Duplex Longa + Criterium – “Obliquidades” (concerto)

BLITZ 17 OUTUBRO 1989

OBLIQUIDADES

O concerto dos Duplex Longa/Criterium, designado «Projetos Oblíquos», foi a primeira de uma série de iniciativas que o Instituto Franco-Português se propõe levar a cabo nos tempos mais próximos, visando a divulgação das propostas mais recentes e inovadoras da música moderna portuguesa.
Este primeiro espetáculo saldou-se por um semi-êxito. O público afluiu em número razoável. O som estava bom. Os atrasos de horário não foram exasperantes. Em termos exclusivamente musicais é que deixou muito a desejar. Para a maioria dos presentes não foi esse o caso, o mesmo é dizer que o público gostou, aplaudiu delirantemente sobretudo os Duplex Longa, grupo sobre o qual recaíam as maiores expetativas. Esta discrepância assenta numa série de equívocos que procurarei esclarecer.
Relatemos então o que se passou. Os Duplex Longa são dois, melhor, três, se contarmos com o computador de ritmos, disposto no centro do palco, comandando quase sempre as operações. Os dois humanos são Carlos Raimundo, no baixo, e Mário Resende, no violino, tendo ambos a seu cargo as programações rítmicas. O grupo vinha referenciado como praticante de um som fazendo a ponte entre os Tuxedomoon e os Penguin Cafe Orchestra.
O esquema inicial da sua prestação foi invariavelmente a alternância de temas rítmicos com outros em que o computador se calava, permitindo aos dois instrumentistas, sobretudo ao violinista, exibirem os seus talentos. E aqui o primeiro equívoco. O tipo de música que os Duplex se propõem fazer exige um virtuosismo que os seus membros estão longe de possuir. Não é que toquem mal, mas não possuem ainda a fluência instrumental, o à-vontade que lhes permita libertarem-se da rigidez que por ora ostentam. Era notório o esforço que por vezes faziam para conseguir acompanhar o ritmo computorizado, quando seria suposto tocarem com ou sobre os esquemas rítmicos de base. Por outro lado, os Duplex estão, por enquanto, longe de serem originais e sabe-se quanto a originalidade conta no campo musical que escolheram. Para já limitam-se a alinhavar influências de etnias várias, como a árabe ou eslava num contexto classizante, não indo muito além do percorrer de escalas resultando num som bonitinho e imediatamente reconhecível. Nenhum risco ou ponta de audácia nas soluções melódicas e harmónicas. Jogam para já num exotismo de pacotilha e no facto de se movimentarem num campo que, em termos nacionais, se apresenta praticamente virgem. Em terra de cegos…
Mas o pior de tudo foi o final, quando os Duplex se afundaram no seu próprio pretensiosismo. Subiram ao palco uns instrumentistas «da clássica», com instrumentos «a sério» como o violoncelo, a flauta e o trompete e, finalmente, um coro de senhoras, todos juntos para um final pretensamente grandioso. O resultado foi assistirmos a uma aula de alunos do Conservatório, com todos os participantes desunhando-se para não desafinarem ou saírem do compasso. Os Duplex Longa são, por enquanto, apenas uma boa ideia. Podem ir longe se souberem admitir e até mesmo tirar vantagem das suas próprias limitações e se se preocuparem menos em «mostrar que também sabem fazer» e mais com a criação de uma linguagem própria, sob risco de não passarem de um puro exercício de estilo. Ah, é verdade, na 1.ª parte tocaram os Criterium, variante nacional n.º 6348 dos Joy Division.
Aguardam-se futuras iniciativas, com propostas menos certinhas e mais desestabilizadoras.

Fernando Magalhães no “Fórum Sons” – Intervenção #93 – “JOHN COLTRANE (FM)”

#93 – “JOHN COLTRANE (FM)”

Fernando Magalhães
04.04.2002 150358
Não, não vou falar de sexo nem de Suckies, mas sim do mítico saxofonista de jazz.

É uma opinião, polémica, que irá decerto desencadear reações apaixonadas, mas é a minha opinião. Sobre Coltrane.

Primeiro ponto: JC é um grande músico, ponto final. Mas não é o melhor da história do jazz, longe disso (audições avulsas de muito jazz, nos últimos tempos, confirmam esta opinião…).

Penso que acontece com ele um pouco o mesmo que, no rock, incidiu sobre um artista como Nick Drake, por ex.

A morte, sobretudo quando em condições trágicas – que envolvem droga, uma vida de excessos e um adeus à vida demasiado prematuro – criam o ambiente ideal para a mitificação.

John Coltrane é, para mim, sobretudo um daqueles artistas que se consumiu na sua arte, capaz de arder por completo na música que fazia. Isso está ao alcance de poucos, sem dúvida. mas não significa que esse “incêndio”, essa música, sejam melhores que outra, apenas por esse facto.

Abundam exemplos desta situação, na música clássica, por ex….
Mozart e Salieri… Salieri era a personagem torturada, mas Mozart, parece que um imbecil (o filme de Milos Forman dá, pelo menos, essa ideia…) é que era o verdadeiro génio.

E Wagner, e Beethoven…Pessoas vulgares mas infinitamente dotadas como músicos.

Coltrane foi, isso sim, um grande intérprete (de si mesmo) mas não um grande compositor. Um músico obsessivo que abriu portas – sem dúvida, (o free deve-lhe muito).

Mas a sua música esgota-se, quanto a mim, nessa supernova em combustão. Nessa energia que parecia inesgotável (a realidade provou que não era…).

A personalidade de JC é apaixonante. A música foi um reflexo dessa dor imensa.

Mas a dor não é, por si só, garantia de genialidade.

“A Love Supreme” e “The Ascension” são grandes álbuns porque são manifestos de uma entrega total.

A dimensão cósmica de JC – que existe – é, todavia, a do caos. Melhor, é a da loucura, da repetição ad infinitum de um motivo melódico ou harmónico. Coltrane esgotava-as e esgotava-se a si mesmo.

Mas ainda aqui, a visão (e exposição) de um universo pessoal não garantem qualquer tipo de “superioridade”.

Retomemos o início do texto: John Coltrane foi um grande músico. Não foi – vá, crucifiquem-me! – um grande compositor.

a conversa, consoante as reações, seguirá dentro de momentos. 🙂

FM

João Gonçalves
04.04.2002 160400
Sim, e… ?

Fernando Magalhães
04.04.2002 160417
E…

Fizeste bem em lembrar. Esqueci-me, de facto, de referir o essencial da vida e da obra de John Coltrane.

Além de saxofonista, JC era também um entusiasta das “bonecas do amor” o que se refletiu na sua música.

“The Ascension”, por exemplo, é uma citação literal ao estado em que ficou (fisiologicamente falando…) quando deparou pela primeira vez com uma Barbie nua em tamanho natural (nessa época a “O Paraíso do Látex” ainda não existia, pelo que os famosos jazzmen não tinham hipótese de desfrutar da gama de prazeres oferecidos pela Suckie). John Coltrane chamou à boneca, “Naima”.

Coltrane apaixonou-se por essa magnífica boneca percursora das Suckie e foi a ela que dedicou “A Love Supreme”.

Infelizmente, e porque a música o distraía do resto, só tarde de mais se apercebeu de que Barbie era uma boneca de borracha e não uma mulher verdadeira.

JC não aguentou o choque. Depois de pedir o divórcio e de compreender finalmente a razão por que a sua amada nunca ficou grávida, Coltrane optou pela droga e por se concentrar exclusivamente no jazz.

O último álbum que gravou, “Expression”, é uma homenagem velada e nostálgica à chamada “fase do látex” e à boneca “Naima” que jamais saiu do seu pensamento.

A verdade é esta, doa a quem doer.

FM

Faust – “As Estratégias Do Diabo” (valores selados | blitz | artigo de opinião | dossier)

BLITZ 17 OUTUBRO 1989 >> Valores Selados


FAUST
AS ESTRATÉGIAS DO DIABO



Se há grupo que nos últimos 30 anos de música popular, soube guardar ciosamente os seus segredos, esse grupo foi certamente o dos Faust. Os seus membros sempre se esconderam num secretismo cerrado, ficando para a História os discos e as raras aparições ao vivo. Nestas últimas, conta quem viu, costumavam tocar na penumbra e rodeados de televisores ligados. Para se entreterem enquanto tocavam, diziam. Se a sua própria atuação não lhes agradava especialmente, limitavam-se pura e simplesmente a abandonar os instrumentos e a ver calmamente os seus programas preferidos.
Mas a lenda foi construída graças aos discos que gravaram. Em todos eles os Faust deixaram bem impressa a marca do génio. Entre 71 e 73 editaram quatro álbuns, correspondendo a outras tantas obras-primas. 16 anos depois da saída de «Faust IV», com que encerraram a sua existência oficial, poucos grupos se poderão orgulhar de terem alcançado os níveis de qualidade absoluta e originalidade radical que estes germânicos lograram atingir.

A Torre de Babel

Não é fácil definir a sua música. A audição de cada um dos discos revela-nos uma síntese de influências tão diversas como a canção pop, a música concreta, o free jazz, as sonoridades clássicas ou um humor corrosivo filiado na tradição Zappa. Todos estes registos são unificados e filtrados por uma abordagem específica e única para a época, traduzida numa utilização revolucionária das técnicas de mistura e gravação. Os Faust foram o primeiro grupo a utilizar o estúdio como instrumento musical. A sua música é uma gigantesca colagem de sons desmontados e voltados a montar as vezes necessárias até se atingir o resultado pretendido: uma música extremamente diversificada e complexa e, no entanto, perfeitamente coerente. O segredo dos Faust está na arte de juntar e harmonizar sons e palavras aparentemente irreconciliáveis. O 1.º álbum chamava-se simplesmente «Faust». Foi editado em 71 e provocou a perplexidade total. A começar pela capa e terminando na música, tudo era diferente do que até então era suposto um grupo pop fazer. A capa e o vinil eram totalmente transparentes, sobre os quais aparecia a radiografia de um punho fechado. Esta 1.ª edição esgotou rapidamente sendo a capa das edições seguintes já em cartão. Anos mais tarde a Recommended Records reeditava o disco com a capa original. Mas se a capa era original, que dizer da música? Era a grande pedrada no charco. O que os nossos ouvidos escutaram não se parecia com nada a que estivéssemos habituados. Era o 1.º grande golpe desferido nas convenções e tabus do Rock. O álbum abre com «Why don’t you eat carrots»: sobre uma massa eletrónica zunindo de canal em canal, soavam os estertores finais de «All you need is love» e «Satisfaction», dos dois grandes mitos da época, os Beatles e os Stones. Sucediam-se rapidamente um solo de piano desafinado, gritos, sons de motorizada ou algo parecido, até o tema entrar em força de forma não menos esquisita. O 2.º tema, «Meadow Meal», cheio de reverberações e jogos de palavras, passava por um rock ultra pesado, terminando com um órgão de pedais soando melancolicamente sobre sons de trovoada. O 2.º lado é ocupado na íntegra por «Miss Fortune», tocado ao vivo em estúdio e absolutamente indescritível. A ideia geral é a de que todos os músicos se encontravam em adiantado estado de embriaguez. Pelo meio aparecem algumas melodias dos Beach Boys, tocadas em serra elétrica. Um espanto e um direto bem dirigido aos preconceitos reinantes na época dos sinfonismos e progressismos vários. Em 72 é editado o álbum seguinte «So Far». Desta vez é tudo em negro: capa, disco e rótulo central, sem qualquer informação. A versão original continha uma série de gravuras alusivas a cada um dos temas. «So Far» é ainda mais estranho e diversificado que o seu antecessor. Sucedem-se temas magníficos como «It’s a Rainy Day, Sunshine Girl» de uma violência obsessiva, «So Far», mais industrial e ameaçador que todos os atuais industrialismos juntos, a beleza acústica de «On the Way to Albamae», as delirantes paródias de «Mamie is Blue» e «I’ve got my car and my TV» ou o blues degenerado de «In the Spirit». Em 89, «So Far» continua à frente de quase tudo. Descubram-no, ouçam-no e pasmem.

Os anos da virgindade



O grupo assina entretanto pela Virgin, com Richard Branson, nessa época, apenas preocupado em contratar todos os nomes importantes da música vanguardista europeia. O 1.º trabalho editado já com o novo selo é «The Faust Tapes», como o nome indica, uma recolha de material original não incluído nos dois primeiros álbuns. É uma colagem sonora nonstop, 42 minutos de inspiradíssima loucura, exemplo paradigmático do estilo e do génio do grupo. Os géneros mais heterogéneos sucedem-se numa cadência delirante, fazendo deste disco um precursor das técnicas posteriormente utilizadas, em novo contexto, por John Zorn. Experimentalismo radical, truques de gravação e mistura espantosos e melodias do outro mundo tornam «The Faust Tapes» numa peça fundamental da música do nosso século. O disco termina com a recitação em francês e alemão de um texto surrealista, acompanhado unicamente por uma guitarra acústica. Parece simples? Escutem o resultado e abram a boca de espanto. Os Faust faziam maravilhas com os meios mais exíguos.
«Faust IV» é editado em 73, de novo pela Virgin. A formação original do grupo, até então constituída por Jean-Hervé Peron, Werner Diermaier, Joachim Irmler, Arnulf Meifert, Rudolf Sosna e Gunther Wusthoff, dissolve-se, saindo Diermaier, Meifert e Sosna, substituídos por Uli Trepte, vindo dos Amon Duul II e Peter Blegvad que viria posteriormente a formar os Slapp Happy.
«Faust IV» é o álbum da sedimentação de um estilo já então reconhecido nos meios mais vanguardistas. O som apresenta-se mais limado, a sequência das faixas é mais clássica, o choque é menor, em todos os aspetos. «Krautrock», uma divertida crítica ao então designado «Rock Alemão» ou «The Sad Skinhead», mais uma melodia perfeita das muitas que o grupo compôs, são dois momentos significativos de um álbum à altura dos anteriores.

A lenda de Fausto

Com «Faust IV» fechava-se um capítulo de ouro, escrito em apenas três anos por um grupo inesquecível. Nesses três anos os Faust tinham revolucionado toda a música popular. Os motivos da dissolução nunca foram tornados públicos. O mistério mantinha-se até ao fim. Ficaram a lenda e algumas colaborações dispersas de alguns dos seus membros. «Outside the Dream Syndicate» do radical Tony Conrad ou a gravação original do 1.º álbum dos Slapp Happy são as que merecem maior destaque. A partir de aí foi o silêncio.
Foi necessário esperar até 1986, ano em que a Recommended edita «Return of a Legend-Music & Elsewhere», com material inédito gravado já após a dissolução do grupo. Finalmente, em 88, a mesma Recommended edita ainda «The Last LP» também conhecido como «The Party Album», com honras de versão em CD. Este derradeiro testemunho dos lendários germânicos contém ainda alguns originais além de novas misturas de temas antigos. Ambos os discos são indispensáveis para a compreensão do alcance e da influência decisiva que os Faust exerceram na música do nosso tempo.
Hoje têm dignos continuadores nos Residents e nos Negativland. O canadiano Jocelyn Robert também se pode considerar como um dos seus mais brilhantes discípulos, levando às últimas consequências a arte da colagem sonora. Ainda uma referência para os Biota e a sua estética do ruído harmonioso. Foi pois a América quem melhor soube compreender a lição dos mestres. Os compêndios estão disponíveis para todos os interessados.
Para a semana Daevid Allen e o seu planeta Gong.