Fredo Mergner – “À Sombra Da Figueira”

pop rock >> quarta-feira >> 09.11.1994
portugueses

Fredo Mergner
À Sombra Da Figueira
Ed. BMG



“Muzak”. A designação, aplicável a música que se destina a ser ouvida como pano de fundo de actividades como fazer compras, matar o tempo num escritório, ou fazer render o tempo numa cama, tem geralmente uma conotação pejorativa. “à Sombra da Figueira”, estreia a solo de um dos não sei quantos guitarristas dos Resistência, recusa essa conotação. É “muzak” na medida em que se trata de uma música que não se impõe, correndo mesmo o risco de, recebida numa audição leviana, passar despercebida. Mas tem personalidade, algo que o “muzak” vulgar não tem. “À Sombra da Figueira” desliza tranquilamente como as águas de um ribeiro escondido. Não grita nem se põe em bicos de pés para se fazer ouvir. Sente-se nestes sons que tanto devem à tradição portuguesa como ao chorinho brasileiro (2Almas perfumadas”) ou ao Sul de Espanha (“Sanjuanneza”, “Dança no terraço”) nostalgia e o desejo de não agredir. A guitarra clássica de Fredo troca de papéis com a guitarra portuguesa de Pedro de Faro, sob o olhar discreto dos teclados de Rui Vaz e as percussões de João Balão e José Salgueiro. O baixo de Yuri Daniel evita que se caia no silêncio total. À sombra desta figueira acolhem-se reminiscências e pausas para divagações sem objectivo. Anthony Phillips, Michael Hedges, o som sazonal da Windham Hill, a harpa (instrumento que Fredo Mergner estudou e praticou nos tempos de juventude) sem peso de Andreas Wollenweider passam pelo disco sem jamais se focarem. Um disco simpático que nos acena com timidez, a pedir apenas: “Pare, escute e olhe” (6)

Rão Kyao – “Águas Livres”

pop rock >> quarta-feira >> 09.11.1994
portugueses


Rão Kyao
Águas Livres
Vertigo, distri. Polygram


Depois de uns fatigantes “Delírios Ibéricos”, o homem das flautas de bambu precisava de descansar. E assim fez. “Águas Livres” é uma espreguiçadeira, um rio de águas clamas, tudo na linha, sem desvios nem marés vivas. Um verdadeiro aqueduto. É um álbum destinado ao consumo de gente bem instalada na vida que não tem tempo para se concentrar a valer na música mas gosta de ter um som agradável de fundo enquanto se refastela no escritório. O tema é as viagens dos Descobrimentos, o Oriente, enfim, o Portugal universalista, espalhado por títulos como “Rota da seda”, “Velas ao vento”, “Memórias dos oceanos” e “Dança dos véus”. Rão não se esforça muito para ser profundo. Vai soprando nas suas flautas e no embalo de um sintetizador ou de umas percussões bem educadas. As prateleiras da “new age” mais ligeira já têm um espaço reservado para “Águas Livres”. Os “yuppies” devem delirar com sedativos como “Balada do Sul” e os abaixo de “yuppies” podem até bater o pé ao ritmo do comercialão “Búzios”. Os três últimos temas são menos preguiçosos e por segundos conseguem sugerir uma pontinha do mistério do Oriente. Rão Kyao acomodou-se, é um facto. Não seria uma boa altura para voltar a pegar no saxofone? (4)

Marisa Monte – “Marisa Monte Seduz Público Do Porto – Nos Braços De Uma Sereia” (concerto | reportagem)

cultura >> segunda-feira >> 07.11.1994


Marisa Monte Seduz Público Do Porto
Nos Braços De Uma Sereia



SE ELBA Ramalho é uma tentação com pernas, Marisa Monte é uma tentação com braços. O Coliseu do Porto viu as duas e pôde comprová-lo. Marisa, para além dos braços e de um corpo enleante, tem uma voz e uma presença em palco espantosas. Nada que se compare ao fracasso que constituiu a sua primeira apresentação em Portugal, em 1991, em que desafinou por todos os lados. Hoje ela é o que se chama uma profissionalona. Sabe o que faz e o que canta, domina como quer o ritmo e as tensões de um espectáculo, em suma, tão nova e é já uma das maiores vozes femininas da MPB.
Dá para perceber que o seu espectáculo de sábado à noite no Coliseu do Porto foi um êxito. A assistência, numerosa, viu-se a braços para conter os arrepios causados pela actuação de Marisa Monte, um monte de talento e sensualidade. O mesmo deve ter acontecido ontem em Lisboa, no Centro Cultural de Belém. Hoje, no Coliseu dos Recreios lisboeta, a cantora irá de novo decerto fazer faísca.
Marisa Monte, acompanhada por uma banda de sete elementos (um acordeonista, dois percussionistas, dois guitarristas, um baixista e um baterista), surgiu em palco envergando um longo vestido negro que deixava nus apenas os braços. Não foi preciso mostrar mais, como costumam fazer por exemplo as suas colegas Joanna, Fáfá ou a Elba das pernas de boa memória. Braços expressivos que cantaram tanto como a voz. Braços que acariciaram o cabelo, o rosto, o ventre e se acariciaram mutuamente. E as canções? Umas boas, outras óptimas, algumas fracotas, a atirar para o estilo telenovela. Mas em todas elas a voz da cantora brasileira conseguiu arrancar lampejos de emoção, como se fossem em qualquer dos casos declarações de amor tórridas ou pueris, não importa, mas sempre sinceras. Ao todo, incluindo os “encores”, Marisa Monte cantou vinte e uma. De início numa cadência lenta, com a sensualidade da voz e dos gestos a insinuar-se sem que a razão desse conta. Depois, sem avisar, a cantora de “Mais” ferveu no baião, no frevo e no samba. O corpo libertou-se das últimas amarras e o público rendeu-se, sem hipóteses nem vontade de resistir. No final, a plateia em peso do Coliseu dançava ao ritmo de “Balança a perna”, uma das canções do novo álbum “Verde Anil Amarelo Côr de Rosa e Carvão”. Uma bandeira brasileira agitava-se no meio da multidão.
Porque mais subtis, preferimos os temas de “Mais”, o álbum anterior da cantora: “Eu não sou da sua rua”, “De noite na cama”, “Diariamente”. “Ensaboa” foi diferente, com os braços, os tais braços, a fingir que ensaboavam o ventre e as pernas. Temperatura a subir no Coliseu. “Maria de verdade”, o tema que abriu o concerto. “Pale blue eyes”, “Dança da solidão”, “Segue o seco” e “Na estrada” saíram por sua vez do álbum das cores. “Preciso me encontrar2 rondou a obsessão, com uma batida tribal e o corpo ondulante da cantora a sugerir crimes do coração. A partir de certa altura a combinação das luzes, da voz e do corpo com o ritmo incansável e letras como “ai ai” e “eu só quero chocolate”, passou ainda a fazer mais sentido.
Já no “encore”, com a sala em delírio, os músicos da banda, responsáveis ao longo de todo o concerto pela criação de uma selva de seduções, mostraram em pequenos solos o muito que valem. Brilharam com intensidade Waldonys, no acordeão, e Marco Lobo, que conseguiu pôr uma cuíca (instrumento tradicional brasileiro) a cantar como uma “prima donna”. Em final apoteótico, para não dizer orgiástico, Cezinho explodiu num solo de bateria, acompanhado pelas “vari-lites” que disparavam relâmpagos e mudavam de cor de forma desenfreada. “Lenda das sereias” colocou um ponto final na loucura. A sereia tinha um nome: Marisa Monte. Para ela aquele braço, perdão, aquele abraço!