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Vários – “Etnoscopias – ECM” (editora)

fim de semana >> sexta-feira >> 07.05.1993


Etnoscopias


Jan Garbarek é o fio de prumo e o fio condutor das muitas músicas que se espraiam pela ECM. O saxofonista e compositor norueguês perfila-se como um catalisador das propostas não jazzísticas que o selo de Manfred Eicher desde sempre vem apresentando. Não espanta, nesta medida, que lhe tenha cabido a honra de assinar o disco número 500 do catálogo, através de “Twelve Dreams”, por sinal um dos seus piores discos de sempre. Mas festa é festa e há maneiras piores de apagar as velas.
Do “free” que caracterizava as primeiras obras a uma postura contemplativa que em absoluto renega a improvisação, longo e tortuoso tem sido o trajecto de Garbarek no seio da ECM. Se nos congirmos ao território, repleto de armadilhas e decorativismos enganadores, dos sons indirecta ou directamente conotáveis à “world music” (designação que nada diz mas que facilita a arrumação da música que não é rock nem jazz nem provém da Ingalterra ou dos Estados Unidos…), Jan Garbarek lá está, sonoplasta das culturas não ocidentais e não anglo-americanas do mundo.



A perspectiva sob a qual Garbarek aborda as diversas linguagens tradicionais é, no mínimo, curiosa. Não se trata, como no caso dos Oregon, de qualquer tipo de fusão, mas antes do confronto e do diálogo entre códigos diferentes num processo de estimulação mútua. O resultado desta estratégia pode ser apreciado em obras como “Making Music”, com o tocador de tablas inidiano Zakir Hussain, “Song for Everyone”, com o violinista damesma nacionalidade, Shankar, ou, mais recentemente, com o cantor paquistanês Ustad Fateh Ali Khan. A vertente étnica planificada e colorida segundo uma visão cinematográfica. Enredos ancestrais projectados em cinemascope e technicolor.
Mas é na reconversão do folclore do seu próprio país para forma contemporâneas que Jan Garbarek alcançará uma maior coerência estética entre o lirismo do seu saxofone e as raízes tradicionais.
Experiência que o músico aprofundará em “Legendo f the Seven Dreams” e, em estado de graça, na liturgia “Rosensfole”, inteiramente baseada em temas da tradição medieval norueguesa que a cantora Agnes Buen Garnas interpreta à beira do sublime. Em “I Took up the Runes”, na companhia de outra cantora tradicional, Ingor Antte Ailu Galp, é já visível a cedência ao “bonito e agradável” em detrimento do sentido do sagrado. Compromisso com uma fórmula que terá resultado em termos comerciais, mas que no disco 500, “Twelve Moons”, se traduz num festival de lugares-comuns e piscadelas de olho ao gosto dominante, não faltando sequer as vozes, neste caso perfeitamente dispensáveis, de Agnes Buen Garnas e Mari Boine Persen, de “Gula Gula”, editado na Real World.
Felizmente as incursões pelas paisagens musicais exóticas do planeta não se esgotam num glaciar da Noruega. Outros músicos apresentam obra consistente e uma alternativa, sonora e conceptual, ao papado de Garbarek. Entre eles, três nomes se destacam, com discografias plurais na ECM: Shankar, Steve Tibbetts e Stephan Micus, aos quais se poderão acrescentar os de Jon Hassell, em “Power Spot”, e de Egberto Gismonti, em “Kuarup”, inspirado nos sons da Amazónia. Num nicho separado habita, resplandecente, o álbum “Nafas”, de Rabi Abou-Khalil, na companhia dos altos dignatários da corte “etno”, Glen Velez, Selim Kusur e Setrak Sarkissian. Um dos monumentos mais belos alguma vez erigidos à música árabe.



Shankar, o “virtuose” do violino de dois braços, alterna na sua obra o excelente com o péssimo. No cume da montanhya respiram “Who’s to Know” e “Pancha Nadai Pallavi”, fiéis na forma e no estilo ao arquétipo da “raga” indiana. O encontro feliz da Índia com a música pop ocorre em “Nobody Told Me” e “Song for Everyone”. O descalabro ficou reservado para o projecto Epidemics, no qual a pop vestida de “saari” desce ao nível dos filmes indianos que há alguns anos esgotavam as lotações do Odeon.
Sem descidas ao pantanal está a totalidade da obra assinada pelo guitarrista Steve Tibbetts, algures entre o intimismo e misticismo de John McLaughlin do príodo Shakti, o rock de alta tensão e a levitação nas brisas orientais. Se “Yr” e “Big Map Idea” raramente condescendem em sair da beatitude, já “Safe Journey”, “Northern Song” e “Exploded View” são capazes de proporcionar genuínas descargas de adrenalina.
Wuem preferir, pelo contrário, permanecer no nirvana, pelo menos durante o tempo que demora uma audição, tem à sua disposição o incenso, as orações e o altar de Stephan Micus. Na obra deste compositor de ascendência bávara, a música nasce a partir de um profundo acto de interiorização a par do estudo aprofundado dos timbres de instrumentos exóticos recolhidos um pouco por todo o mundo. Desta confluência entre espírito e forma (enquanto “molde”), entre o silêncio e a vibração pura, entre o canto regido pelos cânones tradicionais e a manipulação de objectos sonoros como vasos (“Wings over Water”) ou pedras (“The Musico f Stones”), a arte de Stephan Micus atinge o ponto máximo de depuração no minimalismo zen de “Koan”, nas vagas de cristal de “Ocean” e no sorriso de felicidade que se abre em “To the Evening Child”.
Desperto para a eternidade, alquimista da matéria sonora, asceta vagueando por entre a pluralidade e a voragem consumista do mundo, Stephan Micus devolve-nos a simplicidade e ensina-nos a escutar as águas da fonte.

Vários – “Etnoscopias” (editora | ecm)

fim de semana >> sexta-feira >> 07.05.1993





Etnoscopias


Jan Garbarek é o fio de prumo e o fio condutor das muitas músicas que se espraiam pela ECM. O saxofonista e compositor norueguês perfila-se como um catalisador das propostas não jazzísticas que o selo de Manfred Eicher desde sempre vem apresentando. Não espanta, nesta medida, que lhe tenha cabido a honra de assinar o disco número 500 do catálogo, através de “Twelve Dreams”, por sinal um dos seus piores discos de sempre. Mas festa é festa e há maneiras piores de apagar as velas.
Do “free” que caracterizava as primeiras obras a uma postura contemplativa que em absoluto renega a improvisação, longo e tortuoso tem sido o trajecto de Garbarek no seio da ECM. Se nos congirmos ao território, repleto de armadilhas e decorativismos enganadores, dos sons indirecta ou directamente conotáveis à “world music” (designação que nada diz mas que facilita a arrumação da música que não é rock nem jazz nem provém da Ingalterra ou dos Estados Unidos…), Jan Garbarek lá está, sonoplasta das culturas não ocidentais e não anglo-americanas do mundo.



A perspectiva sob a qual Garbarek aborda as diversas linguagens tradicionais é, no mínimo, curiosa. Não se trata, como no caso dos Oregon, de qualquer tipo de fusão, mas antes do confronto e do diálogo entre códigos diferentes num processo de estimulação mútua. O resultado desta estratégia pode ser apreciado em obras como “Making Music”, com o tocador de tablas inidiano Zakir Hussain, “Song for Everyone”, com o violinista damesma nacionalidade, Shankar, ou, mais recentemente, com o cantor paquistanês Ustad Fateh Ali Khan. A vertente étnica planificada e colorida segundo uma visão cinematográfica. Enredos ancestrais projectados em cinemascope e technicolor.
Mas é na reconversão do folclore do seu próprio país para forma contemporâneas que Jan Garbarek alcançará uma maior coerência estética entre o lirismo do seu saxofone e as raízes tradicionais.
Experiência que o músico aprofundará em “Legendo f the Seven Dreams” e, em estado de graça, na liturgia “Rosensfole”, inteiramente baseada em temas da tradição medieval norueguesa que a cantora Agnes Buen Garnas interpreta à beira do sublime. Em “I Took up the Runes”, na companhia de outra cantora tradicional, Ingor Antte Ailu Galp, é já visível a cedência ao “bonito e agradável” em detrimento do sentido do sagrado. Compromisso com uma fórmula que terá resultado em termos comerciais, mas que no disco 500, “Twelve Moons”, se traduz num festival de lugares-comuns e piscadelas de olho ao gosto dominante, não faltando sequer as vozes, neste caso perfeitamente dispensáveis, de Agnes Buen Garnas e Mari Boine Persen, de “Gula Gula”, editado na Real World.
Felizmente as incursões pelas paisagens musicais exóticas do planeta não se esgotam num glaciar da Noruega. Outros músicos apresentam obra consistente e uma alternativa, sonora e conceptual, ao papado de Garbarek. Entre eles, três nomes se destacam, com discografias plurais na ECM: Shankar, Steve Tibbetts e Stephan Micus, aos quais se poderão acrescentar os de Jon Hassell, em “Power Spot”, e de Egberto Gismonti, em “Kuarup”, inspirado nos sons da Amazónia. Num nicho separado habita, resplandecente, o álbum “Nafas”, de Rabi Abou-Khalil, na companhia dos altos dignatários da corte “etno”, Glen Velez, Selim Kusur e Setrak Sarkissian. Um dos monumentos mais belos alguma vez erigidos à música árabe.
Shankar, o “virtuose” do violino de dois braços, alterna na sua obra o excelente com o péssimo. No cume da montanhya respiram “Who’s to Know” e “Pancha Nadai Pallavi”, fiéis na forma e no estilo ao arquétipo da “raga” indiana. O encontro feliz da Índia com a música pop ocorre em “Nobody Told Me” e “Song for Everyone”. O descalabro ficou reservado para o projecto Epidemics, no qual a pop vestida de “saari” desce ao nível dos filmes indianos que há alguns anos esgotavam as lotações do Odeon.
Sem descidas ao pantanal está a totalidade da obra assinada pelo guitarrista Steve Tibbetts, algures entre o intimismo e misticismo de John McLaughlin do príodo Shakti, o rock de alta tensão e a levitação nas brisas orientais. Se “Yr” e “Big Map Idea” raramente condescendem em sair da beatitude, já “Safe Journey”, “Northern Song” e “Exploded View” são capazes de proporcionar genuínas descargas de adrenalina.
Wuem preferir, pelo contrário, permanecer no nirvana, pelo menos durante o tempo que demora uma audição, tem à sua disposição o incenso, as orações e o altar de Stephan Micus. Na obra deste compositor de ascendência bávara, a música nasce a partir de um profundo acto de interiorização a par do estudo aprofundado dos timbres de instrumentos exóticos recolhidos um pouco por todo o mundo. Desta confluência entre espírito e forma (enquanto “molde”), entre o silêncio e a vibração pura, entre o canto regido pelos cânones tradicionais e a manipulação de objectos sonoros como vasos (“Wings over Water”) ou pedras (“The Musico f Stones”), a arte de Stephan Micus atinge o ponto máximo de depuração no minimalismo zen de “Koan”, nas vagas de cristal de “Ocean” e no sorriso de felicidade que se abre em “To the Evening Child”.
Desperto para a eternidade, alquimista da matéria sonora, asceta vagueando por entre a pluralidade e a voragem consumista do mundo, Stephan Micus devolve-nos a simplicidade e ensina-nos a escutar as águas da fonte.

Jan Garbarek & Ustad Fateh Ali Kahn – “Ragas & Sagas”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 25.11.1992


JAN GARBAREK & USTAD FATEH ALI KAHN
Ragas & Sagas
CD ECM, distri. Dargil



O capítulo mais recente na demanda de Jan Garbarek de uma linguagem universal, “Ragas & Sagas” desvenda algumas pistas da viagem. Neste compositor e saxofonista norueguês, o rótulo “world music” reveste-se de um significado muito particular. Garbarek procura, sem dúvida, sínteses e pontes entre Ocidente e Oriente. Mas mais importante do que a junção e a proximidade são o diálogo, a relação, a descoberta de jogos possíveis. Em “Rosensfole” (abordagem à música antiga da Noruega centrada na voz de Agnes Buen Garnas, retomada em menor escala no álbum seguinte, “I Took up the Runes”, desta feita com a colaboração vocal de Marie Boine Persen numa versão de “Gula Gula”) como nests ragas e sagas assinadas de parceria com o cantor paquistanês Ustad Fateh Ali Khan (não confundir com Nusrat Fateh Ali Khan, também cantor., membro da seita “sufi”, de origem árabe, que participou no mostruário “Passion”), o discurso do saxofone permanece singular, resistindo ao apelo da fusão com os universos estéticos sucessivamente convocados para estúdio.
Seja nos dois discos mencionados (a que poderemos acrescentar a inda “Legendo f the Seven Stones”) ou em anteriores colaborações do músico com o compositor grego Eleni Karaindrou, o tunisiano Anouar Brahem ou o indiano Shankar, é imediatamente reconhecível o timbre, uma lógica e um tempo melódicos específicos do seu sopro. Procure-se então nestes exercícios de panculturalismo musical uma outra direcção, detectável a partir da óbvia estimulação mútua entre os participantes em causa. A partir daqui assume especial relevo a questão da referida linguagem universal que Garbarek parece tatear sem contudo ousar por ora a dissolução no todo. Não por acaso, Garbarek estudou latim e grego antigo, passando depois parao árabe e, por fim, o sânscrito, o mais antigo código linguístico, com vestígios escritos, conhecido. Eis-nos chegados ao domínio da palavra – vibração primordial, o Verbo criador de todas as músicas. O ponto de partida foi, em “Rosensfole”, a Noruega, em cuja música Garbarek reconheceu elementos extra-europeus, mais concretamente conexões com a Índia, Balcãs e Ásia Menor. Ele próprio define as ornamentações vocais de Buen Garnas como próximas do estilo turco / árabe. “Ragas and Sagas” surge assim como o passo seguinte e coerente desta deslocação para Oriente. Nele são exploradas técnicas vocais indianas, como o “dhrupad” e o “khyal”, este último oferecendo vastas possibilidades de improvisação, as quais facultam a Garbarek terreno propício à explanação da sua especificidade estilística nos saxofones soprano e tenor. O diálogo destas semi-improvisações decorre sobre um contexto harmónico inconfundivelmente indiano, criado pela tabla e sarangi. Quatro ragas compostas por Ali Khan e uma “saga” escrita pelo norueguês abrem a porta ao imprevisto, jogando alternadamente na semelhança e na diferença. Pelo caminho, Jan Garbarek vai traçando as linhas e edificando os alicerces de um novo mapa e de uma obra ímpar na arte musical deste século. (8)