Martin Rev, teclista dos Suicide, editou em 1980 o seu primeiro álbum a solo, intitulado simplesmente “Martin Rev”, numa edição cremos que exclusiva para o mercado norte-americano. “Marvel” é, no fundo, a reedição desse disco, ao qual foram acrescentados dois temas, “Cool train” e “Marvel” (o mais extenso, com os seus 12m50, a justificarem, talvez, a sua escolha para título) e uma nova capa de fazer fugir, embora a gravura original esteja reproduzida do outro lado. “Martin Rev” soa como se imagina que deve soar: os Suicide sem a voz de Alan Vega. Sons nevróticos e repetitivos onde Rev põe à prova os nervos dos ouvintes, fazendo fritar os sintetizadores e os neurónios em ragas industriais com a mesma acutilância e poder de dilaceração da broca de um dentista. Mas “Martin Rev” possui um fascínio muito especial, no modo como os oito temas que compõem a edição original conseguem transformar a monotonia rítmica e a neurose do metal e da electricidade em peças com um estranho poder hipnótico. Ao contrário, porém, da música industrial, como ficou tipificada na época, segundo a fórmula caos electrónico mais ruídos de fábrica mais cirurgia de amputação de tudo o que pudesse ser agradável ao ouvido, “Martin Rev” ostenta uma disciplina férrea, um sentido harmónico e uma noção de sentido único que fazem deste trabalho a banda sonora ideal para uma viagem rodoviária. Não da mesma maneira que “Autobahn” dos Kraftwerk, não sobre o cimento da auto-estrada, mas antes como uma “trip” através dos postes de alta tensão, a sobrevoar as corridas contra a morte dos personagens de “Crash”.
Alan Vega está tão zangado como quando lançou as suas invectivas em Suicide, de 1977. O novo disco do grupo, American Supreme, é mais comercial. Mas a violência continua a palpitar.
Suicide
American Supreme
Blast First, distri. Zona Música
7/10
Suicide. Suicídio. Alan Vega e Martin Rev, a dupla que em 1977 cometeu o crime no álbum de estreia, “Suicide”, com a palavra escrita a sangue na capa, anunciara já a profecia, que o atentado de 11 de Setembro confirmou: “Trata-se do suicídio mais lento da história da humanidade.”
Estão de volta com um novo álbum, “American Supreme”, para o provar, enfiando a América, uma vez mais, no matadouro. Mas agora já não nas mandíbulas do horror da serra eléctrica de “The Texas Chainsaw Massacre”, que era como soava esse primeiro disco, que transcrevia para um cenário industrial a orgia de sofrimento dos Velvet Underground. Agora (ironia das ironias), é sensível o chamamento apelativo do hip-hop, como se à pop feita na América nada mais restasse senão dançar.
É, nas palavras de Alan Vega, o álbum mais “comercial”, mas também o mais “avant-garde” dos Suicide. Sente-se uma incomodidade. Não tanto como se o presente estivesse a trair o passado, mas porque o mundo, afinal, se transformou numa gigantesca feira de “freaks”, onde cada um paga bilhete para participar.
Sob o ondular ao vento das “Stars and Stripes”, apagadas nas cinzas de uma foto a preto e branco, ao melhor estilo do efeito “noite americana” usado no cinema, a serpente rasteja ainda. É preciso procurá-la. Ou fugir dela. Os Suicide desistiram ou os Suicide mudaram de estratégia, eis uma das questões levantadas por um álbum marcado pela ambiguidade, onde a decadência da sociedade americana e da civilização ocidental e a ilusão da pop se entrelaçam, e são citados Debord (“a celebridade é a antítese da própria vida”), Artaud (“Porquê mentir, dar uma aparência de ficção àquilo que é o rugido da vida?”) e Donny Osmond (“Os adolescentes odeiam-nos. Os mais velhos adoram-nos”). Um último conselho é dado por uma das canções de “American Supreme”: “Abram-se e sangrem.”
Em 1977, os espectáculos do grupo acabavam invariavelmente em sessões de pancadaria, com o público a agredir os músicos à cadeirada e estes a responderem na mesma moeda, queimando-os com pontas de cigarros acesos. A violência, como derradeira manifestação de amor, diziam então Vega e Rev, numa provocação cujo significado se torna hoje, mais do que nunca, compreensível. Em 2002, as coisas não mudaram assim tanto. Com uma diferença: as pessoas estão inertes. Suicídio. Os Suicide estão vivos, podemos garanti-lo, até porque falámos com um deles, Alan Vega.
FM – Comparando com o som e a violência dos primeiros álbuns, “Suicide” e “Alan Vega-Martin Rev-Suicide”, este “American Supreme” soa bastante mais suave, não acha?
Alan Vega – Não estou de acordo. “Way of Blue” tinha coisas parecidas. O que aconteceu foi uma evolução natural para sonoridades mais pop. Nunca se pode repetir um primeiro álbum. Não estaria certo. E deixámos de recorrer a outros produtores, como Ric Ocasek. “American Supreme” é o nosso álbum mais comercial, mas também o mais “avant-garde”. Iremos, uma vez mais, influenciar as próximas gerações.
FM – No livrete do disco, usaram uma citação de Antonin Artaud, criador do teatro da crueldade…
Alan Vega – As coisas mudaram, tal como eu disse, os tempos tornaram-se tão violentos… e eu mudei, tornei-me pai, há quatro anos… Não estou a falar de violência pessoal, mas de violência mundial.
FM – É um álbum conceptual? Só a capa já é um “statement”.
Alan Vega – Sim, concordo. Não sei se é um álbum conceptual. Martin e eu nunca nos sentamos a dizer: “vamos lá conceber esta coisa…” O álbum é esquisito porque foi começado antes de 11 de Setembro. Aquilo aconteceu a dez minutos a pé do local onde vivo, estava em casa no dia em que aconteceu. Começámos a compor antes disso, mas sentia alguma dificuldade em cantar as letras e a música soava-me estranha… Foi então que aconteceu aquilo. Alterei as letras, o Martin também acrescentou algumas faixas. Fizemo-lo apenas. Como uma banda de blues. Saiu dos nossos corações. Mas sim, ao olhar para os títulos e para a capa, é espantoso como faz sentido, parece que nomeio todas estas merdas. Agora fala-se em bombardear o Iraque! Na verdade, nós já andávamos a dizer isto há 30 anos. “Suicide” não era sobre o nosso suicídio, mas sobre o suicídio do mundo. Passados 30 anos podemos dizer: “Vêem, não estávamos a pensar em suicidar-nos! Estávamos a falar do suicídio do mundo. Quer dizer, do Ocidente – o suicídio mais longo de todos os tempos.”
FM – = 11 de Setembro uniu, de facto, os americanos?
Alan Vega – Nas primeiras semanas toda a gente andava com a bandeira americana. Toda uma treta patriótica. Mas morreram quatro mil pessoas. E se se pensar em todos os familiares, são 25, 30 mil pessoas envolvidas, é triste. Quanto aos edifícios… [risos], sempre os odiei…
Enfim, o que importa é ver o que irá acontecer com o Iraque…
FM – Referiu que este era o álbum mais comercial do grupo, mas é também aquele que faz a denúncia do sucesso e das suas consequências…
Alan Vega – Não sei. Nunca tentámos ser comerciais. Fazemos o que temos a fazer, se se tornar comercial, óptimo, senão… O que me preocupa é que muitas bandas copiam os Suicide e ganham uma quantidade de dinheiro à conta disso. Isso chateia-me. Tem-se feito tanto alarido à volta deste álbum, é ridículo… Ou talvez tenhamos encontrado, finalmente, o público certo.
FM – Que é…?
Alan Vega – Parece que soamos à própria América. Tocámos recentemente no Texas e adoraram-nos. Duas horas e meia, quando normalmente tocamos uma… Pediram “encores”, temas de “Suicide”… Miúdos novos, “cowboys”, putos mexicanos… Se calhar nem tinham nascido quando os Suicide apareceram.
FM – Continua tão zangado como estava em 1977?
Alan Vega – Sim, acho que ainda devo estar [risos]. Disseram-me isso no outro dia. Ouço este álbum e penso: de onde é que vêm estas letras cheias de fúria? Fui eu! Em geral, esqueço-me de tudo depois de escrever. Na semana passada, demos um concerto na rádio. Fui ouvir o álbum outra vez, tinha perdido as letras e só pensava: mas o que é isto?!
FM – Se, como afirmam através de uma citação, “a celebridade é a antítese da própria vida”, que crédito dar a personalidades como Bono, por exemplo?
Alan Vega – Gostava dos U2 no início. Eram óptimos. Estavam zangados. Agora são apenas uns tipos da pop. Já não sinto nada vindo deles. Podem falar de pessoas a morrer à fome que já não acredito neles. Alguém ainda acredita? Sei qual é o poder do sucesso. Experimentei disso, no início é óptimo: dinheiro, miúdas, bons hotéis… Seduz, mas depois começamos a esquecer-nos de quem somos.
FM – Quer dizer que os Suicide desistiram ostensivamente do sucesso?
Alan Vega – Começa por ser um estilo de vida e, de repente, ficamos possuídos, rodeados por pessoas em quem não confiamos. Sem tempo para estar com os amigos. Agora, reencontrei-me. Não tenciono regressar lá nunca. Já sei como é. Não quero. Mas gostava de ter o dinheiro, claro. Vou tocar à Europa, e sinto-me realmente grande (risos9. Mas volto a Nova Iorque, e é como uma lobotomia, lá ninguém liga peva a ninguém. Voltamos logo ao lugar. O meu filho está a marimbar-se se sou estrela ou não. Levo uma vida normal. O que me preocupa é o mundo em que ele vive, em que também vivo. Quero ter uma vida livre. É por isso que detesto os fundamentalistas: querem regressar ao séc. XIII. Não quero viver no séc. XIII. O que me preocupa nesta história do Iraque é a possibilidade de responderem com gás venenoso, bombas atómicas, águas contaminadas… A América tornou-se o país mais perigoso do mundo.
FM – “American Supreme” incorpora ritmos de hip-hop…
Alan Vega – Sim, o Martin andou a ouvir muito material da Tamla Motown, e Thelonius Monk. É uma das razões por que o álbum se chama “American Supreme”, é sobre os grandes músicos americanos.
FM – Tem um coração rock ‘n’ roll?
Alan Vega – É provável. Cresci a ouvir e a gostar de música dos anos 60, Elvis Presley, Roy Orbinson… Não conseguia ir à escola se tinha em casa um disco de Presley para ouvir. E Roy Orbinson foi a maior voz de todos os tempos, canta como um anjo, um anjo de Deus.
FM – Foram pioneiros, mas o que sente neste novo disco é que parecem ter sido influenciados pelo que veio depois…
Alan Vega – Vamos ficando mais velhos e ouvimos muitas coisas, todos os géneros de música. Ouço tudo, só pelo facto de viver em Nova Iorque. Estão lá todas as nações, todas as línguas, todas as músicas, basta atravessar a rua… Tenho ouvido muito RAI, enquanto o Martin se dedica mais ao rap e hip-hop.
FM – Conhece os Silver Apples? Há quem afirme que eles foram uma espécie de proto-Suicide.
Alan Vega – Conheci a sua música no final dos anos 60, adoro-os. Encontrei-os há cerca de dois anos em Nova Iorque, num festival de electrónica. Adoro-os a todos, Iggy Pop, Jimi Hendrix, Terry Riley (“Rainbow in Curved Air” é um álbum fantástico!), LaMonte Young. Philip Glass não, é um vendido… demasiado limpinho e previsível.
FM – Os Suicide ainda cantam canções de amor, como “Chree”?
Alan Vega – Absolutamente. “Child, it´s a new world” é uma velha canção de amor cantada por Barry White. Mas depois do 11 de Setembro, resolvi modificar a letra e dedicar o tema ao meu filho, a todas as crianças do mundo. Ele adora o nosso disco.
FM – É capaz de lhe dar a ouvir “Frankie teardrop”?
Alan Vega – Algum dia sim, por enquanto é muito novo, mas é provável que venha a gostar. As crianças de hoje são diferentes, nasceram já ligados a um computador. Acho que absorvem a energia deles…
“American Supreme” está disponível no dia 28, pela Zona Música.
Martin Rev e Alan Vega nasceram para cometer suicídio juntos. Mas depois do grupo que fez história no final dos anos 70 – ao derramar uma onda de genuíno sangue sobre a dislexia punk – os Suicide, se extinguir, vítima das suas próprias convulsões, desorientaram-se, procurando cada um para seu lado o martírio perdido. Veja socorreu-se da sua veia rockabilly, cultivando, mais do que a música, uma pose que passava por mimar um Elvis saído do túmulo. Recentemente encontrou o elo perdido, oferecido de bandeja pelos Pan Sonic, com quem gravou o notável “Endless”, legítimo herdeiro da estética Suicide. Martin Rev não teve a mesma sorte. Depois de um álbum de estreia promissor que soava aos Suicide sem voz, enterrou-se num rock electrónico que aos poucos perdeu actualidade e acutilância. Regressa com “Strangeworld” onde tenta fazer sozinho o que antes era feito a meias com Alan Vega, ou seja, à sua inconfundível artilharia de sintetizadores metalo-electro-repetitivos, juntou agora as suas próprias vocalizações decalcadas das do seu antigo companheiro. No mesmo tom declamado, com as palavras penduradas na mesma reverberação, repetindo a onda da “América-à-beira-do-caos-mas-romântica-até-ao-fim”. “Strangeworld é assim uma réplica dos Suicide onde não faltam variações do mítico “Cheree” nem cowboy songs cibernéticas em referências sucessivas ao passado que, curiosamente, acabam por ser atraentes, enquanto exercícios kitsch retrofuturista de onde se destacam temas como “Splinters” (Jean-Michel Jarre numa “bad trip” pelos trópicos) ou “Chalky”, este último na linha de “Cubist Blue”, de Veja, com Alex Chilton e Bem Vaughan. Um caso típico do criminoso que volta ao local do crime.