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Annette Peacock – “A Voz Da Liberdade” (concertos | antevisão | artigo de opinião | entrevista | discografia)

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 19 DEZEMBRO 1990 >> Pop Rock


A VOZ DA LIBERDADE

Não quer ser estrela nem que a considerem um objeto. Recusou tocar com David Bowie e Brian Eno – o sucesso não lhe diz nada. Prefere o prazer de um percurso solitário, sem perder o controlo da sua arte. Pôs os sintetizadores a cantar quando estes não tinham ainda sequer voz. Ao fim de 25 anos de carreira, acha que as pessoas estão aptas a compreendê-la. É o que veremos em Lisboa, onde atua na Aula Magna, na próxima sexta-feira.



PÚBLICO – Cresceu entre músicos de jazz, como Mingus ou Albert Ayler. A sua música, no entanto, parece afastar-se constantemente dessa linguagem. Ainda se considera uma intérprete de jazz?
Annette Peacock – Só em relação às minhas raízes, na altura em que escrevia música instrumental para ser tocada por improvisadores. Havia a responsabilidade de compor uma base musical que eles pudessem desenvolver. Preocupo-me sempre com a liberdade que os músicos têm, num contexto jazzístico. No meu caso pessoal, interessa-me a liberdade de que disponho para trabalhar elementos como a harmonia ou o ritmo, enfim os próprios elementos estruturais da música. Tudo isto está presente no idioma do jazz e só nesta medida é que fui por ele influenciada.
P. – As palavras desempenham um papel importante nas suas canções, em termos de significado e musicalidade. Escreve poemas, à maneira tradicional ou, pelo contrário, estes surgem a partir da voz e das técnicas vocais.
R. – Dou prioridade à música. O que surge em primeiro lugar é o ambiente musical. Às vezes parto de uma atitude ou de uma visão particular daquilo que quero dizer. A última coisa que me preocupa é o que vou fazer com a minha voz. Defino primeiro o que quero fazer e só depois como o irei fazer.
P. – Gravou há anos um disco com o seu ex-marido Gary Peacock e com Paul Bley, para a editora de Manfred Eischer. O denominado “som ECM” exerceu alguma influência no seu estilo?
R. – Pelo contrário. Paul Bley acha que fui eu que influenciei o tal “som ECM”. Nessa altura escrevia sobretudo baladas, tocadas por pequenos grupos de duas ou três pessoas. Ele acredita que a audição da minha música, por parte de Manfred Eischer, foi determinante para a orientação estética da editora. Antes não havia música lenta, era o “free jazz”, tudo muito rápido e agressivo. Faltava “espaço” à música. Faltava doçura.


Ironia

P. – Nas suas canções cruzam-se palavras por vezes violentas com uma maneira extremamente suave de as cantar. O tom dominante parece ser a ironia…
R. – Ironia, sim. Gosto de lidar com opostos. Procuro alcançar o equilíbrio estético entre extremos. As ideias mais agressivas têm sempre um maior impacte quando são cantadas de modo não agressivo.

P. – Por falar em ironia, o que a levou a criar uma editora própria, a Ironic Records?
R. – Na altura estava a escrever um tipo de música sem qualquer hipótese de ser aceite por uma grande companhia, pois não era de molde a agradar às massas. Atualmente é diferente, as pessoas têm uma maior abertura de espírito, foram educadas num leque de experiências musicais mais alargado. Mas no início dos anos 80, quando formei a minha editora, a minha música destinava-se somente às audiências mais esclarecidas.
P. – A Ironic Records possui mais alguns artistas, para além de si?
R. – Apenas formei a editora para poder fazer e editar a minha música. Muitos músicos já me pediram para incluir trabalhos seus na etiqueta, mas esquecem-se de uma coisa: não quero transformar-me numa editora de discos, mas simplesmente editar os meus trabalhos sem problemas e torná-los acessíveis a qualquer pessoa que os queira ouvir.


“Não quero ser um objeto”

P. – Porque recusou a proposta de David Bowie para tocar com ele, na época de “Alladin Sane”?
R. – Não quis fazer esse tipo de música. O que eu pretendia era andar em “tournée” pela Europa, utilizando sintetizadores numa base de improvisação sobre novas estruturas musicais. Disse-lhe que, na sua qualidade de músico, devia arranjar os seus próprios sintetizadores, fechar-se num quarto e aprender a tocá-los…
P. – Também se recusou a trabalhar com Brian Eno…
R. – Sim, recusei o convite de Brian Eno porque ele queria separar a música da voz. Era como cortar-me ao meio. Eu preferia que a minha música aparecesse como um todo, com a voz indissociada dos poemas.
P. – Por outro lado, colaborou com Andrew Poppy, no álbum “Alphabed (a mystery dance)”…
R. – Dessa vez aceitei. Gosto de colaborar nos projetos de outras pessoas quando elas respeitam aquilo que eu faço. No caso de Andrew Poppy não me vi confrontada com ter de aceitar um certo estilo de vida, como decerto teria acontecido se tivesse aceitado os convites de Bowie ou Eno, em que seria tratada como se fosse um objeto. É difícil ser-se real e verdadeiro quando se entra nessa grande mentira que é o estatuto de estrela pop.
P. – O que quer dizer com “ser-se real e verdadeiro”?
R. – Nessa altura eu e David Bowie, que era fã da minha música, partilhávamos o mesmo “manager”. Deste modo pude observar de perto a ascensão de Bowie, quando os seus discos começaram a tornar-se êxito na América. As pessoas tratavam-no como se fosse um objeto. Claro que era essa a imagem que ele gostava de dar aos outros, mas eu não me teria sentido bem nesse papel. Para mim, a música é a maneira de expressar a minha visão pessoal, a minha arte, o meu trabalho. Não a faço para obter resultados, sejam eles ganhar dinheiro ou tornar-me famosa. Faço música porque tenho de a fazer.
P. – Tem medo do sucesso?
R. – Sim, de certo modo. Não gosto de ser obrigada a fazer as coisas, penso que isso não me traria grande satisfação. O sucesso acarreta a perda de controlo. O controlo da qualidade do meu trabalho é imprescidível para poder continuar. Mantenho-me fiel a estes princípios e é graças a eles que garanto a minha sanidade mental. O sucesso só me interessa se obedecer às condições que eu própria imponho. Se o sucesso acontecer, não será concerteza nos tempos mais próximos… Preocupo-me apenas com a satisfação que retiro do meu trabalho. Não vou modificar esta maneira de proceder para obter resultados que não me trarão qualquer felicidade.
P. – Os seus textos tratam, por vezes, temas incómodos como a masturbação, o incesto ou o sadomasoquismo. Não acha que é a maneira mais difícil de alcançar o reconhecimento público?
R. – Não gosto que me considerem uma rebelde, mas não tenho outra escolha: esses temas fazem parte da essência da vida que todos vivemos e se não falarmos deles estamos a incorrer numa mentira. Para se conseguir um trabalho continuado e prolífico, há que evitar duas coisas: uma é não fazer nada, outra é mentir. É necessária a sinceridade. Decidi fazer música durante toda a vida. Esta decisão torna-me capaz de ver as coisas a longo prazo e dá-me liberdade para as fazer, sem as pressões de uma editora convencional que não seria capaz de assumir riscos. Sem correr riscos, não consigo descobrir nada. Sem risco, não há prazer…
P. – Nos seus até agora quatro álbuns, gravados para a Ironic – “Sky Skating”, “Been in the Streets too long”, “I Have no Feelings” e “Abstract Contact” –, utiliza praticamente apenas o piano e os sintetizadores…
R. – Basicamente, a música que gravo destina-se posteriormente a ser tocada ao vivo. Penso sempre nestes termos: “Como vou tocar isto ao vivo?”. Gosto de manter apenas um pequeno grupo de pessoas porque, em palco, há deste modo uma maior liberdade e a sensação constante de que “tudo pode acontecer”, o que, para mim, se torna extremamente estimulante…
P. – É verdade que foi um dos primeiros intérpretes a utilizar o sintetizador Moog em palco?
R. – Sim, com um dos primeiros protótipos do instrumento que me foi oferecido pelo seu inventor (Robert Moog). Há três anos, alguém me entregou uma revista técnica de computadores, em que se afirmava serem impossíveis as proezas técnicas que então me eram atribuídas… Pensei inicialmente em fazer passar todos os outros instrumentos pelo sintetizador, transformar-lhes o som e controlá-los como se fosse um dirigente de orquestra. Mas acabei por achar mais interessante filtrar antes a minha voz. Nessa altura o Vocoder (mais tarde largamente utilizado por Laurie Anderson, por exemplo) ainda não tinha sido inventado. O sintetizador que eu utilizava nem sequer tinha sido concebido para receber o som doutros instrumentos… Era uma coisa enorme e pesada. Músicos como Tony Williams e John McLaughlin, costumavam então assistir aos meus concertos. Para eles, era uma novidade. Tinham de esperar 20 minutos entre cada canção, que era o tempo necessário para mudar as ligações…

“Rap” longo e profundo

P. – O que a levou a escrever o quase manifesto que é “Elect yourself”, incluído no seu mais recente disco, “Abstract Contact”?
R. – Tem tudo a ver com a nova geração de putos que acreditam que a música pode mudar o mundo. É um “rap” escrito à minha maneira (como “Loss of Consciousness”, de “The Perfect Release”); longo e profundo, que não tem nada a ver com os habituais egotismos do género, do tipo “Olhem para mim, sou o melhor compositor do mundo”…
P. – Tem planos para um próximo álbum?
R. – De facto, preparo atualmente um novo disco que será qualquer coisa de muito perfeito. É uma obra em que trabalho já há alguns anos e que não será editada na minha editora. Desta vez a música será menos elitista e qualquer pessoa está apta a compreendê-la…
P. – Em Lisboa, como será? Quais os músicos que a acompanham e qual o reportório escolhido?
R. – Venho acompanhada de um trio de músicos muito jovens: Simon Price, na bateria, que participou na gravação de “Abstract Contact”, Michael Mondesir, no baixo, durante três anos acompanhante do saxofonista Courtney Pine, e Amit Mukherjee, na guitarra. Cantarei canções de todos os meus álbuns, a partir de “X-Dreams”. Tenho muito por onde escolher, entre 25 anos de canções. Organizei uma sequência estruturada de forma “dramática”, para o impacte ser maior. Espero que as pessoas percam a cabeça, do estilo de saírem da sala sem saber onde moram…

DISCOGRAFIA

1968 – REVENGE
Polydor
Estreia de quase impossível acesso. Inclui o “punk rap” “I Belong to a World that’s Destroying Itself”. Prováveis delírios eletrónicos, suavizados pelas carícias da voz aveludada. Vingança contra os habitantes do mundo, na época entretidos a brincar às cores nas traseiras da realidade.

1971 – I’M THE ONE
RCA
Foi quando Bowie a descobriu. Na altura até o NME dizia maravilhas. Também é difícil encontrá-lo. Adivinham-se paraísos a que a inacessibilidade acrescenta o sabor do desconhecido.

1978 – X-DREAMS
Aura
Apareceu por cá na altura e foi um estouro. Com que cara se escuta alguém cantar “My Mama Never Taught me How to Cook” como se fosse a atividade mais erótica do mundo? Em “Too Much in the Skies”, ficamos a saber como cantam os anjos nos ardores da primavera.

1979 – THE PERFECT RELEASE
Aura
Menos aparatoso que o anterior. “O amor saiu para almoçar”, “Perda de Consciência”. Os extremos tocam-se, a violência e a sensualidade da voz. Destaque para “Survival”, longo tema, discretamente “jazzy”, em que as palavras se transformam em mantra hipnótica.

1982 – SKY SKATING
Ironic
Obra máxima. Voz, piano e sintetizador bastam para fazer da balada um género maior. Cada canção arranha céus. A bailarina dança no topo dos edifícios e flutua mais para cima. A vertigem é nossa.

1983 – BEEN IN THE STREETS TOO LONG
Ironic
Talvez, mas para nós não. É a continuação musical do álbum anterior. Seduz irremediavelmente, como todos. A mesma instrumentação, a altura de sempre das palavras. A voz. A voz que parece ter corpo e tocar-nos diretamente onde somos mais sensíveis.

1986 – I HAVE NO FEELINGS
Ironic
Mais eletrónico que os anteriores. Às vezes lembramo-nos de Robert Wyatt, no som, na desolação, no tom intimista e sombrio das palavras. Ainda e sempre a ironia…

1988 – ABSTRACT CONTACT
Ironic
O mais acessível de todos. “Funky” à maneira da senhora. Os mais despreocupados podem pois dançar. “Elect Yourself” – 15 minutos, os suficientes para tocar em todas as feridas da América e mesmo nas nossas. Mesmo assim, queremos mais. Annette canta todas as coisas como se fizesse amor.

Sérgio Godinho – “É Hoje Posto À Venda O Novo Duplo-Álbum De Sérgio Godinho, ‘Escritor De Canções’. ‘Detesto O Ênfase'” (entrevista)

PÚBLICO TERÇA-FEIRA, 6 NOVEMBRO 1990 >> Cultura


É hoje posto à venda o novo duplo-álbum de Sérgio Godinho, “Escritor de Canções”.

“Detesto o ênfase”

“Escritor de Canções” é o título do mais recente disco de Sérgio Godinho, gravado ao vivo no Instituto Franco-Português e hoje lançado no mercado. Excelente oportunidade para rever, em novo contexto, parte das histórias vividas por toda uma geração.



Público – Qual a necessidade que o levou a gravar em disco o espetáculo ao vivo, realizado no Instituto?
Sérgio Godinho – O disco é uma consequência desse espetáculo. Como compositor e intérprete interesso-me por este tipo de registo, ao contrário do que acontece, se colocado na perspetiva de simples ouvinte. Interessa-me sobretudo ver como as canções são retomadas num contexto diferente do estúdio.

P. – Em “Escritor de Canções”, contudo, as palmas soam artificiais, como que deslocadas do ambiente geral do disco…
R. – Talvez por haver um silêncio tão grande e um grau de atenção muito maior, as palmas possam surgir como um elemento estranho. O alinhamento diferente das canções implicou um trabalho de montagem que não se pretende de reportagem. Não é um disco em que o público intervenha de forma ativa, mas sim pelo silêncio. Houve como que uma intimidação, no bom sentido, em que se procurou criar uma nova relação com as pessoas, num contraponto intimista de momentos mais festivos, próprios de espetáculos maiores. Diferentes tipos de encenação.
P. – Como se processou essa encenação, de modo a resultar simultaneamente ao vivo e em disco?
R. – O termo “Escritor de Canções” reflete uma certa ironia. Escrever canções é um ofício ou uma arte diferente de fazer só poemas ou música. Parto de fórmulas que vêm do passado e são depois revestidas de novas roupagens musicais. No palco há a transposição para o nível físico.
P. – “Escritor de Canções” é designação suficientemente lata para albergar uma grande diversidade estilística. Como definiria, em termos gerais, a sua música?
R. – Sou eclético pelo facto de escrever canções que podem incluir-se em diversos universos musicais. Há uma interpenetração de géneros e estilos que acontece de modo natural. Não se trata bem de uma qualquer espécie de “fusão”, mas antes de uma colagem criativa, feita a partir da audição de muita música. “L’Âme des Poètes” [incluída no novo disco] é uma canção muito antiga de Charles Trenet que eu ouvia muitas vezes, em miúdo. Ouvia também música brasileira, francesa, americana, clássica. Depois, a todas estas influências juntaram-se, na minha adolescência, a música dos “tops” e, mais tarde, a de Zeca [Afonso], Dylan, Beatles, Brel, Caetano [Veloso], Chico Buarque…
P. – Até que ponto as suas canções são autobiográficas? As “Ritas” e “Carolinas” dos seus discos são reais?
R. – A minha música reflete sobretudo um certo olhar sobre a vida, as pessoas e o modo como estas se relacionam. As personagens surgem de pequenas experiências que transporto para o ficcional. Não consigo ter uma narrativa realista. Tenho a tendência para simbolizar. Nunca daria um bom repórter.
P. – E no entanto, o novo disco abre com “Notícias Locais” …
R. – Trata-se de uma brincadeira a partir de acentuações com as cinco vogais: adro, ébrio, híbrido, óbito, súbito. Brincadeiras formais que influenciam a própria narrativa. Muitas vezes uma rima ou uma palavra que dava jeito é que determina a verdade. A verdade dos factos não existe, mas sim a das palavras.
Por outro lado, utilizei uma multiplicidade de referências, muitas vezes apenas percebidas ao nível do Inconsciente. Nem todos percebem imediatamente que “arranja-me um emprego, pode ser na tua empresa com certeza” diz respeito, no nosso imaginário a “uma casa portuguesa, com certeza”.
P. – Não receia perder o contacto com as gerações mais novas?
R. – Não quero partir atrás de uma suposta adesão de todas as camadas etárias. Houve uma altura em que me ressenti um pouco por isso. Sentia pressões para embarcar num comboio “mais na onda” e, ao mesmo tempo, uma certa exaustão na maneira de tratar as canções. O estatuto de clássico pode ser perigoso. Não me interessa refugiar-me na imagem do artista consagrado se isso não corresponder a nada. O trabalho com António Emiliano em “Na Vida Real” funcionou como um relançamento, de forma nem angustiada, nem neurótica. Não me preocupo em estar sempre na crista da onda. Isso é desgastante e desertificante.
P. – O novo álbum poderá representar a reformulação da sua imagem?
R. – É o fechar de um tempo, balanço incompleto do passado. A editora achou por bem não insistir nas canções de “Aos Amores”. Não é, de qualquer modo, um “greatest hits”. O “Brilhozinho nos Olhos” ou o “Primeiro Dia”, por exemplo, estão ausentes.
P. – Mas há um relançamento noutras áreas…
R. – Sim, estou a fazer uma série de seis programas para a televisão, de genérico “Luz na Sombra”, que trata de seis funções do mundo da música, normalmente na sombra, como as de intérprete, produtor, técnico de som, letrista, “roadie” e arranjador musical. É uma crónica assumidamente subjetiva onde eu funciono como “pivot”.
P. – No espetáculo ao vivo, o público chegou a comover-se. Como explica o elevado grau de identificação das pessoas com as suas canções?
R. – Foi comovente também para mim. Existem pontos comuns ao nível de afetividade. Sobretudo há uma sensibilidade especial relativa ao tema da “perda”. Penso que é neste aspeto que toco nas pessoas. Acho que há algo extremamente forte no acabar de algo que foi extremamente belo. Não quero ser patético, detesto o ênfase. Gosto de usar a ironia, como em “Emboscadas”, em que uso uma terminologia do romance de cordel, justamente para me distanciar do real. Jogo com sentimentos dolorosos e com o facto de todos nós sermos valerosos, pungentes, desgraçados e de, ao mesmo tempo – o que é uma coisa muito portuguesa –, sorrirmos muito das nossas desgraças.
P. – Isso explica o tom melancólico de grande parte das suas canções?
R. – De facto não sou muito pela criação de ambientes preto no branco. Tenho uma certa tendência para a dúvida sistemática em relação a tudo. Acho que não há verdades nem estéticas eternas. Do ponto de vista formal procuro introduzir elementos desestabilizadores. Funciono em termos de dinâmicas, de modo intuitivo, dinâmicas inseparáveis do elemento vivencial. Há um elemento de melancolia que nem sempre consigo controlar. Numa das canções, “Lisboa que Amanhece”, das minhas preferidas, o mistério vem da rapidez com que foi escrita. É como uma criança que não sabe falar e, de repente, diz uma frase inteira.

Michael Nyman – “Michael Nyman E A Sua Banda Atuam Hoje À Noite No S. Luiz, Em Lisboa – ‘A Minha Música É Bastante Sensual'” (entrevista | concerto | antevisão)

PÚBLICO SEXTA-FEIRA, 26 OUTUBRO 1990 >> Cultura


Michael Nyman e a sua banda atuam hoje à noite no S. Luiz, em Lisboa

“A minha música é bastante sensual”


Analítico e intuitivo, erudito e popular, Michael Nyman confunde os académicos ao mesmo tempo que rivaliza com o rock no apelo às massas e na energia da música. É o ilustrador musical dos filmes de Peter Greenaway e já trabalhou com Kate Bush. Para ele, intelecto, emoção e sentidos formam um todo inseparável.



Hoje à noite, no Teatro Municipal de S. Luiz, em Lisboa, pelas 22h30, vamos todos perder-nos no prazer dos labirintos sonoros de Michael Nyman. O concerto incidirá sobretudo em peças compostas para Greenaway, como “Drowning by Numbers”, atualmente em exibição num cinema lisboeta, “The Cook, the Thief, his Wife and her Lover” e o próximo “Prospero’s Book” inspirado na “Tempestade”, de William Shakespeare. Vem acompanhado de oito músicos. Sopros, cordas e piano formam o grupo instrumental que desde sempre tem utilizado. Há quem considere barroca a sua música.
PÚBLICO – Um dos temas recorrentes na sua música é a relação com os números, como em “Decay Music” ou “Drowning by Numbers”. A que se deve esse interesse pelos sistemas numéricos?
Michael Nyman – Tudo parte de John Cage e da utilização, da parte deste, de sistemas numéricos aleatórios. Ao contrário da minha, a música de Cage é muito sistemática. Utilizo os números na medida em que me permitem fazer certos malabarismos e elaborar novas configurações musicais. Exemplo extremo de um processo mais analógico é o tema “1 – 100” (incluído em “Decay Music”). Atualmente o meu interesse por estes métodos é bastante menor. Faço música mais intuitiva, lidando com processos musicais em vez de matemáticos. Os sistemas numéricos já não chegam para alguém que, como eu, optou por uma estética mais pessoal. A utilização dos números pressupõe a submissão a regras que lhe são exteriores.
P. – A morte é outro tema que parece interessá-lo e que partilha com Peter Greenaway. Chega mesmo a definir “Drowning by Numbers” como “Música Funerária”…
R. – Escrevi muito desse tipo de música sobretudo para os filmes de Greenaway porque é um tema prevalecente na sua obra. Não sei quais são as suas motivações para essa quase obsessão. No meu caso, sinto-me tão interessado pelo assunto como outra coisa qualquer. Vivemos todos confrontados com a possibilidade de morrer. Pessoalmente não me sinto aterrorizado por isso.
O tema da morte abrange um determinado campo da minha escrita musical. Se, por um lado, esta “música sobre a morte” ostenta um cariz nostálgico, por outro, em peças como “Memorial”, baseada no massacre de Heysel, procurei atingir um objetivo muito específico, uma maneira mais concreta de tratar o assunto.
“Drowning by Numbers” é mais elegíaco, uma espécie de comédia negra.
P. – Muitos dos títulos de obras suas, referem-se à água: “A Watery Death”, “Water Dances” ou “Water Music”, composta para um vídeo de Fabrizio Plessi.
R. – É um caso idêntico ao tema da morte, e reflexo de mais uma das obsessões de Peter Greenaway. No caso de Plessi, trabalhámos numa ópera em que ele juntava a alta tecnologia a recursos básicos, como a água. Por vezes os títulos vêm a propósito. A relação entre uma peça de música e o seu título, é bastante aleatória. Por exemplo, no caso de “A Watery Death”, a música não tinha sido escrita em particular para a sequência de imagens que Peter Greenaway lhe justapôs.
Labirintos sensuais

P. – “The Draughtsman’s Contract” funciona, em termos cinematográficos e musicais, como um labirinto estético e mental. Poderemos considerar a sua música labiríntica.
R. – Se funciona como tal não é premeditado. Mas, de facto, a minha música é “circular”, seguindo numa determinada direção para, de repente, a deixar e mais tarde voltar ao ponto de partida. Avança no tempo ao mesmo tempo que permanece estática. Não sei se, ao ouvi-la, as pessoas se perdem ou não. É possível que por vezes não consigam situar-se nessa espécie de espiral. Há uma analogia com os filmes de Greenaway, que quase sempre giram em torno de si mesmos, numa dinâmica contínua de avanço e retorno ao ponto de partida.
P. – O cineasta chileno Raoul Ruiz é outro apaixonado por labirintos. Em que ponto se encontra a vossa colaboração no projeto para a ópera “Don Juan”?
R. – De momento está tudo parado. O dinheiro que deveríamos receber da “Expo 92”, que nos encomendou esse trabalho, não chegou. Estamos mesmo a considerar a hipótese de o arranjar noutro lugar ou mesmo de partir para um projeto diferente. Mas por enquanto tudo não passa de teoria.
P. – A sua música é quase pagã na intensidade com que apela aos sentidos, embora não descure o lado cerebral. A que se deve essa preocupação pelas reações do corpo?
R. – Seja ou não pagão, gosto do facto de escrever e tocar um tipo de música que atue a esses dois níveis. Quem escutar a banda que irá atuar em Lisboa, terá oportunidade de sentir o impacto físico que a minha música provoca, muito diferente do dos discos, um pouco à maneira do que se passa com o Rock.
P. – É um hedonista?
R. – Musicalmente, sim. Parto sempre de um “princípio do prazer”, dirigido ao público, a mim e aos músicos da banda. Acho excitante estar sobre um palco, no interior da música, do som que eu próprio crio. Há qualquer coisa de físico. O Rock consegue às vezes atingir esse puro prazer. No polo oposto está um processo intelectual de escrita, não muito diferente daquele utilizado pelos compositores clássicos convencionais. Quando tomo notas em pequenos pedaços de papel ou manipulo material sonoro, não existe nada de físico, é um processo de análise, levado a cabo exclusivamente pelo cérebro. Diria, em suma, que a minha música é bastante sensual.

P. – Por falar em sensualidade, já trabalhou com Kate Bush, em “The Sensual World”…
R. – Foi uma experiência interessante, embora se tratasse apenas dos arranjos para cordas. O que mais me impressionou em Kate Bush foi o seu ouvido apurado, a concisão e o modo meticuloso como trata o mais ínfimo pormenor. Nas partes que arranjei, o som das cordas é envolvido por uma multiplicidade de outros sons.

Rock, humor e “música decente”

P. – Disse uma vez que gostaria de trabalhar com David Byrne. Donde lhe vem o interesse pela música Rock?
R. – Gosto do trabalho de David Byrne. Penso que é um músico extremamente inteligente. A nível pessoal damo-nos otimamente.
Quanto ao interesse que nutro pelo Rock, é muito recente. Nos anos 50 vivi a minha adolescência no auge do “rock ‘n’ roll” mas na altura não lhe prestava muita atenção. Confesso que não me lembro de nenhum tema em particular, dessa época. Ao longo dos anos 60 e 70 havia, por parte dos compositores de outras áreas musicais, uma atitude muito aberta para com este tipo de música. Stockhausen e Luciano Berio, por exemplo, estavam conscientes da importância de que o Rock se reveste em termos culturais.
A partir de certa altura tudo se tornou progressivamente mais sério. Criou-se uma divisória artificial entre uma música tida por “decente, de estilo”, apontada às elites, e uma música vernácula, mais popular. Pessoalmente encontro-me na estranha posição de compor “art music” utilizando embora uma linguagem vernácula. Para o público é excitante. Os meios académicos criticam-me porque não conseguem compreender que, em termos globais, se trata de uma e a mesma coisa.
P. – Embora seja considerado pela maioria das pessoas como um compositor “sério”, esquecidas que fez parte, por exemplo, dos Flying Lizards, torna-se possível detetar na sua música um humor muito fino. É verdade?
R. – É involuntário. Nunca me preocupei em fazer música que fosse humorística. A ironia que possa ser detetada nos meus discos não foi lá posta deliberadamente por mim. Estava a pensar em algum caso em particular?
P. – “The Nose List Song”, por exemplo, em “The Kiss and Other Movements”…
R. – Sim, por causa do texto. Se tivesse escolhido outro, era capaz de já não soar tão engraçado. Não escrevo propriamente “piadas musicais” mas gosto de jogar, de brincar com as palavras. Brinco com os “clichés” musicais acumulados ao longo dos últimos 200 ou 300 anos. No final de “Water Dances” acabo por me aproximar de um registo próximo do Rock. É a minha maneira de chamar a atenção para a continuidade presente na evolução do fenómeno musical.
Há também uma série de “personal jokes” jogadas em particular com Peter Greenaway, ao nível de uma multiplicidade de referências que poderão não interessar a uma determinada camada de público.
P. – Desde o “Decay Music”, produzido e gravado para a editora “Obscure” de Brian Eno, não voltou a trabalhar com este músico. Nunca se interessou por uma nova colaboração?
R. – Na época desse disco, existia uma identidade entre os nossos pontos de vista. Depois ele começou a escrever música semelhante à de “Decay Music” enquanto eu me afastava noutras direções. Partimos em direções opostas. Não sei se ele ouve ou gosta do que faço atualmente. Se voltássemos a trabalhar juntos teria de ser qualquer coisa semelhante ao que ele e John Cale fizeram no seu novo projeto (o álbum “Wrong Way Up”). Para mim é difícil. Brian Eno poderia talvez ser o produtor mas mesmo aí não gosto de ver a minha música, depois de composta, ser modificada por ideias ou interferências provenientes de sensibilidades alheias.
P. – Nos seus discos existe sempre uma sonoridade típica, imediatamente reconhecível, um pouco à maneira do que acontece com Philip Glass. Tal facto deve-se, da sua parte, a uma utilização sistemática da mesma instrumentação?
R. – A instrumentação a que alude funciona como uma “camisa-de-forças” extremamente estimulante. A partir dela obtive resultados tão diferentes como “Drowning by Numbers” e “The Kiss”. Até agora devo ter feito perto de 20 gravações e cada vez que as ouço encontro nelas algo de novo. Em relação a Glass penso que em tudo o que ele faz há a marca do génio, mas evolui por norma numa determinada direção. Eu, pelo contrário, procuro sempre novas utilizações para os mesmos recursos instrumentais. Quanto a soar à “Michael Nyman” não gostaria que fosse de outra maneira. Mas penso que consigo fazê-lo sem cair em lugares comuns. Orgulho-me dessa variedade.

Violino ou eletrónica?

P. – Costuma privilegiar o violino. Alguma razão especial para isso?
R. – Normalmente costumo tocar com um violinista (Alexander Balanescu) que funciona como um estímulo para a minha imaginação. Penso que escrevo muito bem para este instrumento, como mais ninguém escreve. Faço-o de uma forma ativa, ao contrário de Glass que é muito passivo, mecânico e pouco “colorido”.
P. – Alexander Balanescu não atuará no concerto em Lisboa, ao que parece…
R. – Sim. Ele não pode vir. Em sua substituição vem Elizabeth Perry. Qualquer um deles tem exercido grande influência no meu estilo de escrita.
P. – Por que razão se recusa a utilizar, na sua música, a instrumentação eletrónica?
R. – Tenho a sorte de poder utilizar músicos de carne e osso. E ideias muito precisas sobre a coloração sonora que pretendo obter de determinado instrumento. Há quem me tente persuadir a utilizar “samplers” e computadores. Mas, até agora, estou satisfeito com a maneira como trabalho, de poder levar verdadeiros instrumentistas para o estúdio.
Quando muito, posso imaginar-me a utilizar um computador para tratar informação relativa a sistemas numéricos, mas nunca a gravar algo com mais de dez por cento de som sintético, “samplado” ou gerado por computador. Por outro lado, não me repugna trabalhar em projetos que utilizem vozes “sampladas” ou mesmo sons não orquestrais sintetizados. Mas de momento tenho tanta coisa que quero escrever para instrumentos convencionais, que não tenho tempo para reorientar, de forma radical, a minha forma de escrita. Em princípio não sou contra, mas, para já, Alexander Balanescu vale para mim mais do que cem sintetizadores.
P. – Em que ponto se encontra “Prospero’s Book”, a sua mais recente colaboração com Peter Greenaway?
R. – Trata-se de uma versão de “A Tempestade”, de Shakespeare, que se desenvolve num ambiente típico de Greenaway, embora fiel ao texto original. Até agora já escrevi algumas partes vocais, bem como cinco canções relativas às cenas com Ariel, e algumas partes instrumentais.
P. – Numa entrevista que deu recentemente à revista Blitz, dizia estar um pouco cansado de apenas ser referido em relação a Greenaway. Continua a ser dessa opinião?
R. – Sim, de certo modo. Sou seu amigo e as tarefas que ele me propõe são sempre estimulantes. O ponto de partida pode ser algo tão vago como “números”, com aconteceu em “Drowning”, ou, pelo contrário, ser ele a filmar a partir da minha música, como aconteceu com “Memorial”, pré-existente ao filme “The Cook…”. No fim de contas, acabo sempre por escrever música muito boa para ele, que depois posso utilizar na gravação de discos ou em concertos.