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Diamanda Galàs – “Plague Mass”

Pop Rock

15 MAIO 1991

MISSA DO CORPO AGONIZANTE

DIAMANDA GALAS
Plague Mass

LP duplo e CD, Mute, distri. Edisom

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A 10 de Dezembro de 1989, Diamanda Galas é presa por conduta desordeira e provocatória, ao interromper uma missa celebrada na Catedral de St. Patrick. Em Agosto, do ano seguinte, o Governo italiano acusou-a de blasfémia contra a Igreja Católica, por ocasião de uma “performance” de “Plague Mass”, celebrada no Palácio dos Medici. À Igreja Católica parece não ter servido de emenda. Passados três meses sobre a acusação, nos dias 12 e 13 de Novembro, a Catedral de St. John, The Divine, em Nova Iorque, a segunda maior do mundo, abria as suas portas à herege, autorizando a profanação. Para o padre Conrado Balweg, a essência da missa celebrada por Galas trata apenas da “libertação do jugo da opressão”. Cabe à instituição religiosa a última palavra.
“Plague Mass” sumaria e potencia a trilogia “Masque of the Red Death”, acrescentando-lhe a força suplementar do som ao vivo e a carga simbólica proporcionada pela sobreposição do “negro” ao “branco” conotado com o local da realização. De facto, não deverá ser vulgar ver no interior de uma catedral uma mulher nua da cintura para cima, envolta em fumos e luzes vermelhas, banhando o corpo desnudo e possesso em sangue ritual. Foi isso mesmo que aconteceu em St. John, nesses dois dias em que ao Diabo foi dada permissão para entrar. O disco permite imaginar o caos. Terrífica como nunca, a voz de Diamanda Galas (com uma extensão de três oitavas e meia que lhe permite ir do soprano ao tenor), abandona-se à histeria, na sucessão de gritos impossivelmente agudos de “There are no more tickets to the funeral”, que ocupa a totalidade do lado A do primeiro disco. Espectáculo da morte. Acusação enfurecida contra todos os que deixam morrer milhares de seres humanos, por vergonha de olhar, e que na morte e sofrimento alheio encontram motivos justificativos de uma moral apodrecida. Só nos Estados Unidos, o número de vítimas da sida ascende já a um total equivalente ao dos soldados americanos mortos na II Guerra Mundial. Michael Flanagan, presidente da Documentation of AIDS Issues and Research Foundation compara “Plague Mass” ao “Requiem”, de Benjamin Britten, pelas vítimas daquele conflito. “Foste testemunha?” – a questão, repetida até à exaustão enquanto não se obtiver uma resposta satisfatória. “This is the law of the plague” abre o segundo lado. A voz fundida com a electrónica, sobre as monstruosas percussões de David Linton e Ramon Diaz. Texto do “Leviticus”, a lei antiga, capítulo 15 do Antigo Testamento. “I wake up and I see the face of the devil”, gospel torturado que prolonga ainda mais a agonia. Tempo de “Confissão” – “nessa casa nao há tempo para compaixão, apenas para a confissão/ no teu leito de morte apenas querem saber uma coisa/ se confessas.” Depois, a grande blasfémia – “Give me sodomy or give me death”. Disco dois – “How shall our judgement be carried out upon the wicked?”. Textos das “Revelações” e de Malcolm X. Durante “Consecration”, o corpo e a voz de Galas cobrem-se de sangue. “Este é o meu corpo, este é o meu sangue” – a blasfémia parece não ter limites. O sangue dos PWA (Person with AIDS, “pessoas com sida”) é comparado ao de Cristo. Recuperados de “The Divine Punishment”, as imprecações de “Sono l’antichristo”, lançadas ao Senhor no interior da sua própria casa, e o grito de “Cris d’aveugle”, solto do inferno, por Tristan Corbière. Por fim, “Let my people go” – “o diabo decidiu a minha morte/ e espera até ter a certeza/ de que todas as suas ovelhas negras/ morram antes de ser descoberta a cura”. A audição de “Plague Mass” pode constituir uma experiência, libertadora para uns, traumática para outros. A interface voz/electrónica, humano/máquina permite todas as liberdades ou todas as aberrações, consoante a perspectiva. Electrónica, aqui manipulada por Blaise Dupuy e Michael McGrath, que, na óptica da cantora, tem a grande vantagem de “tornar a besta mais visível”. Ópera do “Fim dos Tempos”, “Plague Mass” solta todos os fantasmas, liberta os ódios mais recônditos, incendeia mesmo os espíritos mais adormecidos. Declaração de guerra sem tréguas aos sentidos e às mentes aprisionadas nas morais instituídas. Canto do corpo agonizante. Impossível a indiferença, diante da chaga aberta, de onde escorre o sangue e o sofrimento.

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Diamanda Galàs – A Flor Do Mal

Pop Rock

 

15 MAIO 1991

 

A FLOR DO MAL

 

Chamam-lhe vampira, bruxa ou coisas piores. Tem uma obsessão sombria pela morte e pelas trevas. Basta escutar uma vez a sua voz para se perceber que sim. Diamanda Galas canta e compõe como se de uma vingança se tratasse. Gravou litanias a Satã e uma trilogia sobre a praga do século, a sida. Mistura religião com perversões várias. Finalmente, registou uma missa negra integral, num duplo álbum gravado ao vivo numa catedral católica. Sinais do fim. Diamanda Galas grita o estertor lancinante desse fim.

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“Plague Mass”, duplo ao vivo, representa o desafio total. A guerra global, de todos contra todos e cada um contra si próprio. Culminar de um percurso alucinante e de uma música e atitude desmesuradas, quase sobre-humanas na maneira como almejam superar todos os tabus, estéticas e morais tradicionais, à procura de uma sobre-realidade para além da alegria e da dor, do bem e do mal. Das “Litanies of Satan” à actual missa negra celebrada no seio da própria Igreja católica, é sempre a consagração e celebração do homem “novo”, cuja vontade de poder não carece dos deuses para se exercer. Afinal, mais uma das periódicas tentativas de destruir o sagrado. Mas, para melhor ajuizar sobre as intenções da senhora, nada melhor que contar a sua história. Deixa-se à imaginação o que fica por contar.

 

 

Da vida e da morte

 

Diamanda Galas nasceu americana, mas corre-lhe sangue grego nas veias. Xinogalas, o apelido paterno. Os pais, gregos de facto, pertencem à casta dos Manatis, equivalente grega dos sicilianos. Como estes, a ideia de vingança desempenha um papel primordial no seu imaginário. A dor também. Diamanda, à maneira das carpideiras, contratadas para chorar e lamentar a morte alheia, canta os males da humanidade, as suas doenças, o desespero. “Chorar um ou dois dias é uma coisa. Chorar por contrato, 15 ou 20, é outra completamente diferente – torna-se um ritual extático que transcende a banal piedade dos americanos.”

Diamanda Galas passou os primeiros anos de vida a congeminar vingança. Contra os ricos, os poderosos, os vilões da humanidade. Comunista? Nem tanto. Tem mais a ver com um mau feitio congénito, que ela própria, de resto, reconhece. Escreveu um manifesto em defesa dos Black Leather Beavers, associação de “carácter humanitário”, de vigilantes da rua, decididos a acabar com os violadores de mulheres. “Acabar” mesmo, o que passa pela castração dos órgãos viris dos prevaricadores. “Com os violadores, o problema reside nos ‘tomates’. Removidos estes, está resolvido o problema.” Há um paralelo evidente entre esta atitude e a música da senhora. Mas o ódio e a violência radicam finalmente numa autodescoberta. No reconhecimento da própria morte, inadiável. Diamanda não consegue suportar o peso desta evidência, que considera “insultuosa”. A morte não há-de ficar a rir-se – assegura. “Quando o momento chegar, serei eu a tomar conta da situação. Quando os deuses decidirem levar-me, rir-me-ei na cara deles. Há-de haver uma seringa espetada no meu braço, tão rapidamente que eles nem chegarão a perceber o que se passou.” Diz estas coisas com o ar mais natural do mundo. Só pede a todos os santinhos que a mãe nunca venha a saber. A personalidade da “diva de negro” ficou completa numa ocasião em que viu e ouviu Jimi Hendrix. Antes, queria estudar bioquímica. A partir desse momento crucial pretendeu ser a própria bioquímica. Para ela, homens e mulheres como Hendrix, Antonin Artaud, Maria Callas ou Charlie Parker possuem um poder especial, uma forma de energia sacrificial intensíssima que tudo inflama e consome na sua chama abrasadora. O problema é que as pessoas possuidoras de tal dom geralmente não duram muito. Como forma de prevenção contra eventualidades desagradáveis, Galas não desdenha a hipótese de uma transfusão e regeneração total do sangue, à maneira da famosa condessa Bathory, vampira lésbica que prolongava a vida e a juventude à custa de beber o sangue de raparigas virgens que ela própria seduzia. Como é que Diamanda faz para manter a voz e a energia é lá com ela. De resto, virgens já há poucas. Sangue, ainda vai havendo. Recorde-se, a propósito, que em recentes espectáculos ao vivo apareceu em palco com o corpo completamente encharcado do líquido vital. Paranóia do sangue e da sua contaminação, a sida, a agonia, o lento envenenamento.

 

 

O teatro da crueldade

 

O termo, inventou-o Artaud, surrealista escorraçado por Breton, em nome da ortodoxia. O teatro inseparável da vida, confundidos na voragem e vertigem de uma encenação única. Os espectáculos, melhor dizendo, as “performances” de Diamanda Galas estendem o conceito aos limites da loucura religiosa. Rituais de auto-imolação e violência desmedida. Diamanda Galas, feiticeira do século XX, na consumação de missas negras em louvor de Satã, o “grande acusador”. A raiva. O fogo, simultaneamente devorador e purificador. Sempre que actua ao vivo, pensa inevitavelmente em “deitar fogo à audiência”. Sobre o palco, transfigura-se. As fronteiras sexuais são abolidas. “Todos os grandes ‘performers’” – diz – “têm de ser forçosamente travestis, no sentido de deixarem de ser homens ou mulheres para passarem a animais, répteis ou insectos.” No seu caso, afirma-se mais próxima da condição de insecto. Não surpreende por isso que provoque frequentemente nas audiências um temor supersticioso. As pessoas chamam-lhe “bruxa”, para exorcizar o medo. “É uma reacção sobretudo masculina. Tem que ver com uma certa forma de energia que, se apropriada e irradiada por uma mulher, é considerada errada.” Assim, muitos homens vêem nela como que um sexo com dentes, síndrome da “vagina dentatta”, castradora da virilidade, física mas sobretudo psíquica, do macho dominador. Anos antes dos actuais rituais satânicos, Diamanda Galas não sabia como destilar toda a raiva que sentia e “não sabia explicar”. Começou por actuar nas ruas. Mais tarde, alguns “radicais” do Living Theatre, mais assustados com as suas proezas e faculdades catalisadoras, aconselharam-na a cantar em institutos de doentes mentais, insinuando mesmo a possibilidade dela própria ficar internada por uns tempos. Diamanda aceitou o conselho, contribuindo assim para o aumento da população esquizofrénica americana. Mas avisou logo que a sua música não podia considerar-se propriamente terapêutica. Tinha mais que ver com as “schrei-performance”, características do teatro expressionista alemão, que pretendiam alargar as fronteiras da personalidade humana. Diamanda queria ir mais longe – estender esses limites ao ponto de transformar a personalidade “numa espécie de entidade-síntese entre a ‘besta’ e a máquina”. Sobre o assunto tem uma teoria. Acredita que todos os problemas surgiram quando as pessoas “começaram a fazer separações arbitrárias entre os hemisférios esquerdo e direito do cérebro”. A solução? “Ser capaz de articular as pequenas ‘nuances’ malévolas da personalidade, mostrar a natureza humana para além do bem e do mal, de que falavam Nietzsche, Sade, Poe e Baudelaire, uma espécie de protoplasma contraditório, eminentemente esquizofrénico.”

 

 

A Praga

 

A praga é a sida. Diamanda Galas invectiva-a nos álbuns: “The Divine Punishment”, “Saint of the Pit” (ambos de 1986) e “You Must be Certain of the Devil” (1988), as três partes da trilogia “Masque of the Red Death”, título inspirado num conto sobre a peste de Edgar Allan Poe. Várias pessoas das suas relações morreram da doença, incluindo o irmão e a sua melhor amiga. Não espanta pois a revolta e a obsessão. Espantoso é o modo como Diamanda Galas consegue alargar o significado e as implicações morais do problema, conferindo-lhe uma dimensão global e apocalíptica. Recorrendo a textos de poetas simbolistas como Charles Baudelaire, Gérard de Nerval e Tristan Corbière ou a textos bíblicos do Antigo Testamento (aquele em que emerge a figura do Deus castigador), Diamanda Galas procede a um meticuloso trabalho de inserção dos mesmos num diferente e perturbante contexto. Invertem-se os valores fundamentais do cristianismo. Satanás passa a ser o justiceiro, o “acusador” (segundo a terminologia hebraica), aquele que aponta o dedo ao “inimigo”, o poder instituído, a indiferença, o medo, o ostracismo. O sofrimento dos condenados pela sida é comparado à agonia de Jesus crucificado.

A revolta de “The Divine Punishment” é a mesma de Lúcifer, contra a autoridade divina. A música assume contornos litúrgicos, nos cânticos salmódicos, nas lamentações de “Free among the dead” e “Deliver me from my enemies”. O super-homem é o homem condenado, o estóico absoluto, mitificado no anticristo que a própria Galas encarna em “Sono l’antichristo” – a “provação”, a “salvação”, a “carne martirizada”, o “sacrifício”, o “louco sagrado”, a “merda de Deus”. “Saint of the Pit” prossegue pelas mesmas vias demenciais. Textos de Nerval e Corbière. “L’ Heautontimouroumenos” (o autotorturador), extraído das “Flores do Mal”, de Baudelaire, insuportável: “Sou o espelho onde se revê a própria fúria/ a faca e a ferida revolvida/ o carrasco e a vítima/ o vampiro das minhas próprias veias/ pertenço à grande legião dos perdidos.” Talvez devido à crescente aceitação das massas, a terceira e derradeira invocação da trilogia é assumidamente mais suave que as anteriores, poética e musicalmente falando. Suprema ironia, há espaço para dançar. Ao ritmo da dor alheia. Convida-se ou empurra-se quem ouve para o papel de inquisidor. Sofrimento e prazer misturam-se na fase terminal da doença e da raça humana tal como a conhecemos. “Gospels” de vésperas de finados. Diamanda canta “Swing low sweet chariot” escondendo as facas e as cicatrizes na penumbra. “The Lord is my shepherd” – o Senhor é o pastor que conduzirá e libertará as almas. Mas que senhor é este que traz consigo as chaves do céu e do inferno? “Maldição!” – gritam os condenados, os proscritos do medo, traídos e aliciados por uma terra prometida que não puderam escolher. O grande grito, a confrontação final haveria de ter lugar no interior do próprio templo, na celebração do sangue contaminado – eucaristia invertida de um mundo sem luz.

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Diamanda Galás: Mulher-Insecto

02.11.2001
Diamanda Galás: Mulher-Insecto

Diamanda Galás está de regresso a Portugal – dias 8 e 10, No Hard Club e na Aula Magna. Traz consigo novas ameaças de perigo. O espectáculo, de genérico “Defixiones, Will and Testament”, fala do sofrimento e do exílio. A voz, um sopro venenoso, é a das almas torturadas. O “blues” da peste.

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Já dizia o outro: “não acredito em nelas, mas que as há, há!”. As bruxas. A imaginação popular pinta-as de negro, com olheiras e verrugas, voando pelo céu montadas em vassouras, a invadir os nossos sonhos nas noites de lua nova. Diamanda Galás não corresponde exactamente ao estereótipo mas a sua música tem o mesmo efeito de um bruxedo.
A cantora de ascendência grega ortodoxa que pela segunda vez nos visita (a primeira aconteceu há cinco anos no CCB, em Lisboa) traz consigo o medo e ador, mas também um grito de alarme, num espectáculo de genérico “Defixiones, Will and Testament”.
O tema é o exílio, do homem exilado de si mesmo. A falta de humanidade e a intolerância das culturas. O sofrimento e a redenção.
Para o ilustrar, Galás socorreu-se de textos literários como “The Dance”, do poeta arménio Siamanto, “The Desert”, do poeta sírio Adónis, “Epistle to the Transients”, do peruano Cesar Valejo, “Ain’t no Grave can Hold me Down”, do americano Stuyvesant, “todesfuge”, do romeno-judeu Paul Celan e escritos do poeta-mártir assírio Dr. Freidoun Bet-Oraham. “Defixiones, Will and Testament” utiliza ainda técnicas musicais tradicionais como a “amanedhes” (estilo de improvisação da Ásia Menor) e a rebetika grega e arménia, forma musical trazida pelos refugiados da Ásia menor na Grécia. Ainda a música dos artistas norte-americanos Ornette Coleman, John Lee Hooker e Blind Lemon Jefferson. O jazz. O “blues”. Sinónimos de libertação.
Diamanda Galás habita em Nova-Iorque, capital do império. Do Bem, para uns. Do Mal, para outros. Ela situa-se no olho do furacão e cultiva a ambiguidade. É a bruxa, a feiticeira que grita a revolução, a heresia e o ultraje. Se traz a cura ou, pelo contrário, propaga a doença, eis o buraco negro onde cada certeza se precipita no vazio.
A bruxa é a manipuladora das forças da lua e do sangue. Dos fluidos da terra e dos seres vivos que a habitam. Ao contrário do mago, cuja vontade e domínio se exercem em primeiro lugar sobre o próprio pensamento, a bruxa age com as ondas do corpo e do sexo. Diamanda Galás personifica a condição feminina através de um dos seus arquétipos mais profundos, imagem invertida da tradicional virgem negra presente em várias religiões e cultos primitivos. Mas mais do que a guardiã dos segredos ela é a espada (e nesse aspecto, agente de uma polaridade masculina…) que rompe o hímen da falsa paz e da indiferença. Nela, a ilusão e a praga disseminam-se da mesma forma que o sexo é abolido. “Todos os grandes performers”, disse há anos Diamanda ao Público, “têm de ser forçosamente travestis, no sentido de deixarem de ser homens ou mulheres para passarem a ser animais, répteis ou insectos”.
É a mesma capacidade de transfiguração da bruxa tradicional, que tomava a forma de uma cobra ou de um morcego. Mas Diamanda Galás não é uma bruxa como as outras e por isso escolheu, diz, ser um insecto. Mulher-insecto. Vespa de mordedura venenosa.

Em Sangue
Se na sua primeira actuação ao vivo, em 1979, no Festival de Avignon, em França, executou “Un Jour Comme Un Autre”, do compositor Vinko Globokar (que Portugal viu integrado na formação de música contemporânea The New Phonic Art), obra baseada na documentação da Amnistia Internacional relativa à prisão e tortura das mulheres turcas, já a sua posterior evolução se direccionou no sentido de uma feminilidade que entra em contravenção e subverte alguns dos pilares do Catolicismo.
Recorde-se, a este propósito, uma das suas míticas e mais provocatórias actuações, a 12 e 13 de Novembro de 1989, em plena Catedral de St. John, The Divine, no coração de Nova Iorque, onde cantou com o tronco nu coberto de sangue. O sangue de doentes com Sida que comparou ao sangue de Cristo, num simulacro de eucaristia, entre blasfémias como “give me sodomy or give me death”.
Catarse ou ritual de magia negra, esta perfomance que ficou registada em disco no duplo álbum ao vivo “Plague Mass” (1990), com dedicatória a todos os doentes seropositivos que “lutam para se manter vivos num ambiente hostil onde se lhes diz constantemente que vão morrer e se lhes oferece uma piedade revoltante e mentiras pacificadoras para os convencer a desistirem de lutar e a prepararem o próprio funeral”, foi a representação/exorcismo do medo ancestral da peste. Através de uma manipulação habilidosa e da transcrição literal de textos bíblicos, a peste com que Deus castigou os homens era, nos tempos modernos, a Sida, que acabara de vitimar o irmão e alguns dos amigos mais chegados. O sangue infectado. O castigo divino. A denúncia, mas também a ritualização dolorosa, num teatro mais do que cruel, do ostracismo a que ainda são votados os doentes da praga do século. O mal, sob as mais diversas formas e disfarces, foi e continua a ser o tópico central.
Nessa ocasião que muitos viram como a violação do templo, Diamanda personificou no limite do sacrilégio, uma doença que é do corpo, mas também do espírito – uma doença civilizacional. Ou, se quisermos buscar alívio da visão do sangue, das chagas e dos uivos que nessa noite fizeram estremecer as colunas da catedral de St. John, era já o exílio de uma humanidade perdida que a cantora apontava – e encarnava – nesse baptismo demoníaco pelo sangue. Do outro lado, a ambiguidade. Galás chegou a ponderar a hipótese de fazer uma regeneração total do seu sangue, através de transfusões, ainda que sem imitar a Condessa de Bathory, vampira lésbica que pretendia prolongar a juventude bebendo o sangue de raparigas virgens que ela própria seduzia e assassinava.

Litania de Satã
Religião. O Antigo Testamento, do Deus castigador. Os Evangelhos. De pernas para o ar ou não, são o ponto de chegada que, inevitavelmente, teriam que encontrar, como encontraram, correspondência em formas musicais como o “blues”, os espirituais e o “gospel”. Neste aspecto, e segundo uma aproximação estética ao universo de um Nick Cave, por exemplo 8e foi esta a Diamanda que Lisboa assistiu no CCB), pode dizer-se que a música e a interpretação vocal da cantora se “suavizaram”, em álbuns como “The Singer” (1992), “The Sporting Life” (1994, com John Paul Jones, ex-Led Zeppelin), “Vena Cava” (1993) ou “Malediction and Prayer” (1998), contrastando com o grito primordial dos seus primeiros trabalhos, em que a literatura romântica mais alucinada (de autores simbolistas como Charles Baudelaire, Gérard de Nerval, Tristan Corbiére ou Edgar Allan Poe), a revolta luciferina e a anarquia se entrelaçavam numa visão de ópio que era também uma visão do inferno. Era a Diamanda Galás onírica, do canto arrepiante, diva de uma ópera inominável (está presentemente a compor uma ópera, intitulada “Nekropolis”) que trazia à superfície os demónios de um quadro de Bosch. A Galás que evitávamos olhar de frente, de “Litanies of Satan”. A portadora da peste (ela própria assim se assumia) da trilogia “Masque of the Red Death” (título de um conto de Poe sobre a peste), subdividida em “The Divine Punishment”, “Saint of the Pit” e “You Must be Certain of the Devil”.
Mas como se formou a personalidade desta bruxa dos tempos modernos que admite ter “um mau feitio congénito” mas que não se coibiu de escrever um manifesto em defesa dos Black Leather Beavers, associação de carácter humanitário de vigilantes de rua vocacionados para o combate aos violadores de mulheres? Acrescente-se que as técnicas utilizadas pelos Black Leather Beavers consistiam basicamente na castração dos violadores.
Diamanda Galás tem Xinogalas como apelido paterno. Os pais, gregos ortodoxos, fazem parte da casta siciliana dos Manatis. Sicília da “vendetta” (“vingança”), que a cantora personifica como ninguém, e das carpideiras. “Chorar um ou dois dias é uma coisa. Chorar, por contrato, 15 ou 20 dias, é outra, completamente diferente, um ritual extático que transcende a banal piedade dos americanos”, disse. Hoje, ainda em cima dos acontecimentos ocorridos em Nova Iorque a 11 de Setembro, tais palavras acabam por desvalorizar-se perante o luto americano que se adivinha prolongado.
Hendrix, Maria Callas e Charlie Parker marcam-na a fogo. Começa a cantar na rua e a conviver com elementos radicais do “Living Theatre”. Mas consegue ser mais radical que todos eles e acaba por ser expulsa, sendo aconselhada a cantar em institutos de doenças mentais. O seu canto, misto de uivo, vómito e sereia, ligava-se à “schrei-perfomance” (um dos seus álbuns, de 1996, tem por título “Schrei 27”) do teatro expressionista alemão que pretendia alargar as fronteiras da personalidade humana, síntese do homem, da Besta e da máquina. Sobre este assunto, tem uma teoria: “Os problemas surgiram quando as pessoas começaram a fazer separações arbitrárias entre os hemisférios esquerdo e direito do cérebro. A solução passa por ser capaz de articulara s pequenas nuances malévolas da personalidade, mostrar a natureza humana para além do bem e do mal, de que falavam Nietzsche, Sade, Poe e Baudelaire, uma espécie de protoplasma contraditório, eminentemente esquizofrénico”.
Satã, “o grande acusador” ou o “adversário”, na terminologia hebraica, torna-se o seu padrinho e nem a morte, que considera “insultuosa”, escapa às suas garras: “Quando o momento chegar, serei eu a tomar conta da situação. Quando os deuses decidirem levar-me, rir-me-ei na cara deles. Há-de haver uma seringa espetada no meu braço”.
1989 e 1990 são os anos de todos os escândalos. A 10 de Dezembro de 1989 é presa por conduta desordeira, ao interromper uma missa na celebrada catedral de St. Patrick. Em Agosto do ano seguinte, o Governo italiano acusa-a de blasfémia contra a Igreja Católica, na sequência de uma apresentação de “Plague Mass” no Palácio dos Medici. Até que a 12 e 13 de Novembro desse ano, o diabo é finalmente convidado oficialmente a entrar em St. John, The Divine, a segunda maior catedral do mundo. A missa negra de sangue que transportava a praga para o interior do templo.
Mas para o padre católico Conrado Balweg tratava-se apenas de uma missa de “libertação do jugo da opressão” celebrada por aquela que, numa das canções de “Saint of the Pit” (“O Santo do Túmulo” ou do “Abismo”), faz suas as palavras do poeta Baudelaire: “Sou o espelho onde se revê a própria fúria/A faca e a ferida revolvida/O carrasco e a vítima/O vampiro das minhas próprias veias/Pertenço à grande legião dos perdidos”.

Diamanda Galás

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