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Phil Collins – “O Senhor Milhões” (concerto | antevisão | 7 de Maio Estádio de Alvalade)

pop rock >> quarta-feira >> 04.05.1994


O SENHOR MILHÕES

PHIL COLLINS
7 de Maio
Estádio de Alvalade


Portugal vai ter a oportunidade histórica de assistir a um concerto a solo daquele que é uma lenda viva da música popular. Ele vem aí. Preparem-se para ele.



Ele é um porreiraço. Ele importa-se. Ele sorri. Ele sofre. Ele tocou bateria nos Genesis. Ele tomou conta dos Genesis. Quando Peter Gabriel saiu. Ele destruiu os Genesis. Ele vende milhões. Ele faz os Genesis venderem milhões. Ele é careca. Ele já foi mais gordo do que é. Ele é saudável. Ele luta pelos direitos dos mais fracos. Ele é ecológico. Ele vende milhões. Ele canta melhor que Peter Gabriel, segundo o próprio Peter Gabriel. Ele é a personagem mais simpática do mundo do espectáculo. Ele vende milhões. Ele gravou um álbum o ano passado chamado “Both Sides” (que vendeu milhões), no qual prova que todas as questões podem ser abordadas de uma dupla perspectiva. Ele é inteligente. Ele vende milhões. Ele começou a tocar aos cinco anos porque o pai lhe ofereceu um tambor. Ele hoje já pouco toca tambor. Ele hoje vende milhões. Ele está atento e não deixa passar nada. Ele acusa o IRA na canção “We wait and we order”, incluída no álbum “Both Sides” que vendeu milhões. Ele sabe. Ele pôr o dedo nas feridas. Ele tem sentido de humor. Ele organizou um concerto sobre ele em que o prémio para o vencedor é estar com ele, acompanhar os passos dele, na actual digressão dele, também intitulada Both Sides. Ele, no vídeo promocional do tal concurso, mostra que ele não se leva a sério e finge ser o criado do vencedor. Ele chega ao ponto de se ajoelhar aos pés do feliz contemplado e apanhar com um copo de vinho na cara. E ele ri, com a cara encharcada. Ele é um herói. Ele recusou-se a cantar com Frank Sinatra no álbum “Duets” porque só o faria na condição de o outro se encontrar pessoalmente com ele. Ele não é um Sinatra qualquer. Ele vende milhões. Ele é director da Philip Collins Ltd. Ele é um dos directores da Fisher Lane Farm Ltd. Ele é director da Ashtray Music Ltd. Ele é director da Effectsound Ltd. Ele é director da Gelring Ltd. Ele é director da Genesis Music Ltd. Ele é director da Isle of Mull Salmon Farm Ltd. Ele é director da Pennyghael Estates Ltd. Ele é director da TGP 155 Ltd. Ele é director da TGP 156 Ltd. Ele, caso subsistam dúvidas, é músico. Ele vem tocar a Portugal a solo, depois de o ter feito com os Genesis em 1992. Os bilhetes para o concerto dele custam entre 4500 e 6000 escudos (mais 50 a um preço dez vezes superior, os quais darão estatuto de VIP a quem os adquirir). A receita, deste como dos outros concertos, reverte, por desejo expresso dele, a favor dos desalojados dos países por onde passa a digressão. Ele é, por assim dizer, um deus. Ele vale milhões. Ele vem cantar coisas “intimistas” porque, no fundo, ele é um romântico. Ele é Phil Collins. O senhor milhões.

Delfins – “Novo Capítulo Na História Dos Delfins” (teatro – banda sonora)

pop rock >> quarta-feira >> 04.05.1994


NOVO CAPÍTULO NA HISTÓRIA DOS DELFINS



“Breve Sumário da História de Deus” é uma peça teatral sobre textos de Gil Vicente com encenação de Carlos Avillez que foi levada à cena pelo Teatro Experimental de Cascais. Nesta peça, participa, como actor, Miguel Ângelo, vocalista dos Delfins, a quem foi entregue a tarefa de compor a banda sonora do “Sumário”. É a música desta banda sonora que os Delfins acabaram de gravar em estúdio, para um trabalho discográfico a editar “a partir do momento em que estejam as misturas terminadas, mais uma semana para pós-produção e o tempo, cerca de um mês, que leva a fabricar os CD” – conforme disse ao PÚBLICO o guitarrista do grupo, Fernando Cunha.
A música de “Breve Sumário” foi composta, ainda segundo Fernando Cunha, em “total liberdade”, em conjunto com a encenação de Carlos Avillez e em paralelo com os ensaios da peça: “Fomos-lhe mostrando, a pouco e pouco, o que tínhamos feito e ele gostou.” Inclusive “o Carlos Avillez mudou muitas coisas, como os próprios desempenhos dos actores, em termos de orientação e pontuação, para servir as canções, melhorando-lhes o aspecto cénico”. Embora frisando que este trabalho não será propriamente o novo disco dos Delfins – “basta ter os temas com as palavras de Gil Vicente para automaticamente nos transportar para outro universo” -, Fernando Cunha reconhece, no entanto, que há nele “muitos elementos” da banda. No fundo, trata-se de “uma certa viagem por alguns estilos diferentes que servem para musicar os poemas”, na qual “alguns temas têm uma vertente mais rock, mais pesada, enquanto outros são mais sensuais”.
Sendo a composição de bandas sonoras por grupos de rock nacionais um fenómeno pouco habitual na música portuguesa, esta gravação constitui uma excepção, que os Delfins sentiram e encararam como um “desafio”, na medida em que tiveram que “se adaptar a letras escritas num português um pouco arcaico, já com algumas centenas de anos”. Mas, devido ao facto “de as métricas estarem bastante bem feitas”, até nem foi tão difícil como os dois compositores, Fernando Cunha e Miguel Ângelo, pensavam.
Fernando Cunha dá um exemplo de como todo este trabalho, que marca a estreia no teatro dos Delfins, se processou: “Fizemos uma versão de uma canção nossa chamada ‘Soltem os prisioneiros’, que, na versão original, composta antes da revolução, estava conotada com a política e os presos políticos – uma canção bastante violenta. Depois, fizemos uma nova versão do mesmo tema, mais de acordo com esta época, mais alegre. O Carlos Avillez estava à espera de uma coisa com muita violência. Quando ouviu aquilo, ficou espantado e, ao mesmo tempo, achou que, de facto, a versão antiga já não fazia sentido nem teria hoje o mesmo efeito que teve há vinte e tal anos. Então, mudou, quase toda a encenação de modo a servir a nova versão.”
Fica em aberto a possibilidade de, no futuro, os Delfins repetirem uma experiência semelhante, uma vez que esta, nas palavras de Fernando Cunha, foi “óptima”.

Dolores Keane e Kathryn Tickell – “Dolores Keane E Kathryn Tickell – 7 de Maio, Coliseu dos Recreios, Lisboa”

pop rock >> quarta-feira >> 04.05.1994


A Dama E A Vagabunda

Dolores Keane (na foto) E Kathryn Tickell
7 de Maio, Coliseu dos Recreios, Lisboa



Dolores Keane e Kathryn Tickell. Uma voz da Irlanda, uma gaita-de-foles de Northumberland, Inglaterra. Duas gerações da melhor música tradicional britânica em confronto. Veterana e caloira arriscam outros passos, fora da tradição.

Marcado inicialmente para 8 de Maio na Aula Magna, o concerto de Dolores Keane e Kathryn Tickell foi antecipado um dia, 7 de Maio, no Coliseu dos Recreios. A organização deste espectáculo, integrado na actividades de Lisboa-94, justificou a alteração da data e do local com a necessidade de arranjar um recinto com maior lotação. “A Aula Magna era um local com lotação limitada para a importância do espectáculo”, disse um porta-voz da organização. Mas então não viram isso logo de início?
Subordinado ao tema “A mulher na música popular”, de resto o mesmo da última edição do Festival Intercéltico do Porto, o concerto promete muito, imenso mesmo, se não acontecerem os imponderáveis que mancharam anteriores iniciativas no campo da música folk promovidas com o apoio da edilidade lisboeta. Para já, o programa oficial de Lisboa-94 relativo aos meses de Abril e Maio incorre, no âmbito limitado deste concerto, num equívoco grave, para não dizer na desinformação. Assim Kathryn Tickell é apresentada como sendo apenas uma violinista da escola de Shetland (“fiddle”, que é o seu segundo instrumento) sem se fazer qualquer referência à “Northumbran pipes”, modalidade de gaita-de-foles característica da região de Northumberland (a mais “céltica” de Inglaterra, nas palavras da artista), situada no Norte do país, na qual Tickell se notabilizou como solista. Kathryn Tickell vem a Portugal acompanhada da sua nova banda, da qual fazem parte a acordeonista Karen Tweed, o baixista Geoff Lincoln e o guitarrista Ian Carr (não, não é o trompetista dos Nucleus com o mesmo nome…). Bastante jovem (25 anos) e bonita, vagabunda na estética e nos gostos – Prince, XTC, Talking Heads, Ornette Coleman, Ian Dury, Sharon Shannon, já para não falar num tema do seu reportório que utiliza um “riff” de baixo dos Hot Chocolate -, Kathryn Tickell possui o carisma e o talento que a poderão levar ao estrelato. Para já tem sabido rodear-se de boas companhias, tendo colaborado com Sting no álbum “Soul Cages” e, na área da folk, com os doutores Chieftains, em “The Bells of Dublin”. A propósito deste álbum merece a pena vê-la, num dos momentos de maior magia do vídeo de longa duração feito sobre o disco, a manter um diálogo descomplexado com o grande-mestre das “Uillean pipes” Paddy Moloney. O velhinho e o borracho em completa sintonia. De discos em nome próprio de Kathryn Tickell é que estamos mal servidos. Nem 2Common Ground” nem o recente “Signs” chegaram até agora a Portugal. Talvez na altura do concerto…
Dolores Keane, ao contrário da mocinha da gaita, é uma veterana. Uma grande dama, como se costuma dizer, do canto tradicional da Irlanda. Nascida no seio de uma família de músicos (a mãe é outra senhora cantora, como se viu, a ela e à filha, no documentário “Bringing It All Back Home”, e o irmão mais novo, coitado, mais modesto, acabou de lançar um álbum apenas engraçado, “All Heart No Roses”), Dolores cantou com os Reel Union, datando de 1978, com esta formação, o seu primeiro e esplendoroso álbum a solo, intitulado “There Was A Maid”. Fez parte de uma das bandas emblemáticas do “British folk revival” dos anos 70, os De Danann, com os quais gravou em 1975 o álbum de estreia “De Danann”, regressando dez anos mais tarde, em “Anthem”, de 1985, e “Ballroom”, de 1987 na companhia de outras duas notáveis cantoras, Mary Black e Maura O’Connell. Os Chieftains acolheram-na no único dos seus álbuns onde está presente uma voz feminina, “Bonaparte’s Retreat” (correspondente ao volume VI da discografia do grupo). Mas foi em parceria com o seu marido e guitarrista John Faulkner que a voz de Dolores encontrou o contexto mais fértil para a explanação de todas as suas potencialidades. Nos álbuns “Farewell to Eirinn”, “Sail Óg Rua” e “Broken Hearted I’ll Wander”, três jóias não só do canto feminino como da música tradicional irlandesa em geral.
Infelizmente, nos últimos anos, Dolores Keane tem dado mostras de se render ao apelo de um certo comercialismo, enveredando por um caminho semeado de cedências e encostos à pop, o que, se por um lado mostra que permanecem intactas, se possível até ainda mais requintadas, todas as suas capacidades vocais, por outro deixa a impressão desagradável de uma voz acomodada a facilidades que pouco ou nada adiantam ao prestígio da cantora.
“Dolores Keane”, “Lion in the Cage” e “Solid Ground” são por isso pára nós os álbuns menos conseguidos. Talvez tenha faltado até agora a Dolores Keane (como também a Maddy Prior…) o que não faltou a June Tabor – uma intuição e apropriação correctas da contemporaneidade capazes de transformar uma grande cantora tradicional numa grande cantora. Sem outros adjectivos.