Diamanda Galàs – “Plague Mass”

Pop Rock

15 MAIO 1991

MISSA DO CORPO AGONIZANTE

DIAMANDA GALAS
Plague Mass

LP duplo e CD, Mute, distri. Edisom

dg

A 10 de Dezembro de 1989, Diamanda Galas é presa por conduta desordeira e provocatória, ao interromper uma missa celebrada na Catedral de St. Patrick. Em Agosto, do ano seguinte, o Governo italiano acusou-a de blasfémia contra a Igreja Católica, por ocasião de uma “performance” de “Plague Mass”, celebrada no Palácio dos Medici. À Igreja Católica parece não ter servido de emenda. Passados três meses sobre a acusação, nos dias 12 e 13 de Novembro, a Catedral de St. John, The Divine, em Nova Iorque, a segunda maior do mundo, abria as suas portas à herege, autorizando a profanação. Para o padre Conrado Balweg, a essência da missa celebrada por Galas trata apenas da “libertação do jugo da opressão”. Cabe à instituição religiosa a última palavra.
“Plague Mass” sumaria e potencia a trilogia “Masque of the Red Death”, acrescentando-lhe a força suplementar do som ao vivo e a carga simbólica proporcionada pela sobreposição do “negro” ao “branco” conotado com o local da realização. De facto, não deverá ser vulgar ver no interior de uma catedral uma mulher nua da cintura para cima, envolta em fumos e luzes vermelhas, banhando o corpo desnudo e possesso em sangue ritual. Foi isso mesmo que aconteceu em St. John, nesses dois dias em que ao Diabo foi dada permissão para entrar. O disco permite imaginar o caos. Terrífica como nunca, a voz de Diamanda Galas (com uma extensão de três oitavas e meia que lhe permite ir do soprano ao tenor), abandona-se à histeria, na sucessão de gritos impossivelmente agudos de “There are no more tickets to the funeral”, que ocupa a totalidade do lado A do primeiro disco. Espectáculo da morte. Acusação enfurecida contra todos os que deixam morrer milhares de seres humanos, por vergonha de olhar, e que na morte e sofrimento alheio encontram motivos justificativos de uma moral apodrecida. Só nos Estados Unidos, o número de vítimas da sida ascende já a um total equivalente ao dos soldados americanos mortos na II Guerra Mundial. Michael Flanagan, presidente da Documentation of AIDS Issues and Research Foundation compara “Plague Mass” ao “Requiem”, de Benjamin Britten, pelas vítimas daquele conflito. “Foste testemunha?” – a questão, repetida até à exaustão enquanto não se obtiver uma resposta satisfatória. “This is the law of the plague” abre o segundo lado. A voz fundida com a electrónica, sobre as monstruosas percussões de David Linton e Ramon Diaz. Texto do “Leviticus”, a lei antiga, capítulo 15 do Antigo Testamento. “I wake up and I see the face of the devil”, gospel torturado que prolonga ainda mais a agonia. Tempo de “Confissão” – “nessa casa nao há tempo para compaixão, apenas para a confissão/ no teu leito de morte apenas querem saber uma coisa/ se confessas.” Depois, a grande blasfémia – “Give me sodomy or give me death”. Disco dois – “How shall our judgement be carried out upon the wicked?”. Textos das “Revelações” e de Malcolm X. Durante “Consecration”, o corpo e a voz de Galas cobrem-se de sangue. “Este é o meu corpo, este é o meu sangue” – a blasfémia parece não ter limites. O sangue dos PWA (Person with AIDS, “pessoas com sida”) é comparado ao de Cristo. Recuperados de “The Divine Punishment”, as imprecações de “Sono l’antichristo”, lançadas ao Senhor no interior da sua própria casa, e o grito de “Cris d’aveugle”, solto do inferno, por Tristan Corbière. Por fim, “Let my people go” – “o diabo decidiu a minha morte/ e espera até ter a certeza/ de que todas as suas ovelhas negras/ morram antes de ser descoberta a cura”. A audição de “Plague Mass” pode constituir uma experiência, libertadora para uns, traumática para outros. A interface voz/electrónica, humano/máquina permite todas as liberdades ou todas as aberrações, consoante a perspectiva. Electrónica, aqui manipulada por Blaise Dupuy e Michael McGrath, que, na óptica da cantora, tem a grande vantagem de “tornar a besta mais visível”. Ópera do “Fim dos Tempos”, “Plague Mass” solta todos os fantasmas, liberta os ódios mais recônditos, incendeia mesmo os espíritos mais adormecidos. Declaração de guerra sem tréguas aos sentidos e às mentes aprisionadas nas morais instituídas. Canto do corpo agonizante. Impossível a indiferença, diante da chaga aberta, de onde escorre o sangue e o sofrimento.

aqui



Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.