Carlos Bica & Azul – “Look What They’ve Done To My Song” + Trape-Zape – “Trape-Zape” + Manuel Mota – “Leopardo”

(público >> mil folhas >> portugueses >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 19 Abril 2003

Três discos de música feita em Portugal para os quais o rótulo “jazz” faz pouca diferença. Pós-rock, progressivos ou em improvisação livre, pedem apenas que os ouçam de ouvidos limpos.


Um leopardo azul suspenso no trapézio

CARLOS BICA & AZUL
Look what They’ve Done to My Song
Enja, distri. Dargil
7 | 10

TRAPE-ZAPE
Trape-Zape
Ed. e distri. JIDac
7 | 10

MANUEL MOTA
Leopardo
Rossbin Production
6 | 10



Azul é vermelho-vivo na capa do novo trabalho do trio formado pelo contrabaixista português Carlos Bica, o guitarrista alemão Frank Möbus e o baterista americano Jim Black, prosseguindo deste modo uma colaboração que em “Twist” já dera bons frutos. “Look what They’ve Done to My Song”, título inspirado na canção “What have they’ve done to my song, ma”, de Melanie (cuja versão, aliás, faz parte do alinhamento), é um daqueles disco que dilui as fronteiras entre o jazz e o rock. Ao lado do jazz em papel milimétrico com desenhos em cima de um Bica swingante, um Möbus mais introspetivo e “friselliano” do que mostrou no recente Festival de Portalegre e um Black menos esfuziante, mas não menos imaginativo do que também mostrou em Portalegre, “Look what They’ve Done to My Song” inclui momentos de puro pós-rock, dentro do espírito da primeira fase dos Tortoise, nomeadamente “Password” e “Bela”. O momento mais belo é, porém, uma belíssima versão, em registo de câmara — com colaborações de Katharina Gramss, no violino, e Mike Rutledge, na viola de arco (Mike Rutledge? Um nome destes só pode ser piada, se considerarmos que o compasso de “Heranças” tem muito dos Soft Machine e que o teclista deste grupo se chamava… Mike Ratledge) – do tradicional sefardita “Durme”.
Outro trio, este em estreia discográfica, os Trape-Zape, apresentam o mesmo formato instrumental (menos os convidados) do Azul de Bica, mas o som e a linguagem resultantes divergem radicalmente. Fernando Guiomar, na guitarra acústica, Vasco Sousa, no contrabaixo, e João Luís Lobo, na bateria e percussões, praticam um jazz (?) minimalista, construído sobre um encadeamento de riffs e floreados melódicos e harmónicos, que ora evocam os jogos da League of Gentlemen dirigida por Robert Fripp, ora se deixam fascinar pelo flamenco ou pela bossa-nova, ora ainda cultivam o gosto pelo jazz rock progressivo, como em “R.I.E.P. (reação involuntária de uma excitação periférica)”, “Azimute” e “Nocturno (para um cão)” onde chegam a aproximar-se do espírito dos Genesis, com Fernando Guiomar a envergar o lençol de fantasma de Steve Hackett.
Só com a sua guitarra elétrica, um arsenal de efeitos e uma visão fragmentadora da composição e do espectro sonoro, enquanto universos microscópicos explorados de forma concentracionária, Manuel Mota apresenta em “Leopardo” uma música difícil, que exige níveis de concentração elevados. As nove manchas-miniaturas do leopardo exploram técnicas de execução e pormenores sónicos arrancados ao corpo inteiro da guitarra, sem que daí se vislumbre a mínima concessão ao ritmo e à melodia lineares. A série “Guitar Solos”, de Fred Frith, ou o “instinto metódico” de Derek Bailey podem ser convocados para melhor se compreender e apreciar o universo e as práticas improvisacionais deste músico, para quem a guitarra elétrica é uma ferramenta de investigação e depuração espirituais. Para compartilhar com muito poucos, num quase autismo que será o principal defeito deste leopardo suspenso a meio do salto.



Bizarra Locomotiva – “Homem Máquina”

(público >> y >> portugueses >> crítica de discos)
18 Abril 2003


BIZARRA LOCOMOTIVA
Homem Máquina
Metrónomo, distri. Zona Música
7|10



Já que anda toda a gente a escarafunchar nos anos 80, porque não deitar o dente à boa e massacrante música industrial e à “electronic body music” que naquela década procurou revolucionar as rotações cardíacas e o ritmo das discotecas, através de agentes como os Front 242, Skinny Puppy, Controlled Bleeding ou Front Line Assembly? Verdade seja dita que a locomotiva conduzida por Armando Teixeira nunca circulou longe destes apeadeiros e que “Homem Máquina” não faz mais do que atualizar uma direção há muito encetada pelo grupo. Sobre temáticas como a simbiose homem-máquina (divergente do conceito de “man machine” dos Kraftwerk…), da mitificação demoníaca da heroína ou da relação de poder entre o escravo e o amo, “Homem Máquina” é pura maquinaria em ação de combate onde as noções de ludicidade, guerrilha mental e sexo se confundem em batidas do III Reich. Umas vezes assimilando a vertente “agit pop” dos Mão Morta ou, como, em “O meu anjo”, a sugerir que tipo de pop faria Abrunhosa se estivesse “agarrado” ao pó. “Um homem é um homem, uma máquina é uma máquina”, repete Armando Gama, obsessivamente, nas duas partes de “Homem máquina”. Frase que, repetida de forma maquinal, afirma exatamente o contrário do que enuncia. Bizarra? Os êmbolos da locomotiva trituram a carne e a mente na sua travessia pelo túnel.



Gaiteiros De Lisboa + Four Men And A Dog + Mercedes Péon + Altan – “Bólides Irlandeses Ultrapassaram Mercedes” (XIII Festival Intercéltico) (concertos / festivais)

(público >> cultura >> portugueses + >> concertos / festivais)
Segunda-feira, 7 Abril 2003


Bólides irlandeses ultrapassaram Marcedes

XIII FESTIVAL INTERCÉLTICO
Gaiteiros de Lisboa + Four Men and a Dog
4 de Abril, sala praticamente cheia
Mercedes Péon + Altan
5 de Abril, sala cheia
PORTO Coliseu



Terminou o 13.º Festival Intercéltico do Porto. Em apoteose. É quase sempre assim, quando a Irlanda desce ao Porto, com festa rija, toda a gente a dançar e um ar de felicidade estampado nos rostos e nos corpos. Os Altan cumpriram com brilho, sábado, no Coliseu, a tarefa de que foram incumbidos, divulgando a mensagem renovada de uma Irlanda definitivamente enraizada nos hábitos culturais do Intercéltico. Grande concerto, em crescendo, sem concessões. É assim que deve ser, atrair o público até à música, levá-lo a compreendê-la, senti-la e aceitá-la, ao invés de apelar aos desejos mais básicos de quem ouve. Os Altan começaram devagar, com o canto “a capella” de Mairead Ní Mhaonaigh (na foto). Os “jigs” e “reels” apareceram naturalmente, sem tiranizar a beleza de baladas como “Roaring water” ou “A tune for Frankie” (dedicado ao malogrado flautista e fundador dos Altan, Frankie Kennedy). Aos poucos os corpos soltaram-se. Vieram as danças, a imparável vontade de participar.
Mairead, além da voz que se conhece, mostrou ser uma exímia violinista, entrando em diálogos vertiginosos com Ciaran Tourish, sem o apoio de quaisquer percussões. A assistência mostrou estar à altura dos acontecimentos, sabendo dosear a folia com o silêncio, como quando cantou, sem uma desafinação, uma melodia a quatro tempos ensinada por Mairead. Com os Altan a Irlanda profunda esteve presente no Porto e deixou marcas.
Na véspera foi uma outra Irlanda que passou pelo Intercéltico. Ao contrário dos Altan, os Four Men and a Dog praticam uma música mais universal e tecnicista. Ausente Gino Lupari (para grande desapontamento de muitos), trocado pelo competente e amplificado Jimmy Higgins, no “bodhran”, o quarteto selou uma atuação tecnicamente irrepreensível de onde sobressaíram as acrobacias violinísticas de Cathal Hayden e Gerry O’Connor. A forma como transformaram “Music for a Found Harmonium”, dos Penguin Cafe Orchestra, num tema com uma complexidade harmónica que o original não possui foi exemplar da atual abordagem estilística dos Four Men and a Dog, um grupo que, sem Gino Lupari, manifestamente se tornou mais musical, ganhando em rigor o que perdeu em teatralidade e “verve” humorística. Mesmo assim, um “boogie” saído da cartola mostrou que ainda anda por ali à solta um cão vadio…
Desiludiram as duas bandas chamadas a fazer as primeiras partes. Na sexta-feira, os Gaiteiros de Lisboa esticaram demasiado a corda. Inegável continua a ser a originalidade de uma música única no panorama da “folk” europeia. Polifonias intrincadas, uma tensão instrumental feita da polaridade entre a música antiga e a modernidade mais radical, um humor inteligente e “nonsense” mordazes, a força de percussões arrancadas ao cancioneiro
português mais genuíno, tudo isto esteve presente na atuação dos Gaiteiros na noite portuense. Faltou a unidade, a sustentação prática de um edifício cuja complexidade não cessa de aumentar. Se o motor rítmico funcionou e as vozes compensaram com a beleza do labirinto um ou outro défice de colocação, o mesmo não se poderá dizer das gaitas-de-foles numa noite em que andaram manifestamente perdidas. Nem sempre é possível acompanhar a força das marés, e a onda gigante, o macaréu, dos Gaiteiros é força da Natureza, umas vezes doce, outras tempestade difícil de domar.
Mercedes Peón, na abertura de sábado, não esteve melhor. Não que o público não tivesse gostado. Adorou. Mas porque a cantora galega lhes ofereceu prato de fácil digestão: batidas rock de baixo elétrico e bateria, cânticos fortes servidos por um vozeirão que se deve ter feito ouvir na outra margem do Douro, gaitadas meia-bola-e-força e canções dignas de uma “Operação Triunfo” não tiveram dificuldade em impor-se. Mas Mercedes foi mais veículo de carga do que automóvel de luxo. No “stand” do Intercéltico, os bólides irlandeses continuam a ser os mais viáveis.

EM RESUMO
Duas Irlandas, a profunda dos Altan e a universalista dos Four Men and a Dog, “arrasaram” o Coliseu do Porto.
Gaiteiros e Mercedes foram a arranjar para a oficina