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UHF – “Este Filme / Amélia Recruta”

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 4 JULHO 1990 >> Videodiscos >> Pop

CONTRA OS CANHÕES


UHF
ESTE FILME/AMÉLIA RECRUTA
Maxi, Ed. Edisom



Este disco prova-o. Os UHF assumem-se definitivamente como o principal grupo português de rock. Do verdadeiro, direto, descomplexado, mandando às urtigas quem neles insiste em ver D. Sebastião ou então, frustradas as tontas expetativas, uma corja de vendidos. Não são nem uma coisa nem outra. Nem se preocupam muito com isso. O novo disco é o melhor da banda, dos últimos tempos. A vários níveis. A começar pela capa, uma fotografia simulando um anúncio de filme, retratando a preto e branco uma cena de guerra. “Este Filme” e a legenda aposta – “Intenso e verdadeiro, humor… A história de um soldado”. Por baixo a respetiva ficha técnica. O cartaz, sobrepondo-se à impressão de uma entrevista a António Manuel Ribeiro. Na contracapa, um plano ampliado da mesma fotografia, nas cores da bandeira nacional.
Quatro temas. Do lado A o já citado “Este Filme” e “Portugal dos Pequeninos”. O primeiro um tema lento e balanceado em que AMR mostra até que ponto tem evoluído como vocalista. Seguro, cantando como se tudo dependesse das palavras. Cantando-se a si próprio, como quase sempre, e ao país que a seguir retrata como o “dos pequeninos”. Este último o mais facilmente encostado ao som habitual da banda. O outro lado é excelente. “Amélia Recruta” é a canção mais forte do disco. Um “hit” inevitável, disparando rock ‘n’ roll sobre a instituição militar, com uma convicção eufórica e uma melodia irresistível. O “Rock de Cá” é uma crítica irónica e não muito feroz ao meio musical lusitano. Que, bem feitas as contas, não existe como tal.
É também ao nível dos arranjos que a banda de Almada faz questão de afirmar a diferença. O modo como o saxofone de Renato Júnior é projetado para a boca de palco, liberto em contorções furiosas, as intervenções guitarrísticas de Rui Rodrigues e Renato Gomes, este como convidado especial em “O Rock de Cá”, os teclados, imitando marimbas neste último tema, são alguns exemplos sintomáticos de que a banda de Almada não está disposta a dormir sobre os louros alcançados. Liberta de fantasmas, o povo é finalmente o único destinatário das canções e palavras do seu líder carismático, o mesmo que reconhece frontalmente serem os UHF o seu projeto a solo. Palavras e melodias para serem cantadas e assobiadas na rua pela grande massa anónima, a mesma que os levou ao lugar ímpar que ocupam, por direito próprio, no panorama musical luso. Quanto às polémicas e acusações que regularmente se levantam à sua volta, “os lobos uivam, a caravana passa”. Quer queiramos quer não, há que continuar a contar com os UHF e desde já como estes novos “argumentos e bandas sonoras” assinados por António Manuel Ribeiro e interpretados pelo “cast” UHF.

António Manuel Ribeiro – “António Manuel Ribeiro E Os Gigantes Do Nada”

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 13 JUNHO 1990 >> Videodiscos >> Na Capa


ANTÓNIO MANUEL RIBEIRO E OS GIGANTES DO NADA

António Manuel Ribeiro recusa a imagem do herói e mártir incompreendido, sobrevivente de uma história atribulada e sem garantias de final feliz – a do rock português. Não se considera corrompido pelo sistema e promete gravar canções dos UHF acompanhados de orquestra sinfónica.



PÚBLICO – A sua imagem como músico de rock é a do mártir incompreendido, uma espécie de Jim Morrison português…
António Manuel Ribeiro – Tenho muito pouca vontade de ser mártir. Sou de facto sobrevivente, mas não me identifico com qualquer tipo de movimento. A minha posição é extremamente individualista. Muitas vezes meti-me em lutas e, quando olhei para trás, via que era um general sem tropas. Já percebi as teias manhosas em que se enreda grande parte da música portuguesa. Não estou metido em nada. Não tenho nada a ver com isto.
P. – Ultimamente tem dado a imagem de homem bem instalado na vida. Casou, dá entrevistas à “Nova Gente”… É possível conciliar esta imagem com aquela de rebeldia geralmente associada aos UHF?
R. – Os UHF foram, são e serão uma banda de rock duro, enquanto acharmos que é assim que deve ser. Não é incompatível com entrevistas na “Nova Gente”. Considero isso apenas o cumprir das marcações normais que a editora faz. Aceito-as como parte do meu trabalho, mais nada e muitas vezes nem tenho controlo sobre as coisas que se passam, mas também não me preocupo. Já houve uma fase em que fui ingénuo. Tinha a vontade de me explicar, mas cada vez que isso acontecia gozavam comigo. Essa fase passou.
P. – Os UHF consideram-se uma banda da oposição. Por outro lado são das que mais vende. Luta contra o sistema mas aceita as vantagens e o lucro que este lhe proporciona… Os Xutos e Pontapés andam a publicitar a Sumol…
R. – Nunca faríamos anúncios a um refrigerante. Faríamos sempre a uma marca de “whisky”… Agora a sério, cada um de nós vive daquilo que ganha. Não estamos corrompidos. Continuamos o mesmo tipo de pessoas. Por exemplo, em relação à nossa editora, não somos oposição mas assumimos uma posição crítica.
P. – O cinismo é necessário?
R. – Sou muito cínico, sobretudo a negociar. Quando me sento à mesa para negociar qualquer tipo de contrato tenho de levar a água ao meu moinho. Tenho sempre que levar a minha avante.
P. – O intimismo das letras pode ser uma fuga possível?
R. – É verdade. Mas vou dizer outra coisa: “Noites Negras de Azul” e “Lugares Incertos”, ambos de 88, eram álbuns que falavam sobretudo do amor, eram intimistas. Agora que casei já não falo do amor. É um bocado a minha filosofia de vida. Gosto de andar ao contrário. Gosto pouco de andar em rebanhos, de pensamento, de atitudes ou de vestuário… Como já disse, sou um individualista.
P. – Que vai envelhecendo… Será como o Mick Jagger, aos 50 anos ainda a tocar rock?
R. – Não estou preocupado com isso. Não vou abandonar. Depois de uma gravação fico vazio, em ressaca, como se tivesse parido. Outras vezes fico mesmo farto… Mas gosto disto.
P. – Os UHF têm permanecido quase sempre na crista da onda. Qual o segredo?
R. – Digamos que têm andado sempre por lá perto. Penso que temos feito um trabalho coerente. Se alguém não gosta, deite fora, aceitamos isso. Mas às vezes sinto o descalabro à minha volta. Somos gigantes do nada. As pessoas contam mentiras na imprensa. Também já o fiz. Hoje não estou interessado em fazê-lo. Não é nada bom para a música portuguesa. Estamos todos a viver de balões de oxigénio, fora os UHF e mais três ou quatro bandas que recusam essa inflação de mentiras.
P. – Que tipo de mentiras?
R. – Não quero entrar em pormenores. Digressões no estrangeiro que são falsas, “cachets” inflacionados e depois negociados com 30 por cento de desconto. Digressões neste país não há. Nunca houve. O que há são contratações que vão sendo aceites.
P. – Não têm projetos para o estrangeiro?
R. – Temos, claro. Não quero falar de concertos dos meus colegas no estrangeiro, mas tenho que dizer que foram quase sempre desastrosos. Os UHF são sinceros ao ponto de admitir já ter perdido dinheiro em atuações no estrangeiro. Tocamos em salas cheias… de emigrantes. Em Paris estavam 5 franceses entre 1500 pessoas. Fomos a Paris tocar para o Minho e Alentejo.
P. – Porque é que isso acontece?
R. – Porque em Paris existem outras 50 salas idênticas com concertos, à mesma hora. São outros meios. Para quê fazer como colegas meus, que dizem que fizeram espetáculos incríveis aqui e ali, em salas de 200 lugares?…
P. – Como situa os UHF perante a concorrência?
R. – Somos mal vistos. A maior parte das vezes, as pessoas, não digo que virem a cara, mas levam um certo tempo para nos enfrentar. Nos bares, na noite, nos concertos. Temos sido sempre colocados num gueto. Não é que queiramos passar por vítimas. Temos uma relação mais íntima e próxima do nosso público que a maior parte dos outros artistas portugueses da mesma área, que inflacionam uma certa pose e depois é tudo mentira.
P. – E a vossa relação com o público?
R. – As pessoas criaram uma imagem deturpada de nós. A imagem de rebeldia foi, confesso, vendida por mim. Hoje diz-se que estamos mais calmos. Não estamos. Há dias viemos de um concerto, andámos 400 quilómetros e fomos para a pândega em Lisboa. Chegámos a casa às cinco da manhã, virados do avesso. Os UHF têm um ouvido popular. Conseguem perceber o gosto do público. É isso que queremos: compor canções que todos possam trautear. Há por aí projetos musicais engraçados mas totalmente afastados do público. Não vendem. Não ponho de parte a hipótese do rock português pura e simplesmente acabar. Acaba-se esta porcaria toda. As editoras andam de cabelos no ar sem saber o que fazer. Se calhar não há solução.
P. – Alguma vez pensou em trabalhar fora da área específica do rock?
R. – Gostaria de gravar um disco com canções dos UHF pouco conhecidas, trabalhadas com orquestra de modo a dar-lhes um cunho totalmente diferente.
P. – Que é para si o rock?
R. – É uma questão física… O apelo à dança. Permite a agressividade, a agressão. Pertenço a uma geração de agressão. Tinha 20 anos em 74. Antes dessa data e mesmo depois, só havia baladeiros. Ganhei aversão a esse tipo de música. Paz, amor e uma viola. “Hippismos” retardados. O Maio de 68 consumido fora de horas. Quando começámos, todos esses sujeitos estavam contra nós. Lembro-me de, uma vez, um digno cantor da nossa praça afirmar publicamente que os UHF não tinham direito cultural de ir à festa do “Avante. O rock, nessa altura, tinha toda a razão de ser.

UHF – “A Discoteca” (dossier / artigo de opinião)

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 14 MARÇO 1990 >> Videodiscos >> Pop


A DISCOTECA

UHF


Os UHF são um caso à parte no rock português. Numa já longa carreira iniciada há dez anos a reboque do movimento despoletado por Rui Veloso, o grupo soube sempre manter-se na linha da frente, fiel a um estilo e a uma imagem, cuidadosamente cultivados pelo seu líder incontestado e carismático, António Manuel Ribeiro. Dez anos foi o tempo que levou a construir o mito.



1979 é o ano da estreia discográfica com o álbum “Jorge Morreu”, destilando raiva e suor. Integravam a banda, além de António Manuel Ribeiro, Renato Júnior (guitarra), Américo Manuel (bateria) e Zé Carvalho (baixo). No ano seguinte, os UHF assinam contrato com a Valentim de Carvalho, que edita o single “Cavalos de Corrida”, primeiro hino da banda e enorme sucesso de vendas.
Em 1981, mais um estouro com o single “Rua do Carmo”. “Modelo Fotográfico”, um tema mais lento, passa mais discretamente. Ainda uma canção inédita, “Quem irá beber comigo esta noite?”, oferecida juntamente com os primeiros dez mil exemplares do novo álbum “À Flor da Pele”. O mini-álbum “Estou de Passagem” assinala a mudança para nova editora, a Rádio Triunfo, a par de mais um single, “Um Mau Rapaz”, e o longa-duração “Persona Non Grata”. Por esta altura, António Manuel Ribeiro assume o papel de mártir incompreendido, de herói lutando contra as injustiças do mundo, envergando a máscara de um Jim Morrison à portuguesa.
Toda a iconografia típica da mitologia rock serve para criar a imagem pretendida: o álcool e a droga, a dureza da estrada, os amores errantes, a violência, e uma cidade e um país demasiado pequenos para as grandes tragédias do espetáculo contribuem para engrandecer a figura do homem-só-coerente-até-ao-fim que é António Manuel Ribeiro. Mas o mais interessante é que o homem até é sincero.
O rock, do verdadeiro, do duro, foi desde sempre o veículo privilegiado para suportar musicalmente os discursos na primeira pessoa do singular do líder da banda da outra margem. O que ele desde sempre nos conta é, no fundo, a história da sua vida, feita de vivências quase sempre amargas e dolorosas – que as outras, as boas e alegres não têm grande interesse. António sabe disso, que é como quem diz, sabe-a toda e faz o que lhe pedem. A culpa não é dele, no fundo até é um otimista, mas já se sabe como estas coisas funcionam na cabeça das pessoas.
1983 é ano de novas mexidas na formação, com a entrada de Francis como segundo guitarrista e de Zé Matos, no baixo, substituindo Carlos Peres, que entrara entretanto para a banda – não se sabe exatamente quando porque a folha de promoção é omissa e, confesso, eu próprio não me lembro bem. Ao certo sabe-se que é deste ano o mini-álbum “Ares e Bares de Fronteira”. O ano seguinte é negro na carreira do grupo. O baterista Zé Carvalho sofre um acidente de automóvel e tem de ser substituído por Luís Espírito Santo. Zé Carvalho acaba mesmo por abandonar definitivamente. O novo homem dos batuques passa a ser Hipo. No baixo, Zé Matos troca com Fernando Delaère. Não querendo fazer humor negro, pode dizer-se que a fatalidade contribuiu ainda mais para “fazer” o nome dos UHF. Mas pronto, o pior já passara e os UHF voltam-se para procedimentos mais suaves. Um single intitulado “De Carrocel” e uma participação no álbum infantil “Abbacacadabra” são sintomáticos desta nova atitude. Por outro lado, o álbum deste ano chama-se “Puseste o Diabo em mim”, o que contradiz um pouco o acima enunciado.
Parece que o lugar de baterista nos UHF é o mais disputado de todos. Mais um Zé, desta vez Cadela, e Rui Velez procuram aquecer o lugar, vamos a ver se o conseguem. No álbum, “Ao Vivo em Almada – No Jogo da Noite”. Em 1986, que é o ano que vem a seguir, há mais mudanças, mas começo a ficar um pouco farto e confuso no meio de tantos nomes. Afinal, os UHF não são uma outra designação para AMR (António Manuel Ribeiro)? É neste ano que os AMR gravam um vídeo para o programa “1,2,3”, contendo o tema “Até às Tantas”. Já em 1987, o álbum de estreia a solo de António Samuel Caeiro, com título “É Hoje, Agora”, ao mesmo tempo que os XYZ passam a quinteto com a entrada para o baixo de Xana Sin e de Gil (sem apelido) para as teclas. O Luís Espírito Santo toma definitivamente (até ver) conta da bateria.
Contrato com a Edisom e mais dois singles “Na Tua Cama”, ainda por cima “Em Violência” e sobretudo indecentemente “Em Lugares Incertos”, como refere o título do mini-LP do mesmo nome. Tudo isto em “Noites Negras de Azul”, até agora o álbum mais recente. Mais alterações e confusões no entra-e-sai (salvo seja) da banda. No ano passado, saiu o maxi com três temas; “Hesitar”, “Esta Mentira à Solta” e “(Fogo) Tanto me Atrais”. É a fase (inevitável, na via sacra do estrelato) da introspeção e autoculpabilização. “Onde é que terei errado?”, “Terá valido a pena?” e outras angústias do estilo quando o dinheiro começa a “entrar” e a consciência a pesar. Que fazer? Desistir em nome da pureza de intenções, ou sacrificar o nome e a integridade conseguidos à custa de muito suor e sofrimento, em troca do infame e vil metal? A melhor solução é escrever novas canções relatando a grande infelicidade que é ter dinheiro e sucesso.