pop rock >> quarta-feira >> 26.04.1995
A TRADIÇÃO JÁ NÃO É O QUE ERA

Amélia Muge, Né Ladeiras. Duas vozes, dois projectos singulares com alguns pontos em comum. “Todos os Dias” e “Traz os Montes” ganharam os favores da crítica, nas listas dos melhores do ano passado, mas, para as suas autoras, isso não chega. Acham que os respectivos álbuns deveriam chegar mais longe do que onde estão a chegar. Idealistas por natureza, não abdicam da integridade artística, mesmo que isso lhes custe amargos de boca em termos de mercado. Procuram, cada uma à sua maneira, a felicidade. Uma felicidade que passa pela música e por levar essa música às pessoas. Tecem críticas, soltam esperanças e queixumes e estão de acordo que o estado cultural do chamado país real não ajuda. Falam em projectos e suspiram por alternativas. Assustam e encantam. Dão ambas mostras de uma energia que não se esgota nos sons e nas palavras mas se prolonga pela vida. Mulheres tradicionais, no sentido em que assumem arquétipos femininos que remontam à origem das comunidades, não se acomodam ao ritmo desenfreado dos tempos modernos nem aos gostos esterotipados das maiorias. Têm voz própria, uma voz que por tocar tão fundo pode não chegar a todos. Né, a água, e Amélia, o fogo, explicaram porque ocupam um lugar à parte na música popular feita em Portugal.
PÚBLICO – Agora que já passaram alguns meses sobre a edição dos vossos discos, querem fazer o ponto da situação?
NÉ LADEIRAS – No meu caso, foi muito bem recebido pela crítica. Agora, em termos de trabalho, está péssimo. Estou extremamente triste porque vejo um grupo de pessoas – somos oito – sem grandes esperanças de até ao final deste ano podermos levar “Traz os Montes” até onde eu imaginava que podia ser levado. Estou desiludida com este sistema de monopólio emque há duas ou três pessoas que comem tudo e os outros não comem nada. Não tem havido espaço para o meu projecto.
P. – Será por, como já ouvimos dizer, o seu trabalho ser demasiado difícil?
N.L. – Se calhar tem a ver com a região, Trás-os-Montes, que não é uma região fácil, mas indecifrável. Se não pusermos o coração e a razão juntas a trabalhar para entender aquela forma de vida. Talvez fosse mais fácil pegar numa chula ou numa canção alentejana… Mas jamais prescindiria da minha integridade em nome do sucesso. Se nasci com algum dom, foi com o dom da música e da voz e sensibilidade que tenho. Além de ser uma boa mãe. Agora, vulgarizar aquilo que Deus me deu, ou que o céu me deu, nunca! Assim sofre-se muito mais, sabe? Entra-se em depressão, parece que estamos numa estrada florida com um piso fantástico mas de repente aparece um abismo, uma cova enorme e – pimba! – estamos no chão. Para nos levantarmos é temível. É o que se está a passar neste momento. Estou a sofrer muito. Larguei as outras coisas todas, mas estou seriamente a pensar em arranjar uma alternativa porque pelos vistos, em Portugal, não somos amados. Talvez me dedique definitivamente ao campo, ao cultivo das batatas, do centeio, do trigo… É uma vida dura mas prefiro isso, porque a terra nunca nos nega. É uma coisa que sei quenão vou falhar, não me vai trair. E eu neste momento sinto-me atraiçoada, talvez pelo sistema em si.
P. – A Amélia sente o mesmo tipo de dificuldades?
AMÉLIA MUGE – Em relação ao disco, é importante manter uma postura de certo modo independente. Realmente não estou nisto para fazer discos. Eles acontecem. Não estive dependente de um disco para compor o que compus, cantar o que cantei, andar por onde andei. Não vou ficar dependente do que será o percurso deste disco, o “Todos os Dias”, ou outros que faça, para encetar os meus próprios caminhos. E este percurso, deste objecto, não depende só de mim, a começar pela promoção, da forma como é promovido ou não é. Por exemplo, há queixas regulares de pessoas que vão às lojas e não encontram o disco, embora este não esteja esgotado…
Um Espaço, Entre Triliões De Pop e Quatriliões De Rock
P. – A questão é que ambas estão, em termos de atitude, fora do sistema, mas na prática, a partir do momento em que assinaram contratos com as respectivas editoras, passaram a estar automaticamente dentro desse mesmo sistema. A dificuldade não residirá na conciliação entre estes dois aspectos?
N. L. – Tenho os meus códigos de honra e as minhas leis interiores. Faz-me um bocado de confusão saber que somos utilizados, não como carne para canhão, mas quase. Fazemos parte de um catálogo, para se poder dizer que se está a fazer algo com a música portuguesa, mas o que acho, desde que estou neste cenário da música, desde 1977, é que a partir de uma certa altura, quando as multinacionais começaram a estender os seus tentáculos e cá se alaparam, o que lhes interessa é vender o Bruce Springsteen, os Cranberries e por aí fora. Não se cria um espaço para os artistas portugueses. Para estes escritórios, ou subescritórios, dos presumíveis fazedores de artistas, que até nem o são, não há uma participação activa dos músicos portugueses. Vendem-se milhões de “heavy-metal”, triliões de pop e quadriliões de rock fantásticos mas pelo menos dêem-nos um bocado de espaço para respirar. As multinacionais pisam um bocado a nossa diginidade. Tive muita pena que a Alma Lusa não tivesse ido para a frente, como editora, embora não possa dizer que neste momento a EMI-VC esteja a ser má comigo. As únicas razões de queixa que tenho são ao nível da distribuição. Uma vez fui ao Norte e nas próprias lojas da Valentim de Carvalho não havia discos do “Traz os Montes”. O editor tem que ter códigos e identificar-se minimamente com os artistas que contrata.
A.M. – É verdade que as multinacionais têm um determinado tipo de funcionamento em que as próprias pessoas que lá estão são um bocado escravas dele. Não acontece só com os discos, mas em todo o lado. Quando se fala nas questões do sistema, temos que ter em conta também que o ensino está péssimo e os próprios professores sentem-se impotentes para mudar a situação. É uma rede que nos ultrapassa…
N.L. – Aí não comparo muito os professores a quem puxa os cordéis nas multinacionais. Tenho três miúdos, todos eles estão na escola, e as conversas que temos é “ai meu Deus, o que é que vamos fazer destas crianças?”. Cada vez há mais acompanhamento ao nível de psicólogos, os miúdos estão perfeitamente descontrolados. Há crianças, mesmo com excelente ambiente familiar, que, chegadas à escola, vêem o mundo delas desmoronar-se.
A.M. – É uma questão de adaptação de pessoas, ou de grupos, dentro ou fora do sistema. As dificuldades das editoras independentes são de outro género.
N.L. – … Financeiras!
Dar O Couro E O Cabelo Para Ser Feliz
P. – Mas não se podem esquecer de que a vertente artística passou a estar directamente ligada à da indústria. Ora, a indútria trabalha sobretudo com imagens. Não se dará o caso de haver uma dificuldade vossa em juntar uma atitude idealista com os imperativos do mercado?
N.L. – Aí, fecho-me completamente. Já me chamaram virgem e feiticeira! Sou uma alma antiga.
A.M. – Podia falar, por exemplo, nas dificuldades que tenho em ir a uma televisão, onde me sinto completamente desconfortável, num ambiente frio que não tem nada a ver comigo, como se houvesse uma câmara indiscreta em todo o lado, a passarinhar não sei por onde… Vivemos numa sociedade completamente mediatizada. Tenho que assumir, até num palco, que aquilo que as pessoas estão a ouvir não é o que eu estou a cantar, mas qualquer coisa que uma aparelhagem está a fazer passar. Se agisse em termos de coerência comigo própria, se calhar não cantava em lado nenhum. Só para os amigos, que ouviam a minha voz natural. De mim para eles. Mas a partir do momento em que a gente sabe que vive num mundo mediático, temos que perceber que há uma dinâmica entre aquilo que é, por um lado, viver da música e aquilo que é dar o couro e o cabelo, para servir a música.
N.L. – Também é uma questão de felicidade. Já fiz trabalhos precisamente para evitar que me sujassem o gosto, o amor que tenho pela música, mas nunca fui feliz nesses trabalhos. Este é de facto o meu mundo. Se me querem ver feliz, sossegada e em paz, comigo e com os outros, é deixarem-me cantar e criar. Só peço isso. Mas como não é possível, tinha que ir para as rádios – os consultórios – para fazer “n” coisas, andava extremamente amargurada. Não faz sentido, pois não?
P. – É para isso que existem os agentes, não é?
N.L. – Sim, tivemos imensas reuniões. Primeiro o espectáculo era demasiado caro, baixámos os “cahets” vertiginosamente mas mesmo assim não há concertos. O que me disseram foi que no ano passado foi pior e que este ano estamos a pagar o que se passou em 1994. Consegui ultrapassar tudo isto naqueles dias de ensaios que tivemos em Alfama, na sala da Encore, duas semanas de extrema felicidade em que senti umcansaço de cair para o lado, do género chegar a casa e “pof”, mas um cansaço que eu comparo ao do campo, em que se anda a sachar o dia inteiro mas se chega a casa feliz da vida, porque só o corpo é que dói. Está a faltar-me isso. Estou a detestar estar em casa, não ter ensaios, não estar a levar “Traz os Montes” para fora. Já tenho ideias para um próximo trabalho mas isso só não me alimenta.
A.M. – Também acho que uma das características do nosso tempo é a rapidez. Tudo tem que ser muito rápido. Se não se chega aos tops num ano, como é que é? As pessoas esquecem-se que se a gente não está nestas coisas para um ano ou para dois, para fazer a tal música dentro dos padrões de consumo, as coisas levam um certo tempo. Fiz o “Múgica” em 1992 e sinto, em termos do que se convenciona chamar uma carreira, que não quero andar em passo de caracol mas também não quero pensar nela com a velocidade do foguetão que vai para a Lua. Não quero entrar em corrida nenhuma, nem sei correr dessa maneira. O grande problema não é gravar o disco mas de o passar às pessoas. A solução está em encontrar alternativas. No fundo estamos a tentar resolver uma coisa que não tem só a ver connosco. Não quero entrar naquele discurso de que há uns que estão numa facilidade e outros, os que não são vendidos.
N. L. – Mas é um bocado o que se passa, não é?
“Homo Erectus”, Um Homem Assustado
P. – Mudando de assunto. Identificam-se de algum modo com a imagem da mulher tradicional, no sentido da assunção de valores arquetípicos que transcendem a mera dimensão temporal e sociológica?
N. L. – Se se refere à época matriarcal, sim, estou lá, cem por cento. Porque nós geramos, porque temos imensas capacidades, porque somos diferentes. Não tenho nada o tipo de discurso feminista. Detesto feministas. Acho que são todas anti-homens. Eu gosto de homens. E de crianças.
P. – Há pouco disse que já lhe tinham chamado virgem e feiticeira…
N. L. – Estou muito ligada a um trabalho interior, já há muitos anos, que nunca mais vai acabar. Há-de continuar do lado de lá. Quando me referia à tal sociedade matriarcal, foi o que encontrei em Trás-os-Montes, muitas afinidades com o meu feitio. Tive quatro casamentos, imensas relações na minha vida, mas nunca fui dominada nem orientada por ninguém. Não é por ser selvagem mas por ter ideias, os tais códigos de honra e lealdade. Detesto que me prendam, como um passarito numa gaiola.
P. – Essa postura não lhe provoca dificuldades na relação com a indústria, um meio patriarcal?
N. L. – Os homens, de uma maneira geral, têm um problema de inferioridade, não sei bem porquê. Por qualquer motivo, têm uns temores dentro deles. Talvez o meu infortúnio desta relação tempestuosa com eles seja devido a isso. De facto já me disseram que eu era um bocado capz de assustar. Por ter alguns poderes…
P. – A Amélia, pelo contrário, talvez assuste por outros motivos, dada a sua impetuosidade natural…
A. M. – Para já, as pessoas ligam um bocado a tradição a qualquer coisa de passivo. Eu não entendo nada a tradição assim. Que eu saiba continuamos a ser o Pitecantropus, ou “homo erectus”, como se costuma dizer. O homem moderno é o mais tradicional que existe, às vezes com um “t” muito pequenininho. A tradição é isto, nós sabemos que somos alguém que vem na continuidade de qualquer coisa. A nossa modernidade está aí. O nosso tempo é enquanto estamos vivos. Acho uma estupidez ligar tradição a qualquer coisa que já passou e não a qualquer coisa que está a acontecer.
P. – Referíamo-nos a arquétipos, os quais, por essência, não podem ser modificados, embora possam ser actualizados de diferentes formas. Através da música por exemplo, o que tanto uma como outra fizeram nos respectivos discos…
A. M. – Se calhar estou a ser utópica quando faço a música que faço. Vivemos na tal sociedade mediatizada. Cada vez mais as conversas particulares que tenho com as pessoas não correspondem à imagem que tenho da sociedade, em termos abstractos. Há um desfasamento cada vez maior. As pessoas habituaram-se a ter tudo à disposição, aos passevites. Tudo tem que estar em papa para não ser preciso mastigar.
N. L. – Como sabe, vou muitas vezes ao Norte, passo lá a minha vida. Noutro dia engoli em seco. Estavam a falar de uma festa, em Agosto, e alguém disse: “Aqui esta menina tem agora umas coisas aqui da terra, tem ssim uma banda.” Responde o mestre de cerimónias: “Mas o quê? Ela vir cá com aquela gente toda? Bota-se aí um órgão que faz tudo só com uma pessoa e já está1” Ah, meu Deus, então percebi o nome de um cantor qualquer que faz aquilo e percebi que é disso que eles gostam! Tenho ido a quase todas as feiras do Norte, por curiosidade tenho andado à procura. Não encontrei nem os Madredeus, nem tu, nem eu, nem a Filipa Pais… É só Laura Pausini, que é o que está a dar. A sensação que me dá é que estou a tentar que não se mate, que não desapareça uma cultura e não estou a sentir o retorno das pessoas que estão directamente ligadas a essa cultura moribunda. Têm vergonha. Uma vez, em Duas Igrejas, disse-me assim um rapaz: “Então mas você gosta disto? O que é que isto tem que as outras cidades não têm? Isto é um atraso de vida!” Era um rapaz novo, do ensino secundário, que odiava a música e queria era vir para Lisboa.