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Rodrigo Leão & Vox Ensemble – “Nascit Vox Reverti” (entrevista)

pop rock >> quarta-feira >> 26.04.1995
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NESCIT VOX MISSA REVERTI *


Não fazem música portuguesa mas são um dos projectos com hipóteses de singrar no estrangeiro. Os Vox Ensemble, de Rodrigo Leão, seguem as pisadas ou cortaram o cordão umbilical que une a sua música á dos Madredeus? Um “Mysterium” para ser resolvidojá daqui a seis dias, no CCB.



“mysterium” acabou de ser editado no nosso país. Quatro temas inéditos em conjunto com outros dois repescados do álbum de estreia, “Ave Mundi Luminar”. Pode parecer estranho e saber a pouco, mas na realidade este “novo” disco dos Voz Ensamble, com edição exclusiva em Portugal e Espanha, não passa afinal de uma espécie de amostra, na mesma altura em que o primeiro álbum do grupo está prestes a ser editado em países como os Estados Unidos e a Alemanha. Depois dos Madredeus, grupo que Rodrigo Leão abandonou recentemente, os Vox Ensemble preparam a sua própria investida nos mercados estrangeiros. Ou seja, a música portuguesa, de cariz nostálgico, pretende continuar a recolher dividendos lá fora. Curiosamente, são os artistas que atiraram para trás das costas a obrigação de fazer “música portuguesa”, com toda a carga de preconceitos que tal termo comporta, aqueles cuja mensagem parece reunir as melhores condições para triunfar no exterior. O que talvez queira dizer aquilo que Pessoa sempre apregoou, que os portugueses sê-lo-ão tanto mais na medida em que forem universalistas. Um “Mysterium” para o qual existe, no fim de contas, uma solução. Entretanto, a meio de uma digressão que já passou por Espanha e levará o grupo a outras paragens da Europa, os Vox Ensmble actuam no Centro Cultural de Belém. A preparar terreno.
PÚBLICO – Porque é que os temas não puderam esperar por um próximo álbum de originais?
RODRIGO LEÃO – Os temas, duas canções [“Promise”, 1&2, e “Mysterium”] e um instrumental [“Tristis dies”], foram feitos a pensar no espectáculo, uma vez que no primeiro álbum só havia duas canções, o “Ave Mundi” e o “Carpe Diem”. O número de canções subiu portanto de dois para quatro.
P. – Os Vox Ensemble podem ser considerados uma versão mais intelectualizada, ou erudita, dos Madredeus?
R. – Acho que não. Muita gente pode pensar isso porque nas entrevistas refiro muitas vezes nomes de compositores como o Michael Nyman ou o Philip Glass, da escola minimalista, mas a minha música não tem rigorosamente nada a ver com o que eles fazem, no sentido em que é muito menos erudita. Tudo o que tenho feito, na Sétima Legião, nos Madredeus, nos Resistência, nos Golpe de Estado, surge na sequência do que foi feito há dez, quinze anos, pelos Heróis do Mar e Sétima Legião, e que viria a dar origem como que a uma grande família. Há uma ligação muito forte entre estes músicos todos.
P. – É como se tivessem sido cuidadosamente removidas as características mais populares da música…
R. – Sim. Não há poesia portuguesa nem temos um cantor à frente. Nem instrumentos populares como o acordeão ou a gaita-de-foles, mesmo as guitarras.
P. – A erudição está presente logo na escolha dos títulos, todos em latim…
R. – Sim… Fui compondo “Ave Mundi Luminar” durante dois anos, numa altura em que tinha muito trabalho na Sétima e nos Madredeus. Tinha uma série de temas, esboços, todos instrumentais, que achava que poderiam dar origem a um disco novo. As vozes foram a última coisa a surgir e eu queria que elas fossem diferentes do que neste aspecto tinha sido feito tanto pelos Madredeus como pelos Sétima Legião. Não quis que houvesse aquela preocupação em transmitir o sentido das palavras, de uma letra. Escolhi o latim por isso, pela sonoridade, como se fosse mais um instrumento.
P. – A tónica numa certa religiosidade também é uma árvore que está a dar frutos?
R. – Mesmo na Sétima Legião e nos Madredeus havia essa religiosidade. Em “A Um Deus Desconhecido”, por exemplo. Ou em “Ave Mundi Luminar”, onde há uma parte quase falada, como se fosse uma missa. Mas essa religiosidade não se pode confundir com religião.
P. – A inclusão no grupo da cantora Ana Sacramento parece não ser inocente. Em “Promise II”, por exemplo, o estilo faz lembrar bastante Teresa Salgueiro…
R. – Repare, aqui os cantores têm um papel completamente diferente do da Teresa, nos Madredeus, porque embora a disposição em palco dos músicos seja semelhante, os cantores, sempre em número de dois, estão atrás… E praticamente não cantam sozinhos. A ideia básica do projecto não é de forma alguma destacar um músico ou um cantor.
P. – Como explica o facto de hoje em dia ser possível a um músico ou a um grupo português ter êxito e vender bem no estrangeiro, coisa impensável há alguns anos?
R. – Há um cansaço da música anglo-saxónica ou da que se ouve mais nos “tops”. As pessoas, também por terem mais informação, estão interessadas em ouvir coisas de países estranhos. Depois há o “boom” da “world music”… Em relação a Espanha, por exemplo, isso aconteceu agora porque tem havido, de há uns anos para cá, pessoas, na rádio e nas editoras pequenas, que t~em divulgado a música portuguesa.
P. – O curioso é que é o lado mais nostálgico e melancólico da música portuguesa que parece sensibilizar os públicos estrangeiros.
R. – Há uma melancolia inerente ao povo português que, se calhar, pode atrair lá fora, mesmo em outras áreas, como o cinema, a pintura ou a poesia.
P. – Os Vox Ensemble fazem música portuguesa?
R. – Não. Pelo menos não tem nada directamente a ver com ela. Pode ter eventualmente algumas melodias ou a tal melancolia, inerente a Portugal, no seu caso, talvez causada por ter viajado muitas vezes pelo país com os Madredeus e a Sétima Legião. A música acaba por se inspirar um bocado na paisagem.

* “A palavra, depois de anunciada, não volta atrás”

RODRIGO LEÃO
& VOX ENSEMBLE
Centro Cult. de Belám (Lisboa) – 2/05 – 22h
Teatro-circo (Braga) – 5/05 – 22h
Teatro Garcia Resende (Évora) – 25/05 – 22h

Né Ladeiras + Amélia Muge – “A Tradição Já Não É O Que Era” (entrevista)

pop rock >> quarta-feira >> 26.04.1995


A TRADIÇÃO JÁ NÃO É O QUE ERA



Amélia Muge, Né Ladeiras. Duas vozes, dois projectos singulares com alguns pontos em comum. “Todos os Dias” e “Traz os Montes” ganharam os favores da crítica, nas listas dos melhores do ano passado, mas, para as suas autoras, isso não chega. Acham que os respectivos álbuns deveriam chegar mais longe do que onde estão a chegar. Idealistas por natureza, não abdicam da integridade artística, mesmo que isso lhes custe amargos de boca em termos de mercado. Procuram, cada uma à sua maneira, a felicidade. Uma felicidade que passa pela música e por levar essa música às pessoas. Tecem críticas, soltam esperanças e queixumes e estão de acordo que o estado cultural do chamado país real não ajuda. Falam em projectos e suspiram por alternativas. Assustam e encantam. Dão ambas mostras de uma energia que não se esgota nos sons e nas palavras mas se prolonga pela vida. Mulheres tradicionais, no sentido em que assumem arquétipos femininos que remontam à origem das comunidades, não se acomodam ao ritmo desenfreado dos tempos modernos nem aos gostos esterotipados das maiorias. Têm voz própria, uma voz que por tocar tão fundo pode não chegar a todos. Né, a água, e Amélia, o fogo, explicaram porque ocupam um lugar à parte na música popular feita em Portugal.

PÚBLICO – Agora que já passaram alguns meses sobre a edição dos vossos discos, querem fazer o ponto da situação?
NÉ LADEIRAS – No meu caso, foi muito bem recebido pela crítica. Agora, em termos de trabalho, está péssimo. Estou extremamente triste porque vejo um grupo de pessoas – somos oito – sem grandes esperanças de até ao final deste ano podermos levar “Traz os Montes” até onde eu imaginava que podia ser levado. Estou desiludida com este sistema de monopólio emque há duas ou três pessoas que comem tudo e os outros não comem nada. Não tem havido espaço para o meu projecto.
P. – Será por, como já ouvimos dizer, o seu trabalho ser demasiado difícil?
N.L. – Se calhar tem a ver com a região, Trás-os-Montes, que não é uma região fácil, mas indecifrável. Se não pusermos o coração e a razão juntas a trabalhar para entender aquela forma de vida. Talvez fosse mais fácil pegar numa chula ou numa canção alentejana… Mas jamais prescindiria da minha integridade em nome do sucesso. Se nasci com algum dom, foi com o dom da música e da voz e sensibilidade que tenho. Além de ser uma boa mãe. Agora, vulgarizar aquilo que Deus me deu, ou que o céu me deu, nunca! Assim sofre-se muito mais, sabe? Entra-se em depressão, parece que estamos numa estrada florida com um piso fantástico mas de repente aparece um abismo, uma cova enorme e – pimba! – estamos no chão. Para nos levantarmos é temível. É o que se está a passar neste momento. Estou a sofrer muito. Larguei as outras coisas todas, mas estou seriamente a pensar em arranjar uma alternativa porque pelos vistos, em Portugal, não somos amados. Talvez me dedique definitivamente ao campo, ao cultivo das batatas, do centeio, do trigo… É uma vida dura mas prefiro isso, porque a terra nunca nos nega. É uma coisa que sei quenão vou falhar, não me vai trair. E eu neste momento sinto-me atraiçoada, talvez pelo sistema em si.
P. – A Amélia sente o mesmo tipo de dificuldades?
AMÉLIA MUGE – Em relação ao disco, é importante manter uma postura de certo modo independente. Realmente não estou nisto para fazer discos. Eles acontecem. Não estive dependente de um disco para compor o que compus, cantar o que cantei, andar por onde andei. Não vou ficar dependente do que será o percurso deste disco, o “Todos os Dias”, ou outros que faça, para encetar os meus próprios caminhos. E este percurso, deste objecto, não depende só de mim, a começar pela promoção, da forma como é promovido ou não é. Por exemplo, há queixas regulares de pessoas que vão às lojas e não encontram o disco, embora este não esteja esgotado…

Um Espaço, Entre Triliões De Pop e Quatriliões De Rock

P. – A questão é que ambas estão, em termos de atitude, fora do sistema, mas na prática, a partir do momento em que assinaram contratos com as respectivas editoras, passaram a estar automaticamente dentro desse mesmo sistema. A dificuldade não residirá na conciliação entre estes dois aspectos?
N. L. – Tenho os meus códigos de honra e as minhas leis interiores. Faz-me um bocado de confusão saber que somos utilizados, não como carne para canhão, mas quase. Fazemos parte de um catálogo, para se poder dizer que se está a fazer algo com a música portuguesa, mas o que acho, desde que estou neste cenário da música, desde 1977, é que a partir de uma certa altura, quando as multinacionais começaram a estender os seus tentáculos e cá se alaparam, o que lhes interessa é vender o Bruce Springsteen, os Cranberries e por aí fora. Não se cria um espaço para os artistas portugueses. Para estes escritórios, ou subescritórios, dos presumíveis fazedores de artistas, que até nem o são, não há uma participação activa dos músicos portugueses. Vendem-se milhões de “heavy-metal”, triliões de pop e quadriliões de rock fantásticos mas pelo menos dêem-nos um bocado de espaço para respirar. As multinacionais pisam um bocado a nossa diginidade. Tive muita pena que a Alma Lusa não tivesse ido para a frente, como editora, embora não possa dizer que neste momento a EMI-VC esteja a ser má comigo. As únicas razões de queixa que tenho são ao nível da distribuição. Uma vez fui ao Norte e nas próprias lojas da Valentim de Carvalho não havia discos do “Traz os Montes”. O editor tem que ter códigos e identificar-se minimamente com os artistas que contrata.
A.M. – É verdade que as multinacionais têm um determinado tipo de funcionamento em que as próprias pessoas que lá estão são um bocado escravas dele. Não acontece só com os discos, mas em todo o lado. Quando se fala nas questões do sistema, temos que ter em conta também que o ensino está péssimo e os próprios professores sentem-se impotentes para mudar a situação. É uma rede que nos ultrapassa…
N.L. – Aí não comparo muito os professores a quem puxa os cordéis nas multinacionais. Tenho três miúdos, todos eles estão na escola, e as conversas que temos é “ai meu Deus, o que é que vamos fazer destas crianças?”. Cada vez há mais acompanhamento ao nível de psicólogos, os miúdos estão perfeitamente descontrolados. Há crianças, mesmo com excelente ambiente familiar, que, chegadas à escola, vêem o mundo delas desmoronar-se.
A.M. – É uma questão de adaptação de pessoas, ou de grupos, dentro ou fora do sistema. As dificuldades das editoras independentes são de outro género.
N.L. – … Financeiras!

Dar O Couro E O Cabelo Para Ser Feliz

P. – Mas não se podem esquecer de que a vertente artística passou a estar directamente ligada à da indústria. Ora, a indútria trabalha sobretudo com imagens. Não se dará o caso de haver uma dificuldade vossa em juntar uma atitude idealista com os imperativos do mercado?
N.L. – Aí, fecho-me completamente. Já me chamaram virgem e feiticeira! Sou uma alma antiga.
A.M. – Podia falar, por exemplo, nas dificuldades que tenho em ir a uma televisão, onde me sinto completamente desconfortável, num ambiente frio que não tem nada a ver comigo, como se houvesse uma câmara indiscreta em todo o lado, a passarinhar não sei por onde… Vivemos numa sociedade completamente mediatizada. Tenho que assumir, até num palco, que aquilo que as pessoas estão a ouvir não é o que eu estou a cantar, mas qualquer coisa que uma aparelhagem está a fazer passar. Se agisse em termos de coerência comigo própria, se calhar não cantava em lado nenhum. Só para os amigos, que ouviam a minha voz natural. De mim para eles. Mas a partir do momento em que a gente sabe que vive num mundo mediático, temos que perceber que há uma dinâmica entre aquilo que é, por um lado, viver da música e aquilo que é dar o couro e o cabelo, para servir a música.
N.L. – Também é uma questão de felicidade. Já fiz trabalhos precisamente para evitar que me sujassem o gosto, o amor que tenho pela música, mas nunca fui feliz nesses trabalhos. Este é de facto o meu mundo. Se me querem ver feliz, sossegada e em paz, comigo e com os outros, é deixarem-me cantar e criar. Só peço isso. Mas como não é possível, tinha que ir para as rádios – os consultórios – para fazer “n” coisas, andava extremamente amargurada. Não faz sentido, pois não?
P. – É para isso que existem os agentes, não é?
N.L. – Sim, tivemos imensas reuniões. Primeiro o espectáculo era demasiado caro, baixámos os “cahets” vertiginosamente mas mesmo assim não há concertos. O que me disseram foi que no ano passado foi pior e que este ano estamos a pagar o que se passou em 1994. Consegui ultrapassar tudo isto naqueles dias de ensaios que tivemos em Alfama, na sala da Encore, duas semanas de extrema felicidade em que senti umcansaço de cair para o lado, do género chegar a casa e “pof”, mas um cansaço que eu comparo ao do campo, em que se anda a sachar o dia inteiro mas se chega a casa feliz da vida, porque só o corpo é que dói. Está a faltar-me isso. Estou a detestar estar em casa, não ter ensaios, não estar a levar “Traz os Montes” para fora. Já tenho ideias para um próximo trabalho mas isso só não me alimenta.
A.M. – Também acho que uma das características do nosso tempo é a rapidez. Tudo tem que ser muito rápido. Se não se chega aos tops num ano, como é que é? As pessoas esquecem-se que se a gente não está nestas coisas para um ano ou para dois, para fazer a tal música dentro dos padrões de consumo, as coisas levam um certo tempo. Fiz o “Múgica” em 1992 e sinto, em termos do que se convenciona chamar uma carreira, que não quero andar em passo de caracol mas também não quero pensar nela com a velocidade do foguetão que vai para a Lua. Não quero entrar em corrida nenhuma, nem sei correr dessa maneira. O grande problema não é gravar o disco mas de o passar às pessoas. A solução está em encontrar alternativas. No fundo estamos a tentar resolver uma coisa que não tem só a ver connosco. Não quero entrar naquele discurso de que há uns que estão numa facilidade e outros, os que não são vendidos.
N. L. – Mas é um bocado o que se passa, não é?

“Homo Erectus”, Um Homem Assustado

P. – Mudando de assunto. Identificam-se de algum modo com a imagem da mulher tradicional, no sentido da assunção de valores arquetípicos que transcendem a mera dimensão temporal e sociológica?
N. L. – Se se refere à época matriarcal, sim, estou lá, cem por cento. Porque nós geramos, porque temos imensas capacidades, porque somos diferentes. Não tenho nada o tipo de discurso feminista. Detesto feministas. Acho que são todas anti-homens. Eu gosto de homens. E de crianças.
P. – Há pouco disse que já lhe tinham chamado virgem e feiticeira…
N. L. – Estou muito ligada a um trabalho interior, já há muitos anos, que nunca mais vai acabar. Há-de continuar do lado de lá. Quando me referia à tal sociedade matriarcal, foi o que encontrei em Trás-os-Montes, muitas afinidades com o meu feitio. Tive quatro casamentos, imensas relações na minha vida, mas nunca fui dominada nem orientada por ninguém. Não é por ser selvagem mas por ter ideias, os tais códigos de honra e lealdade. Detesto que me prendam, como um passarito numa gaiola.
P. – Essa postura não lhe provoca dificuldades na relação com a indústria, um meio patriarcal?
N. L. – Os homens, de uma maneira geral, têm um problema de inferioridade, não sei bem porquê. Por qualquer motivo, têm uns temores dentro deles. Talvez o meu infortúnio desta relação tempestuosa com eles seja devido a isso. De facto já me disseram que eu era um bocado capz de assustar. Por ter alguns poderes…
P. – A Amélia, pelo contrário, talvez assuste por outros motivos, dada a sua impetuosidade natural…
A. M. – Para já, as pessoas ligam um bocado a tradição a qualquer coisa de passivo. Eu não entendo nada a tradição assim. Que eu saiba continuamos a ser o Pitecantropus, ou “homo erectus”, como se costuma dizer. O homem moderno é o mais tradicional que existe, às vezes com um “t” muito pequenininho. A tradição é isto, nós sabemos que somos alguém que vem na continuidade de qualquer coisa. A nossa modernidade está aí. O nosso tempo é enquanto estamos vivos. Acho uma estupidez ligar tradição a qualquer coisa que já passou e não a qualquer coisa que está a acontecer.
P. – Referíamo-nos a arquétipos, os quais, por essência, não podem ser modificados, embora possam ser actualizados de diferentes formas. Através da música por exemplo, o que tanto uma como outra fizeram nos respectivos discos…
A. M. – Se calhar estou a ser utópica quando faço a música que faço. Vivemos na tal sociedade mediatizada. Cada vez mais as conversas particulares que tenho com as pessoas não correspondem à imagem que tenho da sociedade, em termos abstractos. Há um desfasamento cada vez maior. As pessoas habituaram-se a ter tudo à disposição, aos passevites. Tudo tem que estar em papa para não ser preciso mastigar.
N. L. – Como sabe, vou muitas vezes ao Norte, passo lá a minha vida. Noutro dia engoli em seco. Estavam a falar de uma festa, em Agosto, e alguém disse: “Aqui esta menina tem agora umas coisas aqui da terra, tem ssim uma banda.” Responde o mestre de cerimónias: “Mas o quê? Ela vir cá com aquela gente toda? Bota-se aí um órgão que faz tudo só com uma pessoa e já está1” Ah, meu Deus, então percebi o nome de um cantor qualquer que faz aquilo e percebi que é disso que eles gostam! Tenho ido a quase todas as feiras do Norte, por curiosidade tenho andado à procura. Não encontrei nem os Madredeus, nem tu, nem eu, nem a Filipa Pais… É só Laura Pausini, que é o que está a dar. A sensação que me dá é que estou a tentar que não se mate, que não desapareça uma cultura e não estou a sentir o retorno das pessoas que estão directamente ligadas a essa cultura moribunda. Têm vergonha. Uma vez, em Duas Igrejas, disse-me assim um rapaz: “Então mas você gosta disto? O que é que isto tem que as outras cidades não têm? Isto é um atraso de vida!” Era um rapaz novo, do ensino secundário, que odiava a música e queria era vir para Lisboa.

Gabriel Yacoub – “Entrevista Com O Trovador Francês Gabriel Yacoub – Quatro De Honra”

pop rock >> quarta-feira >> 01.02.1995


Entrevista Com O Trovador Francês Gabriel Yacoub
Quatro De Honra


Fundou um dos grupos emblemáticos do movimento de recuperação folk nos anos 70 em França, os Malicorne. Enamorado pela tradição e pela tecnologia, Gabriel Yacoub editou no final do ano passado o seu quarto álbum a solo, “Quatre”, ainda sem distribuição em Portugal. No festival “Sons (da) Voz” vamos escutar a voz e a guitarra solitárias de Gabriel, o trovador.



Se os Malicorne eram a apoteose feérica de um som que elevava a tradição folk francesa à grandeza da música barroca, a carreira a solo de Gabriel Yacoub tem sido pelo contrário marcada pela descontinuidade. Em comum entre a simplicidade de “trad. Arr”, os exercícios “tecnopop” de “Elementary Level of Faith” e de novo a “folk” revista à luz do modernismo, de “Bel”, apenas a voz. Uma voz de tal forma envolvente que pode chegar aos extremos da intoxicação. “Quatre” equilibra tensões várias, À sombra do simbolismo e de uma certa indefinição. Yacoub enumerou para o PÚBLICO as suas razões.
PÚBLICO – Que motivos levaram à mudança radical da música dos Malicorne, da folk para a pop electrónica do seu último álbum, “Les Cathédrales de l’Industrie”?
GABRIEL YACOUB – Esse álbum dos Malicorne foi o primeiro onde os textos foram escritos por mim. Considero esta inovação, em comparação com as canções tradicionais que constituíam o reportório do grupo desde as origens, uma verdadeira revolução. Acrescente-se, de qualquer modo, que estava destinado a ser um álbum a solo meu, mas a editora, talvez por razões comerciais, decidiu que seria dos Malicorne. É preciso dizer que recorri às minhas amizades musicais óbvias, ou seja, os músicos do grupo.
P. – A tecnologia desempenha um papel importante na sua discografia a solo…
R. – Desde o início, com os Malicorne ou nas minhas produções a solo, estive sempre ao corrente das evoluções da tecnologia no domínio musical. Sinto-me feliz por viver numa época onde podemos ter acesso tanto às tecnologias de ponta como às sonoridades de uma infinidade de instrumentos provenientes de todas as regiões do globo e todas as épocas. Seria mau não aproveitar esta possibilidade. A um corredor pedestre não se amputa uma perna no início de uma corrida…
P. – Houve uma mudança radical de “Trad. Arr.” Para “Elementary Level of Faith (E.L.F.)” e deste para “Bel”. “Quatre” procura abrir novas vias para o que poderemos chamar “etnopop”. Onde se situa, afinal de contas, o essencial da sua música?
R. – Cada um desses álbuns segue a fantasia da minha inspiração no momento emq eu o fiz. “Trad. Arr.” Marcava o início da minha carreira a solo, em 1978, e nele procurei arranjos muito sóbrios e acústicos, por oposição ao meu trabalho nos Malicorne. “E.L.F.” é um álbum totalmente experimental no qual pretendi explorar as novas técnicas de samplagem. “Bel” representa um movimento em direcção aos meus amores de sempre: a sobriedade e os sons acústicos. “Quatre” faz o balanço de todas estas experiências e das viagens musicais do passado.
P. – Álbuns como “Almanach” e “L’Extraordinaire Tour de France d’Adélard Rousseau” revelam os seus conhecimentos sobre o esoterismo. De onde vem este interesse?
R. – O meu interesse pelas tradições e pelas obliquidades da música levaram-me naturalmente na direcção da cultura popular, com tudo o que ela comporta de símbolos, de superstições, de magia. Estes aspectos são indissociáveis da tradição e das suas riquezas, evidentes ou ocultas.
P. – “Quatre”, além de ser o seu quarto álbum a solo, remete para outro tipo de relações simbólicas. Além disso fez a separação das canções em quatro unidades temáticas…
R. – De facto diverti-me a estudar as relações simbólicas referentes ao número quatro. Primeiro, as canções encaixaram-se de forma natural nas quatro famílias dos elementos. Desenvolvi depois um outro tipo de reflexão, sobre os quatro capítulos dos Vedas [textos sagrados indianos]: “hinos”, “encantamentos”, “liturgia” e “especulações”, nos quais, de novo, as diferentes canções se inatalaram espontaneamente.
P. – Como se situa no actual panorama da folk francesa? Dentro ou fora dele?
R. – Não me situo em nenhum movimento musical actual em França. As minhas amizades e sensibilidade atraem-me naturalmente para o meio folk e tenho consciência do que lhe devo. Mas a minha curiosidade e as minhas ambições criativas empurram-me para outro lado. Parece claro que não faço música folk, mas, em compensação, espero que o amor e o respeito que sinto por esta música me ajudem a criar uma música nova, sustentada por uma herança de tamanha riqueza.
P. – Conhecemos um álbum da cantora norueguesa Marja Mattlar [já recenseado neste suplemento], no qual juntamente com Patrice Clementin, assina a produção. Tenciona reptir a experiência nesta área?
R. – Estou aberto a todas as experiências musicais que possam alimentar ou estimular a minha criatividade. O meu trabalho de produção para Marja Mattlar foi apaixonante. Patrice e eu, para além do exercício estético e puramente artístico, sentimos um enorme prazer, ao nível das emoções e da fantasia, em realizá-lo. Foi uma experiência rara mas que gostaria de repetir com outros artistas que aprecio.

NOTA: “Quatre”, embora sem atingir o nível de “Bel”, justifica a sua distribuição em Portugal. Se outras razões não houvesse, bastaria a presença no disco de três dos maiores gaiteiros actuais em França, Jean Blanchard, Eric Montbel (dos Lo Jai) e Jean-Pierre Rasle (dos Cock & Bull), e do mago da sanfona Gilles Chabenat. Ou da cantora canadiana Melaine Favennec, do tocador de saltério árabe Elie Achkar e do ex-Gryphon e elemento da última formação dos Malicorne, Brian Gulland. A editora é a Boucherie Productions, a mesma que reeditará em compacto, ao longo deste ano, os álbuns ainda não disponíveis neste formato dos Malicorne: “Le Bestiaire”, “L’Extraordinaire Tour de France…”, o registo ao vivo “Montrèal en Public” e “Balançoire en Feu”.