda – “ArteSonado”

15 de Setembro 2000
POP ROCK – DISCOS


Fátima Miranda
ArteSonado (9/10)
Led, distri. Ananana



Mal fará quem se propuser escutar o mais recente álbum da cantora espanhola Fátima Miranda recostado no sofá com a concentração regulada a meio gás. “ArteSonado” exige que o mundo se apague à sua volta de modo a deixara voz inundar o mais ínfimo recanto da alma. Mantendo embora o mesmo elevadíssimo grau de virtuosismo e experimentação vocais que caracterizavam o anterior e magnífico “Concierto en Canto”, o novo trabalho da cantora que esta semana atuou em Lisboa e no Porto opera porventura a um nível mais subliminar, evidenciando sinais de um ritualismo que, recorrendo, como seria de esperar, a técnicas vocais tradicionais como o drhupad indiano, o flamenco ou o canto polifónico de Tuva, se revestem de uma inconfundível modernidade. Fátima Miranda invoca aqui forças ancestrais e coloca a voz ao seu serviço numa sequência de oito movimentos que percorrem toda a gama de registos vocais e estados de espírito que vão da serenidade contemplativa à histeria, da regressão à infância ao lançamento de maldições, da recriação étnica ao risco absoluto, entre o humor e a psicose, o amor e a morte. “Ornado de artesões” ou a “arte que soa”, dois dos significados semânticos do título, “ArteSonado” é a arquitetura vocal e anímica de êxtases formatados pela inteligência analítica e por uma imensa vontade de ir sempre mais além. Acondicionado num livro que é, também ele, um intenso convite ao jogo e ao prazer, “ArteSonado” não terá o impacte de “Concierto en Canto” mas deixa a certeza de que ficará igualmente inscrito no grupo das grandes obras vocais deste século.


Meira Asher – “Spears into Hooks”

Sons

22 de Janeiro 1999
POP ROCK


Meira Asher
Spears into Hooks (10)
Crammed, distri. Megamúsica

Apocalypse Now


ma

Como o mundo acaba antes do ano 2000, Meira Asher antecipou-se, deixando para a geração de sobreviventes o seu próprio testemunho do apocalipse. “Spears into Hooks” é o segundo álbum desta israelita de cabelo rapado cuja estreia, intitulada “Dissected”, pese embora toda a sua força, não fazia prever o abalo emocional que a audição deste seu novo trabalho provoca. Os resquícios étnicos que aligeiravam um pouco a densidade musical de “Dissected” desapareceram, substituídos por um terramoto constante de electrónica industrial ultra-saturada, muito para além dos primeiros Test Dept. ou das litanias do inferno cuspidas por Diamanda Galas, que Meira ultrapassa na estética do grito, do vómito e do desespero.
“Spears into Hooks” explode-nos no estômago como uma granada. Obsessivamente, esfacelando o corpo e a alma, Meira Asher escalpeliza com uma minúcia que raia a crueldade a temática do Holocausto, tema após tema progressivamente mais perto do fundo do abismo. “Shahid 1” e “Shahid 2” são feridas, sons insuportáveis, samples de todas as guerras e todas as mortes e todas as torturas, música da agonia. Não se compreende como o estúdio aguentou, como as próprias máquinas suportaram a violência que lhes foi infligida. Imagine-se “Second Annual Report” dos Throbbing Gristle, mais “The Unacceptable Face of Freedom”, dos Test Dept., com uma dose extra de horror. “The Flood”, ainda no princípio, faz-nos já pensar na fuga, levando-nos a questionar como foi possível gravar um disco onde a dor está exposta de forma quase pornográfica.
Sob a voz, à beira do colapso, as máquinas agitam-se em fúria, elas mesmas esmagadas num sofrimento sem limites. E, como pano de fundo, um painel de morte: “samples” com gravações de mulheres e crianças atingidas por vários tipos de projécteis, descrevendo os seus efeitos físicos e as graduações da dor. Excertos adaptados do Génesis bíblico. Descrições de mortes, de assassínios, vozes vazias perante corpos que tombam, o testemunho de um sobrevivente do Holocausto. No final, a voz da israelita, cada vez mais distorcida, clama, escarra: “Die! Die” DIE!” Nada que se compare e nada que nos prepare para o que vem a seguir: “Weekend away break”. Um fim-de-semana turístico no campo de concentração de Birkenau. Uma batida de coração, amplificada até se confundir com a do planeta inteiro, em marcha para o inferno. “Uma canção de boas-vindas a um lugar criado por nós num momento de inspiração.” Golpes sobre golpes, dissecando a carne. E a canção saltando da hecatombe para uma valsa de Johann Strauss, “Spahrenklange”. Marlene Dietrich dançando com graciosidade, discos antigos, a elegância germânica, o mundo como um lugar cor-de-rosa.
“Birkenau e as suas florestas divinais, abrigo de espécies em extinção/De manhã vêem-se pessoas apanhando raízes e morangos/Outra atracção interessante: Elas não suportam o seu próprio cheiro a decadência/E à medida que o sol se põe por trás da floresta/Eles estarão a banhar-se e a fumar.” O martelo prossegue, a marcha torna-se fantasmática. A valsa do carrasco confunde-se com a ronda desconjuntada das vítimas. “Acordarás ao som das sirenes para outro dia passado no bar/e vais esquecer-te do pequeno-almoço porque vais experimentar os nossos pequenos jogos/E se não te apetecer jogá-los, bem, o que é que te podemos dizer mais?/Oferecemos-te a opção da sauna/Basta inalares e serás transportado para o paraíso.” O “ambiente celestial”, a “experiência etérea” culminando no silvo de gás e nos ecos de milhões de vidas que se vão extinguindo, como uma alucinação da mente, no “poema de Birkenau”. Não nos recordamos de um único disco que tenha ido tão longe.
Mas Meira Asher prossegue, implacável, atirando-nos à cara os coros de um povo que se extingue. Milícias de pedra, filmes sem imagem, queimados, esgotos e a fanfarra da Kocani Orkestar a incendiar o folclore dos Balcãs, em “Tiring night”, o único momento de “Spears into Hooks” em que se alivia um pouco a tensão. Mas logo a seguir os fornos reacendem-se com renovada intensidade. “Me last granny”, o amor e a destruição do amor, cantada em búlgaro e hebraico, metamorfoses vocais sobre electrochoques, chicotes eléctricos e ruídos de motor. Não faz mais sentido falar de música industrial. “I love you so – so – much.” Novo golpe. Doença do cérebro. Heresia e uma bênção. Uma criança com voz de demónio. Programações de Satanás.
O mal tudo cobre, por fim, em “É um Uomo”, resposta ao poema “Se questo é un uomo”, de Primo Levi. Insensíveis, com a inexorabilidade da morte, as máquinas (nunca os computadores se reduziram tanto a instrumentos de tortura, como em “Spears into Hooks”, conglomerando-se em rajadas de metralhadora, explosões e entropia de gases, vidro estilhaçado e metal) despedaçam os membros, braços e pernas, de uma mulher que grita até conseguir esquecer: “Lembramo-nos de tudo o que aconteceu/E agora é encarado como nunca tivesse acontecido/Não gravaremos nada nos nossos corações/Quando chegarmos a casa e já estivermos longe/Quando pudermos descansar e nos erguermos de novo/Não imprimimos nada do que vivemos nos nossos filhos/Deste modo perderemos a nossa essência/E a doença tomará conta de nós da cabeça aos pés/E a nossa descendência afastar-se-á de nós/Cada vez mais, para todo o sempre.” 1999 já encontrou o seu disco do ano. Chama-se “Spears into Hooks” e tem na contracapa um pardal crucificado.