PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 18 JULHO 1990 >> Videodiscos >> Na Capa
ENTRE DOIS MUROS
Passada uma década sobre a edificação de “The Wall”, Roger Water, dissidente dos Pink Floyd, regressa nos papéis de arquiteto e carpinteiro. O muro volta a ser erguido. Em Berlim, claro, sobre os escombros do outro e com honras de transmissão televisiva em todo o mundo.
Os muros separam e protegem. Escondem e dividem. Existem duas espécies distintas: ou de cimento ou qualquer outro material sólido e aqueles mais subtis, invisíveis, construídos metodicamente só do lado de dentro. Os primeiros podem ser destruídos, deitados abaixo com maior ou menor dificuldade. Os segundos utilizam materiais indestrutíveis e flexíveis que resistem às pressões exteriores e às pancadas. Moldam-se a elas. Adaptam-se. Os seus construtores são fabulosos arquitetos, peritos na minúcia com que delineiam mirabolantes fantasias. Fantasmas criados com todo o cuidado, mantidos vivos e atuantes graças a um constante apelo ao medo, memória e imagens de monstros infantis.
Ascensão e Queda
Em finais de 1979, Roger Waters, músico e letrista dos Pink Floyd, banda emblemática do psicadelismo, constrói um muro descomunal gravado para a posteridade num disco chamado simplesmente “The Wall”. “O Muro” pertence ao grupo das construções mentais inabaláveis e impenetráveis. Decorridos dez anos a História confirma a regra atrás enunciada. Uma das mais sólidas paredes jamais erguidas por mãos humanas revelar-se-ia, finalmente, apenas um amontoado de tijolos. A 9 de novembro de 1989, cai o muro de Berlim, sinónimo de terror e divisão, vergado às rajadas do vento dos novos tempos.
No próximo dia 21 de julho, o muro volta a ser erguido. Desta vez como simulação e símbolo. No próprio local onde se abriu passagem entre as duas metades de um todo nacional, Roger Waters constrói de novo a sua monstruosa fantasia, sublimada em espetáculo gigantesco. O fingimento substitui o horror, o “rock”, orgia mediática, multiplicando as referências e paradoxalmente funcionando como veículo normalizador de uma realidade complexa, unificada numa estratégia de massificação simplificadora. Exorcismo simbólico e coletivo sintetizado num único conceito – o muro.
Catástrofes
A multidão que se concentrará nessa ocasião na Praça Potsdam, em frente à Porta de Brandenburgo, em plena “terra de ninguém” situada entre as duas antigas fronteiras, participará inconscientemente num acontecimento único, mas não ao nível do que será universalmente alardeado e difundido. Oficialmente, o concerto organizado por Waters e Leonard Cheshire, veterano aviador na Segunda Grande Guerra, tem como objetivo angariar fundos para uma bolsa permanente de auxílio às vítimas de catástrofes e acidentes, o Memorial Fund for Disaster Relief, funcionando por acréscimo como evocação e homenagem às vítimas dos dois conflitos mundiais e das não menos mortíferas sequelas da Coreia ou do Vietname. Recorde-se que o pai do antigo baixista e vocalista dos Floyd, também aviador, morreu num acidente da Guerra de 1914-18 e que a sua ausência é precisamente um dos fantasmas que assombram “The Wall”, o disco, abrindo caminho para a emergência do oposto matriarcal, personificado na mãe zeladora e castradora.
O Eterno Retorno
Depois de amanhã, num superespetáculo que, para além de Waters, contará com Joni Mitchell, The Band, Marianne Faithfull, Cindy Lauper, Sinead O’Connor, a Orquestra e Coro do Exército Vermelho e bandas militares, milhares de pessoas serão de novo emparedadas e embaladas nos braços quentes e protetores dos seus próprios fantasmas, na tal “no man’s land”, estrato indefinido e uterino, terra de novo fértil e semeada onde voltarão a crescer os frutos envenenados de renovados e pujantes nacionalismos. A mãe-pátria recupera a sua vocação telúrica, capaz de gerar filhos solares ou monstros disformes (como aqueles que flutuarão ameaçadores sobre a multidão durante o concerto), consoante for fecundada pelo macho do poder, em amor ou em paixão. A História nunca se repete? Ou vivemos todos adormecidos no seio de novos espectros totalitários? Não é a própria desmesura do espetáculo anunciado, em que cada espectador se quedará subjugado por um excesso de imagens e sons à escala não humana (como as figuras e o estádio monstruoso no interior da capa de “The Wall”), reduzido à condição de simples número manipulado como um fantoche, manifestação evidente de subtil totalitarismo? O indivíduo perdido na multidão e no gigantismo massificador obedece cegamente aos estímulos sonoros e visuais. Moderno ritual de obediência a ídolos que em vez do facho imperial empunham guitarras elétricas. E canções do “top” substituem hinos guerreiros. Há sempre um “Führer” disposto a gritar “slogans”. O “rock” está à inteira disposição de candidatos.
O que se pretende da celebração e festa encobre afinal mais sinistras formas. As boas intenções cumprem-se no prolongamento contemporâneo de mal enterrados horrores. Evocam-se antigos fantasmas para os exorcizar ou para os venerar? Convocam-se os mortos para celebrar a vida, esquecendo que morte e vida formam a dupla face de um mesmo rosto. O super-homem nietzschiano, como a criança, é inocente e despreza ambas com soberana alegria. Quem preside afinal à reunião, Apolo ou Dyonisius? O sol ou o solo? Berlim volta a ser centro do mundo. Destruído o muro que dividia alguns e protegia outros, o espetáculo “The Wall” volta a suscitar eternas dúvidas e recônditos receios. O novo fantasma chama-se Europa.