Robert Wyatt – Rock Bottom (self conj.)

11.06.1998
Reedições
Robert É Mais Estranho Que Wyatt
Robert Wyatt
Rock Bottom (10)
Ruth Is Stranger Than Richard (8)
Nothing Can Stop Us (8)
Old Rottenhat (9)
Rykodisc, distri. MVM

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“Rock Bottom” é um dos grandes discos da história do rock. Apesar de pouco ou nada ter a ver com o rock. apesar do título. É uma daquelas obras únicas e irrepetíveis, sem ascendência nem descendência visíveis, ainda que “Shleep”, o mais recente do autor, o revisite, filtrado pela distância.
Corria o ano de 1974. O Progressivo encontrava-se no seu espelendor máximo enquanto na editora Virgin se acolhiam os nomes mais importantes – e que então soavam estranhos – exteriores ao movimento: Henry Cow, Hatfield and the North, Gong, Faust, Gilgamesh, Lady June, Slapp Happy, Tangerine Dream, Klaus Schulze, entre outros.
Robert Wyatt saíra dos Soft Machine logo a seguir À gravação do seu volume “4”, desagradado com a orientação exclusivamente jazzística do grupo. Como já tinham feito antes Daevid Allen e Kevin Ayers, dois dos excêntricos mais iluminados da pop inglesa com sede em Canterbury, ainda que o primeiro fosse australiano. O aviso já fora feito na obra-prima “Third”, onde Wyatt assinava um lado inteiro de pop lunar (ou d elunático) numa longa canção à qual dera o título de “The moon in June”.
Mas para Robert Wyatt (como para Allen e Ayers) a música pop foi sempre encarada como um veículo capaz de transportar e conter todos os desiquilíbrios e direcções divergentes da sua personalidade. Nos Matching Mole encontrara o então ainda baterista esse veículo, gravando mais dois álbuns imprescindíveis, “Matching Mole” e o genial “Little Red Record”.
Quando Wyatt preparava o terceiro disco dos Mole (com um novo elemento, o teclista Francis Monkman, vindo dos Curved Air) dá-se o acidente. Uma festa fatídica. A queda de um quarto-andar. Paralisia dos membros inferiores. A noite descia sobre Robert Wyatt.
“Rock Bottom”, o fundo, é também a salvação do músico que faz deste álbum um manifesto da sua dor. A abertura do disco, “Sea song”, é uma luz velada em que a graça se confunde com a mágoa mais profunda numa espécie de ressaca metafísica. O mundo, os sons e a alma do músico desaceleram até ao espanto estremunhado. “When you´re drunk you´re terrific / When you´re drunk I like you mostly / Late at night, you’re quite allraight. / But I can’t understand / The difference you in the morning / When it’s time to play at being / Human for a while / Please smile” canta Robert Wyatt naquela que será uma das mais tocantes letras de canção de sempre. A música é uma neblina de notas de piano e pequenas percussões à deriva, varridos pela ventania da madrugada de um sintetizador. Um limbo de sentimentos molhados pelo sal e pelo álcool que ardem como um sol gelado antes de se diluirem no óbvio. “A last straw2 e “Little red riding hood hit the road” prolongam esse estado de incredulidade e folia interior, for a da realidade, no único lugar onde se torna possível suportar, mas não olhar de frente, o sofrimento. Depois é o mergulho na loucura. “Alifib” e “Alife” descem, descem, descem sempre até atingirem o fundo negro onde se reflectem es estrelas do céu. Uma palavra, “alifib” (Alfreda Benge, “Alfie”, a mulher sul-africana com quem casou nesse mesmo ano) vai sendo repetida obsessivamente, a voz desagregando-se aos poucos numa respiração húmida. A lógica desaparece. Wyatt estende as mãos e murmura coisas incompreensíveis onde estão aprisionados todos os sentidos. “Not nit not / nit no not / Nit nit folly bololey”, balbucia. a luz desaparece numa última vertigem para reaparecer no tema final, “Little red Robin Hood hit the road”, através da janela de um asilo. Robert Wyatt, ele próprio e a sua máscara, pode enfim descansar, dobrado na posição fetal. A voz de barítono demente, de Ivor Cutler, declama sobre uma concertina as palavras da redenção. A alma de Wyatt, essa já voava, como a do índiuo de “Voando sobre um Ninho de Cucos”. E a voz do fundo, do muito fundo, de Cutler, a pôr um ponto fina na agonia com uma gargalhada cruel: “Now I smash up the telly and what´s left of the broken phone”. A criança paratira para longe. A criança partira o brinquedo.
No ano seguinte, 1975, “Ruth is Stranger than Richard”, dividido num lado “Richard” e num lado “Ruth” (a presente reedição troca a ordem do vinilo original) respira já fora do poço. É um álbum de pedaços soltos, de desperdícios de jazz e música ambiental, com hinos pelo meio, ritmos africanos e uma versão de “Song for Che” de Charlie Haden. Fred Frith, Brian Eno, Mongezi Fesa, John Greaves, Bill MacCormick (ex-Matching Mole) e, sobretudo, o fabuloso saxofonista Gary Windo (já falecido) são alguns dos participantes de um álbum cuja leveza contrasta violentamente com a claustrofobia emocional de “Rock Bottom”.
O regresso à terra das coisas concretas, pela porta da ideologia, acontece com “Nothing Can Stop Us”, de 1978. Capa verde e vermelha com a estatueta de um operário a enfeitar a dianteira de um Rolls-Royce. Wyatt entrara nessa altura para o Partido Comunista britânico. Mas se este trabalho representa o pensamento de um homem de Esquerda, nele está também presente uma ironia mordaz e uma lucidez que o impede de seer panfletário, em deliciosas cançonetas de intervenção como “Born again cretin” e “Stalin wasn’t stallin’” (gravada pela primeira vez em 1943, pelo Golden Gate Quartet). Ao lado do hino do operariado, “Trade Union”, e da canção de luta latino-americana (“Caimanera” e, de Violeta Parra, “Arauco”) encontramos uma fabulosa parceria com Elvis Costello, “Shipbuilding”, uma versãoo tocante de “Strange Fruit” e um momento de obscuridade, “Grass”, assinado por Chris Cutler, cuja costela, também esquerdista, sempre se resolveu, ao contrário de Wyatt, numa arquitectura hermética que começou a ser edificada nos Art Bears.
Ainda marcado pelas preocupações políticas, “Old Rottenhat” livra-se, todavia, da excessiva carga partidária que envolve “Nothin Can Stop Us”. Aqui reencontramos as grandes canções, onde o individual e o colectivo se confundem, num álbum de fôlego marcado pela electrónica e pelas percussões sintéticas. “United states of Amnesia”, “Speechless”, “The age of self”, “The british road” ou “Mass medium” aliam a acutilância das letras (reduzidas ao essencial, em “slogans” coloridos por um humor surrealista) enquanto “East Timor” estende o dedo de acusação sem fazer uso de qualquer espécie de metáforas. Limpo de retórica, densamente povoado de sons e achados melódicos, “Old Rottenhat” é ainda o álbum em que a voz de Robert Wyatt evidencia força, clareza e extroversão, quando antes se refugiava nos círculos impenetráveis do seu “scat” pessoalíssimo. Era ainda a saída definitiva do poço que lhe permitiria entrar nos anos 90, já não como a larva disforme mas como a borboleta que voa em liberdade, em álbuns como “Dondestan” e “Schleep”, de uma vitalidade surpreendente para este homem que, como Orfeu, passou pelo Inferno e sobreviveu.
As presentes reedições são remasterizadas (sem que se note uma melhoria espectacular do som). “Rock Bottom” e “Ruth is Stranger than Richard” trazem pela primeira vez impressas as letras. A capa de “Rock Bottom” foi modificada, apresentando agora um novo desenho da autoria de Alfreda Benge, enquanto o enquadramento e as cores de “Ruth” foram ligeiramente alteradas.

Eliza Carthy – Red Rice

05.06.1998
World
Arroz Com Bicho
Eliza Carthy
Red Rice (7)
2xCD Topic, distri. Megamúsica

Saudado pela crítica estrangeira, nomeadamente pela Folk Roots, como “subtilmente progressivo”, “com um sentido de perigo” e um “marco”, “Red Rice” é, quanto anós, uma desilusão. Compreende-se o cuidado. Eliza é filha e quem é (Martin Carthy e Norma Waterson), os seus anteriores trabalhos, nomeadamente com Nancy Kerr, “Shape of Scrape”, e o mais recente, com os Kings of Calicutt, eram bons, mas, acima de tudo, “Red Rice” é um daqueles objectos feitos, à partida, para impresionar.
O objecto em questão é uma embalagem composta por dois CD mas que não se pode considerar um duplo-álbum, apesar de, em termos gráficos, se ter procurado uma unidade de conceito. São antes dois álbuns que procuram apresentar duas facetas distintas da violinista, cada um com músicos e uma abordagem estética diferentes. “Rice”, onde Eliza aparece ruiva, é um álbum de música tradicional, no sentido académico do termo, puramente acústico, que não desce abaixo do nível atingido em “Heat, Light and Sound”. As “boxes” de Saul Rose, a guitarra acústica e o bouzouki de Ed Boyd, juntamente com os misteriosos Billericay e Thorngumbold Fontenot e as participações esporádicas de mais um elemento do clã Waterson, Eleanor Waterson, voz, e Lucy Adams, que faz um pezinho de “clog dancing” num dos temas, conferem a “Rice” um tom amigável, entre as danças “barn” e “morris”, demosntrações de violino (“Haddock and chips”) e desempenhos vocais que lembram, nalguns casos, Shirley Collins.
Mas é no reverso da medalha que as coisas se complicam. “Red” (com Eliza de madeixas louras) pretende ser o passo revolucionário que o álbum com os Kings of Calicutt já prenunciava, acabando, no entanto, por ser um inesperado trambolhão. Além do violino, Eliza toma a seu cargo o acordeão e os teclados, contando ainda com um grupo formado por Martin Green, no acordeão e piano, Barnaby Stradling, no baixo, percussão e Moog, Sam Thomas, na bateria, percussão e Moog, Olly Knight, na guitarra eléctrica e da dupla Shack & Paul, nas programações. Rory McLeod participa com a usa harmónica, como convidado, no título tema, um atropelo de “drum’n’bass” que sintetiza bem o espírito do álbum. Não é, no entanto, nos aspectos estilísticos que “Rice” falha, ainda que o tal “sentido de perigo” a que a Folk Roots se refere não chegue aos calcanhares, por exemplo, do radicalismo de um Martyn Bennett que em “Bothy Culture” assume na íntegra os riscos de uma “tecno folk” no mais puro espírito “rave”.
Em “Red” – que inclui versões de “Walk away”, de Ben Harper e do instrumental “The Stacking Reel”, de Kathryn Tickell – há um uso discreto, num par de temas, do “reggaes”, aflorações suaves de jazz, rock e “dub”, nada que não tenha sido tentado já noutras paragens com resultados bem mais satisfatórios, sobretudo na Escócia, por gente como os Shooglenifty, Burach, Tartan Amoebas ou Peatbog Faeries. O que deita tudo a perder não é tanto a “ousadia” em si, mas o modo hesitante como Eliza a põe em prática. Sente-se que a confiança não foi total, soando a música como experimentação pela experimentação, numa ânsia da autora em capitalizar sobre um estatuto de “inovadora” que lhe foi, talvez prematuramente, atribuído. Eliza Carthy terá sentido a pressão, obrigando-se (ou alguém que a terá obrigado…) a um trabalho cuja envergadura parece, para já, não estar à altura de poder responder. Percebe-se o desejo de ser diferente mas não com que finalidade. Por outras palavras, Eliza Carthy sai de um lugar para ir para lugar nenhum. Depois, se o objectivo era a transgressão e a subversão das regras, porquê gravar o disco tradicional, quando o efeito seria, em teoria, muito mais forte, se apenas se tivesse concentrado em “Red”. Há ainda outra coisa, esta mais grave. Em “Red” Eliza Carthy dá a imagem de uma cantora medíocre, sem colocação de voz, afinando com dificuldade, trémula, como que tolhida pelo medo. Só um estado de dúvida justifica que em “Rice” se transfigure ao ponto de parecer outra cantora, com a voz a afirmar-se orgulhosamente, sem rede, num tema como “Benjamin bowmaneer”. Até o violino cresce de forma assustadora, liberto do espartilho de linguagens rítmicas para as quais Eliza não estará, por enquanto, totalmente à vontade. É difícil dar uma só classificação a “Red Rice”. Atribuímos “8” a “Rice” e “5” a “Red”. A diferença entre arroz-doce e arroz com bicho.

Jaramar – Si Yo Nunca Muriera

05.06.1998
Jaramar
Si Yo Nunca Muriera (7)
Lejos del Paraiso, import. Symbiose

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Jaramar é uma cantora mexicana que há 20 anos vem realizando um trabalho de fusão da música antiga e de textos de escritores clássicos do seu país, com sonoridades electrónicas. Neste seu primeiro trabalho para a Lejos del Paraiso, Jaramar interpreta composições de Alfredo Sánchez, director musical do grupo, inspiradas na poesia do rei pré-hispânico Nezahualcoyotl, no 594º aniversário do seu nascimento.
Uma das curiosidades deste álbum é a semelhança assombrosa – do timbre, da altura, da textura – da voz de Jaramar com a de Teresa Salgueiro. Se não fossem as letras em espanhol e a onda completamente diferente da música, e juraríamos que é a vocalista dos Madredeus que canta temas como “Como una pintura”, “Monólogo”, “Jade y oro”, “Flor y canto” ou o título-tema, uma emocionante litania onde a vida e a morte se confundem num cântico de esperança e desapego. A linguagem das programações evoca a espaços a “medieval tecno” dos QNTAL, enquanto o exotismo dos ambientes demarca territórios próximos dos de Luis Delgado, na vertente mais étnica criada pela sanfona e a flauta de Edurado Arámbula e as cordas de Miguel Ángel Gutiérrez. Curioso será comparar “a posteriori” este disco com a apresentação ao vivo de Jaramar que teve lugar na passada quarta-feira na Expo. Ainda mais curioso seria ouvir a cantora mexicana e Teresa Salgueiro cantarem juntas. São vozes gémeas!