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Vários – “Gala Dos Artistas Contra O Mal Do Século, No Coliseu de Lisboa – A Arte E A Sida”

Secção Cultura Domingo, 03.02.1991


Gala dos Artistas contra o mal do século, no Coliseu de Lisboa
A Arte E A Sida



Realizada sexta à noite no Coliseu dos Recreios, a Gala dos Artistas contra a Sida alcançou plenamente o seu objectivo – ajudar a combater uma das pragas do século, a sida.
Organização perfeita, boa música e um público participativo contribuíram para que assim fosse. Sabe bem, quando a Arte se confunde com a Vida.

Casa cheia. Público diversificado. O programa apelava ao gosto de diversas camadas culturais e etárias. Sem distinções. Havia uma razão comum que a todos ligava – a vontade de lutar contra um flagelo que a todos diz respeito. Música e palavras transmitiram a mensagem que importava: tentar a todo o custo vencer o mal, o medo e a incompreensão. Não se tratou propriamente de uma festa – nada havia para festejar -, mas tudo foi feito com alegria.
Meia hora depois do programado (única falha sensível de uma organização impecável), actuou a Orquestra de Jazz do Hot Clube de Portugal, com um reportório “mainstream” adequado às circunstâncias. Actuação calorosa que recolheu os primeiros aplausos da noite.
Quando Herman José subiu ao palco, como apresentador do espectáculo, foi o delírio. Esperava-se a habitual torrente de piadas, o humor delirante, a irreverência. Herman compreendeu que a ocasião não se prestava a excessos, optando por um registo mais discreto. Brincou quando devia brincar. Foi sério quando a gravidade do tema o justificava. Só não resistiu quando, a propósito de alguns estampidos na amplificação sonora, afirmou tratar-se de uma pequena homenagem aos mísseis “Patriot”. De resto, ao longo das quase três horas que durou a Gala, conseguiu evitar momentos mortos.
Dona Amália Rodrigues desta vez não cantou. “Sou uma pessoa muito atrapalhada” – começou por dizer. Não é nada, D. Amália. Disse o que sentia, com o coração, como costuma fazer sempre. Por isso a amamos. Por isso não tem nunca que se sentir atrapalhada. Apresentou a sua amiga Line Renaud, presidente da “Associação dos Artistas Franceses contra a SIDA” que, na ocasião, dissertou sobre o combate à doença. Seguiu-se um caudal de boa música. Primeiro, o dueto pianístico de Pedro Burmester e Mário Laginha, fluido como um rio, aliando a intensidade emocional do Romantismo a estruturas rítmicas próximas do Minimalismo.

O Corpo E A Voz

Maria de Medeiros surgiu para ler, tímida e belíssima, um texto de José Saramago. Menos tímido, bastante menos, era o mini-vestido negro que envergava. Depois, o terramoto. A Arte Absoluta. Na voz, na Alma, no corpo, em tudo, de Maria João. A cantora portuguesa, que vive no estrangeiro (somos um país mimoso e pequenino que não consegue suportar aquilo que é grande), encheu o recinto com a sua voz e uma presença avassaladora. Quando canta Maria João vive, no sentido literal do verbo, a liberdade total. Acompanhada por Bernardo Sassetti ao piano e Carlos Bica no contrabaixo, cantou um tema tradicional português. Depois, tudo – o gemido, o ritmo da respiração, os graves másculos subindo em vertigem até à ternura de uma mulher no Céu. Os jogos, a intuição fulgurante, as piscadelas de olho a Meredith Monk e Billie Holiday, os Blues, o Amor, o Corpo. Nas costas e ombros desnudos, muito brancos, luminosos, contrastando com o negrume das vestes. Erotismo em que a carne e a alma se confundem e são a própria essência da mulher. Na fila de trás, uma senhora queixava-se porque não conseguia perceber bem as palavras.
Lena d’Água, logo a seguir no alinhamento do espectáculo, tinha de ressentir-se da comparação. Mesmo assim, foi de certo modo surpreendente a forma como a intérprete soube puxar as pessoas das alturas superiores onde ainda flutuavam, atraindo-as para os terrenos onde se sente mais à vontade. Cantou, acompanhada ao piano por Pedro Osório, duas canções, ambas tristes: “Não é fácil o amor”, de Janita Salomé e “Chanson Triste” composta por Henry / Marie LeJeune, no século passado, Masculino / Feminino a jogar às escondidas.
Olga Pratts trouxe para o Coliseu o dramatismo da música de Astor Piazolla, sensual e dolorida, obrigando a repensar o termo “tango”, fechando com chave de ouro a primeira parte da Gala.

Perdidamente

O maestro José Rodrigues dirigiu de forma exuberante o coro açoriano Eduardo Machado de Oliveira que acompanhou os solistas Teresa Salgueiro (MadreDeus), Pedro Mosquitela e Theresa Maiuko (única dama de branco), esta cantando a solo logo de seguida. Depois contaram-se armas, que é como quem diz, preservativos, com Herman José contando a história daquele senhor já de idade mas prevenido que comprou a colecção inteira, para depois se referir com ternura “a todas as pessoas que amamos e, porque não dizê-lo, que comemos”.
Paulo de Carvalho cantou sozinho uma canção, dando lugar à voz e guitarra de Sérgio Godinho, outro dos momentos altos do espectáculo. “Alice no País dos Matraquilhos”, “Lisboa que Amanhece”, histórias nostálgicas das misérias quotidianas do nosso desencanto. Disse que “A Vida é a Grande Desforra do Corpo” vingando-se “de tudo aquilo que o quer matar”.
Palavras em que todos acreditaram antes de o Coliseu explodir com o rock dos GNR e dos Trovante. Os primeiros provocatórios como sempre, com “Dunas”, “Morte ao Sol” e “Vídeo Maria”, os segundos interpretando “Que Assim Seja”, “Peter’s” e “125 Azul”. Finalmente a despedida apoteótica, com Lena d’Água, Teresa Maiuko, Paulo de Carvalho e Sérgio Godinho juntando-se a Luís Represas e restantes Trovante para cantar “Perdidamente” as palavras de Forbela Espanca. Enquanto o público ia abandonando a sala, alguns adolescentes pulavam ainda de contentamento. Para eles não há vírus capaz de vencer a alegria.

Fernando Magalhães no “Fórum Sons” – Intervenção #139 – “Hammill – um manifesto (MárioZ)”

#139 – “Hammill – um manifesto (MárioZ)”

MárioZ
08.11.2002 160455
Deparei com um texto-manifesto do Peter Hammill algures na net e decidi postá-lo aqui. Acho que exprime com felicidade a essência do que é o seu trabalho. Originalmente o texto – manuscrito – foi publicado como introdução a uma compilação qualquer, creio que ainda nos anos 70.

Vision

The aspects of vision are many,
and in addition there are reflections, illusions and hallucinations.
If some can be shared that makes us less alone.
If the dark can be faced, that makes us less afraid.
If we accept sight, that makes us more visible.

I feel the city caging me like an animal;
I am crushed by the weight of the system,
but I can still raise a – human- shout against it.
I feel the tension of doubt surge in me,
the release of eye-on-eye love,
the loss of childhood idols and aspirations;

I clutch the transitory prizes of knowledge and unspoken faith.
I feel the torch in my hand,
The spark in my heart,
and I must carry both as long as I can.
We all have our torches;
but lone flame-bearers do not make a procession of humanity.

It has been, and remains, my hope that through songs
vision can be shared and enhanced.
As for me, disappearing like the Cheshire Cat
with hardly even my smile intact,
I can still look at you only through the camera.
There is more urgent vision than that.
Listen to yourself.

Saudações

Mário

__________________
If I gave you just a little song
would that be enough
to save your life
or is the knife already turning in my hand?

Fernando Magalhães
08.11.2002 170526
Caro Mário

Está aqui tudo, de facto, senão relativamente aos “conteúdos” (esses que o tempo e a experiência vão moldando e transformando), pelo menos em relação às intenções e orientação geral da obra de PH.

O texto é, nesse aspeto, luminoso.

O problema com que já te deves ter deparado (o mesmo com que eu me deparei e deparo, de resto…) tem a ver com um “problema” com que todos os fãs de Hammill se debatem: por um lado a vontade imensa de partilhar esta luz imensa que jorra da obra musical e poética do autor em questão, por outro, e isto pode ser frustrante, a noção de que é impossível conseguir esta partilha com quem ainda não INTERIORIZOU todo o universo hammilliano que, em última análise, sendo de uma UNIVERSALIDADE quase heroica, começa por ser uma EXPERIÊNCIA PESSOAL INTENSÍSSIMA, de COMUNICAÇÃO com as palavras e a música.

Como tu bem disseste aqui há dias, a música e os poemas de PH revelam-se no contacto direto (interior), na sensação de identificação que se estabelece entre ele, autor, e cada um de nós, recetor/ouvinte/leitor.

Só se gosta verdadeiramente da obra de PH e dos VDGG quando chegamos aquele ponto em que achamos que esta música e estas palavras nos pertencem, nos transmitem qualquer coisa de vital, como se fossem um espelho da nossa própria humanidade.

É impossível apreciá-los de FORA, como também decerto já te apercebeste. Podemos achar a música interessante, original, forte, etc etc etc, mas o clique apenas acontece quando tem lugar o tal sentimento de identificação.

Hammill atinge o inconsciente (Jung chamou-lhe o ULTRA-consciente…). O milagre está em que a sua voz, a sua poesia e o seu génio enquanto compositor (e, já agora, pianista, guitarrista…), constituem as ferramentas ideais para a transmissão dessa tal VISÃO enunciada no texto que transcreveste.

De resto, tudo o que acabei de escrever, está bem explícito nesse manifesto – o desejo de partilha, mas também a distância, a solidão e o isolamento…

Penso que, por esta altura, já compreendes os motivos que me levam a considerar o Peter Hammill o maior músico/compositor da música popular dos tempos atuais (numa edição da Mojo comparavam-no, em importância, ao F. Zappa e a…Picasso!!!).

Tudo o mais é segredo. Sagrado. Ou…

“the least we can do is wave to each other”

saudações hammillianas

FM

Fernando Magalhães
08.11.2002 170531
Faltou acrescentar que esta identificação/comunicação a que me refiro é de uma natureza algo diferente, e mais profunda, do que aquela que em geral se estabelece com a obra da maioria dos músicos (por melhores que sejam) pop.

Ela funciona ao nível do mito, dos arquétipos psíquicos do homem, daí a “pancada” que sentimos no embate (no bom sentido) com os sons e as palavras de Hammill.

“A Plague of lighthouse keepers” (e, numa outra perspetiva, a sequência “Gog/Magog”, de “In Camera”) leva-nos a subir até à mais alta das montanhas, à mais alta das solidões (“The tower”, repara…). Nietzsche, de resto, também esteve lá.

FM

Fernando Magalhães
08.11.2002 180626
Passando do PH para os MAGMA, estou curioso em saber a tua reação. O CHRISTIAN VANDER é outra figura (e esta assumidamente Nietzschiana…), mas no sentido da magia negra (pela qual, diga-se de passagem, o PH também se interessou nos primeiros anos de carreira, parece que os outros músicos dos VDGG andavam um bocado assustados, como já li algures…). A música dos MAGMA (que o PH ouvia e apreciava) é totalitária e assustadora, mas num sentido diferente da do PH. Imagina se Wagner fizesse parte de um grupo rock…

Depois há a língua inventada por ele, os concertos de oito horas, os solos arrasadores de bateria, a vertente Coltraniana…

Já ouviste alguma coisa?

FM

Sting – “The Soul Cages”

Pop-Rock 23.01.1991


A INSOFISMÁVEL CLAREZA DO SISTEMA “Q”

STING
The Soul Cages
LP, MC e CD, A&M, distri. Polygram



Desta vez parece que foi difícil. Ou, pelo menos mais difícil que em ocasiões anteriores. É o próprio Sting quem o diz. A inspiração não vinha. Somente ao nível das letras, cuidado, que no resto, tudo bem. Ele esforçava-se, esforçava-se, mas não havia esforço que lhe valesse. Era sempre o vazio. Pelo sim pelo não, enquanto se prolongava a espera angustiada, o homem dos Police foi adiantando trabalho: alugou estúdio (em Paris), alugou músicos (Manu Katche – bateria; Kenny Kirkland – teclados; e Dominic Miller – guitarra), alugou produtor (Hugh Padgham). A música começou a brotar em grandes torrentes de criatividade. Ele eram melodias, acordes, harmonias, introduções (musicais), codas, contrapontos, enfim, o compêndio inteiro do “Escreva você mesmo Uma Canção”, que não paravam de jorrar da cabeça do compositor. Mas, quanto a letras… o vazio persistia em não se deixar vencer. Sting tentou tudo, para alterar tão comprometedora situação: passeou, tomou banhos de mar, enfim, a acreditar nas suas palavras, passou grande parte do tempo a caminhar ao acaso por praias áridas, meditando sobre o destino e a inutilidade da existência. Talvez por isso, grande parte dos temas deste álbum se relacione de algum modo com o mar. Colocada de lado a hipótese de crise da meia idade, terá concluído que “não pode ser só isso”, que “é preciso ir mais fundo, ao princípio de tudo!…”. A resposta encontrava-se escondida algures nos meandros mais recônditos da memória. Imagens de um certo barco… de um rio que desaguava no mar… (há algum que não desague?…). Então, de repente, no seu espírito, fez-se luz. E fez-se o disco. Disco típico de quem não tem nada de novo para dizer. Sting deveria ter dado ouvidos ao silêncio e esperar um pouco mais antes de gravar. Ao invés, optou por esconder a falta de inspiração, recorrendo à inventividade do produtor e às requintadas técnicas de estúdio, incluindo o misterioso e revolucionário sistema Q. O sistema Q é um sofisticado produto da nova geração áudio, que permite, utilizando qualquer aparelhagem estereofónica convencional, reproduzir na perfeição um palco sonoro tridimensional. Pensava-se que qualquer boa aparelhagem conseguisse tal proeza, mas afinal não passava de uma patranha bem engendrada. Reconheça-se que o som Q atinge de facto uma pureza e claridade excepcionais. A que Sting, infelizmente não deu, em termos musicais, a resposta adequada. Nove temas chegam para mostrar que o autor dos trabalhos anteriores, “The Dream of the Blue Turtle” e “Nothing but the Sun”, está realmente em crise. Lança mão a tudo para tentar esconder que o rei vai nu, mas em vão. Há a já citada produção (irrepreensível) e, sobretudo, o truque actualmente na moda, da ornamentação exótica e mais ou menos “world”, cujo mote é dado logo de entrada, com “Island of Souls”, que julgaríamos pertencer a um qualquer disco de Stephan Micus. Para o efeito, recrutaram-se o oboé de Paola Paparelle e a gaita-de-foles de Kathryn Tickell. O saxofone Branford Marsalis limita-se a ser mais um enfeite que passa despercebido. Porém, à medida que cada tema se vai desenvolvendo, é o deserto de ideias, encoberto por nuvens de misticismo, com constantes alusões a “barcos que singram em direcção a terra de sonho”, oceanos imensos, anjos que tombam do céu, luz, muita luz e am consequente auto-iluminação. O pior é a banalidade das canções, quase todas baladas de tempo médio em que o cantor se limita a despejar as palavras e a alinhavar meia dúzia de frases melódicas. Excepções são o instrumental que abre o segundo lado, “Saint Agnes and the Burning Trian”, tecido por uma guitarra acústica desenhando arabescos flamenco-arabizantes sobre um arranjo de extrema limpidez, e o tema seguinte, “The Wild, Wild Sea”, em que, por uma vez, a interpretação de Sting consegue ser convincente. De resto, assiste-se à queda do império, aparentemente sólido, edificado à custa dos anteriores álbuns, substituído pela ditadura asséptica do sistema Q.
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