Roger Waters | Pink Floyd – “Outra Vez O Muro, Podre De Maduro” (artigo de opinião)

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 12 SETEMBRO 1990 >> Videodiscos >> Na Capa


OUTRA VEZ O MURO, PODRE DE MADURO

O muro nunca mais acaba de cair. Agora é a vez da feira de Berlim, com Roger Waters vendendo os seus bonecos em saldo de fim-de-estação. Vai um tijolo e um porquinho?



Woodstock, Wight, Reading, Knebworth, Glastonbury, Veneza, Cannes, Figueira da Foz, Fantasporto, Bienais de Berlim, Nova-Iorque, Odivelas, Agro-Pecuário de Santarém, RTP da Canção – diferentes acontecimentos sustentando a designação comum de “festival”. De música, cinema, pintura, vacas e couves ou, simplesmente, lixo. Uns são culturais, outras nem tanto. Não querendo entrar aqui em polémicas se “vacas e couves” são ou não cultura, que tal a “cultura da batata”? A questão não é pacífica. Muito menos as suas implicações, artísticas ou alimentares. As opiniões dividem-se, a confusão impera. A noção de “lixo” é ainda mais ambígua. Bem coberto com camadas de verniz, judiciosamente aplicadas em delicadas operações cosméticas, e bem condimentado com sábia dose de “popstars”, passa com frequência por ser cultura artística.

Produtos de Festival

O “festival” apresenta algumas características que o distinguem de qualquer outro tipo de atividade. Trata-se sempre de uma “mostra” de qualquer coisa, uma coleção de “produtos”. (Um filme, uma canção, um quadro, um pepino, para além do valor simbólico como “obras de arte” – e, se dúvidas há quanto ao pepino, recorde-se o quadro de Arcimboldo –, são também produtos, que se mostram, compram e vendem, objetos de comércio.) Neles, apresenta-se “trabalho feito”, em certames de maior ou menor projeção e importância, consoante a qualidade das mercadorias, a aplicação do verniz, ou as estratégias de “marketing”.
Vem esta prosa a propósito da recente edição do duplo álbum com a gravação ao vivo do espetáculo “The Wall”, que os Pink Floyd deram, no outro dia, em Berlim. Foi um festival ou não foi? E, em caso afirmativo, que importância teve? Admitindo que os Floyd são cultura, o que é que se mostrou e se viu nessa noite de muitas luzes, tijolos e porcos insufláveis? Consinta-se na importância sociológica e mediática do acontecimento, na data e local específicos em que se realizou: milhares de pessoas reunidas em frente do muro (ou do recetor de televisão), celebrando não se sabe ainda bem o quê, para além do ato simbólico da “queda”.

Prendinhas

Mas, se o espetáculo de Berlim se justificava, o disco, editado “a posteriori”, parece funcionar apenas como uma espécie de “souvenir” (para aqueles que estiveram presentes na futura capital da Alemanha unificada) ou substituto (para os outros) do evento real, do mesmo modo que as “T-shirts” ou as embalagens com um tijolo, pretensamente arrancados do “muro”, vendidas aos turistas. Vestuário, discos e tijolos, transformados em ícones de um acontecimento que, para além do significado intrínseco, se deslocou para o domínio, sempre passível de rentabilização, das imagens e da pluralidade e dispersão dos sentidos.
Pode, por exemplo, à laia de passatempo, comparar-se faixa a faixa, o original de Roger Waters e os Pink Floyd, de 1979, com as novas interpretações dos mesmos temas, levadas a cabo pelos numerosos convidados chamados a participar na encenação pública da paranoia do autor. E, nesta comparação, não restam dúvidas de que Bryan Adams, The Band, Tim Curry, Thomas Dolby, Marianne Faithfull, Albert Finney, Cyndi Lauper, Ute Lemper, Joni Mitchell, Van Morrison, Sinead O’Connor, Scorpions, a orquestra, as bandas e os coros envolvidos (já não falando do próprio Waters, com menos voz e quase nenhuma energia, e restantes Floyd), por muito que se empenhassem, não se revelaram à altura de fazer esquecer a unidade e força do primeiro disco.

Boas Intenções

Claro que se pode ver a coisa de outra maneira: atendendo à sobreposição das temáticas abrangidas pelo conceito “queda do muro”, a obra de Roger Waters acabou por ganhar, onze anos depois, uma carga significante e uma premência que, na altura, refletia “apenas” as vivências pessoais do compositor. Assim, “The Wall – Live in Berlin” seria uma espécie de confirmação, reatualização do individual, projetado num imaginário coletivo, contemporâneo e politizado.
Sabe-se, porém, que as ideias e intenções não valem (e sobretudo não vendem…) por si sós. A pureza e sinceridade que pudessem existir na recuperação de uma obra que sintomaticamente foi a derradeira dos Pink Floyd, como nome relevante da pop atual, perderam-se no espetáculo de circo e no aparato cénico de que se revestiu e em que se perdeu o espetáculo de Berlim. Mas foram os bonecos, os nomes dos convidados, as dimensões do muro a fingir, os helicópteros e o fogo-de-artifício que levaram todos aqueles milhares até às portas de Bradenburgo. Juntava-se o útil ao agradável: uma boa causa (recolha de fundos para o “Memorial Fund for Disaster Relief”) e a relevância cultural do acontecimento aliavam-se a uma gigantesca operação promocional de que agora se começam a recolher os dividendos.

O Muro em Série

Não nos admiremos se a seguir aparecer novo disco, “The Wall – The Final Rendition” ou “The Complete Wall”, por exemplo, incluindo as prestações dos grupos que foram entretendo a multidão ao longo da tarde de 21 de julho passado. Ou então outro, contendo toda a informação técnica relativa às dimensões do palco, feitura dos tijolos e potência das luzes. E porque não gravar Leonard Cheshire em dueto com Waters, sobre um fundo de ruídos de guerra? Ou a versão instrumental de “The Wall”, ou “The Wall in rap”, talvez “Acid House Wall”… Tanto ainda por fazer, senhores editores!…
“The Wall – Live in Berlin” resume-se deste modo a uma feira de bonecos de borracha ou de carne e osso, personificados nas figuras disformes encarnadas por Ute Lemper ou Thomas Dolby, em que a música se reduz a uma réplica quase fiel do disco de estúdio, aumentada pelo ruído da multidão. Como se o tom épico pretendido residisse na acumulação de adereços e no aumento desmesurado das escalas. Seja como for, o “objeto” chegou, para se acomodar ao lado do restante entulho que enche as prateleiras das lojas. Por exemplo, entre uma Torre Eiffel cinzeiro e um galo de Barcelos.

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