Cultura >> Sexta-Feira, 24.07.1992
A Companhia Dos Bobos
Phil Collins recuperou em Alvalade a digna profissão de bobo. Fê-lo de forma inteligente e, porque não dizê-lo, perversa. O cantor e baterista dos Genesis divertiu e divertiu-se, mostrando ser um manipulador de massas competente. As massas obedeceram ao mestre, e durante a maior parte do tempo não desviaram os olhos do ecrã. O teatro dos Genesis é uma experiência de laboratório.

Tudo funciona com am minúcia milimétrica de um instrumento de precisão. Os Genesis são hoje um grupo de cientistas que transpõe a experiência de Pavlov para o contexto de um ritual rock. As cerca de 50 mil pessoas presentes na noite de quarta-feira no estádio de Alvalade uniram-se no corpo do cão. Phil Collins vestiu a bata branca, pegou no bisturi e aplicou-lhe os choques eléctricos, segundo a técnica de um “invisible touch” indolor, só ao alcance dos magos negros. O cão reagiu a cada estímulo e salivou com abundância, com a inconsciência satisfeita dos grandes organismos colectivos.
Nada aparece por acaso no espectáculo que os Genesis trouxeram a Portugal. Da apresentação de temas antigos como “The lamb lies down on Broadway” ou “I know what I like (in your wardrobe)” que serviram para mostra que a banda se filia numa tradição, sugerindo uma continuidade em relação à formação original que de facto não existe, até à utilização “científica” das imagens de computador e aos jogos interactivos entre Collins e a multidão (entre o mestre e os discípulos), há a intenção de subjugar, dominar e vencer. Por detrás do bobo esconde-se o esgar de Nietzsche e a vontade de poder.
A simulação prevaleceu sempre sobre o real. Ou, dito de outro modo, passou-se para uma realidade diferente. Em “Jesus he knows me”, as imagens do ecrã gigante instalado sobre o palco mostravam um segundo ecrã no interior do qual se movimentavam os Genesis “reais”, em baixo, reproduzindo os gestos de evangelista louco de Phil Collins, na sua interpelação ao divino e ao dilúvio dos dólares.
Do registo anedótico e da simulação visual passou-se à prática. Momento mágico, na verdadeira acepção do termo, aconteceu quando o vocalista provocou um “very special moment”, pedindo a união telepática da multidão com o “outro mundo”. “I can feel something happening”, gritava e gesticulava Phil Collins, num transe, enquanto ia dando as instruções: “Wave your arms in the air” e a multidão levantou e agitou os braços em êxtase. Agora gritem em conjunto: “uuh uuh uuh”. E a multidão gritou em conjunto “uuh uuh uuh”. Melhor que isto só Frank Zappa quando, num espectáculo, conseguiu pôr milhares de alemães a fazer a saudação nazi.
Phil Collins teve toda a gente na mão. A cada “obrigado” pronunciado em português os milhares de cabeças responderam em uníssono com um urro ensurdecedor. E muitos foram os comentários feitos por ele nesta língua (um “more portuguese – you lucky people” solto com cinismo foi muito aplaudido, com o recurso a uma cábula que o ajudava na montagem dos “gags”. O gajo é mesmo porreiro, mesmo se por momentos tivesse deixado cair a máscara e, em voz ríspida, ameaçasse ir-se embora caso as pessoas não deixassem de atirar fogo de artifício para o palco.
O Princípio Do Dominó
Mas foi durante a interpretação de “Domino” que se tornou clara a estratégia subjacente à feitura do espectáculo. Phil Collins explicou o “princípio do dominó” e o modo como a menor acção de alguém situado num dos extremos do estádio afectava necessariamente todos os outros localizados no extremo oposto e assim por diante, numa acção recíproca entre todos os indivíduos que compunham a multidão. No ecrã gigante passavam imagens coloridas e hipnóticas ao estilo “2001 – Odisseia No Espaço” (de resto, na maior parte do tempo, as pessoas proeferiram olhar para o ecrã, ignorando o que se passava em palco) e, a seguir, três peças de dominó, a preto e brnaco, piscando e alternando ritmadamente o positivo com o negativo – o trivial nos exercícios de hipnose. A cada uma das peças de dominó sobrepôs-se então a imagem dos três músicos, tombando na direcção da assistência de modo a não ofercer dúvidas sobre quem originava a reacção de queda em cadeia.
Logo a seguir, um batuque poderoso sustentado pelo diálogo entre as baterias de Phil Collins e Chester Thompson contribuiu para aumentar o transe. “WE can’t dance” mostrou Phil Collins completamente à vontade no papel de bobo, percorrendo o palco com passos ridículos dignos de um John Cleese, enquanto, por cima, o ecrã mostrava imagens do respectivo teledisco. Registaram-se durante este tema as imagens mais “hard”, com o vocalista a meter a mão por dentro das calças e agitar as partes pudendas. Os numerosos pais que levaram a Alvalade uma catrefa de filhos menores é que não terão apreciado especialmente esta parte do espectáculo.
Os três encores, “Tonight, tonight, tonight”, “Invisible touch” e “Turn it on again”, serviram para a explosão final dos “vari-lites”, numa curiosa evocação psicadélica, e para acalmar uma multidão finalmente saciada.
Provocação, humor e manipulação foram, em suma, as palavras de ordem desta segunda passagem dos Genesis por Portugal que, pelo menos, não terá deixado ninguém indiferente. Se bem que hoje o teatro seja outro, bem diferente da poesia encenada pelo dissidente Peter Gabriel. A antiga metáfora e jogo de ilusões à escala humana que em 1975 serviram de suporte ao monumental “The Lamb Lies Down On Broadway”, foram substituídos pela técnica e pela psicologia de massas. A alucinação, essa, permanece.