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Robert Wyatt, Billy Bragg – “A Esquerda No Poder” (artigo de opinião)

Pop-Rock Quarta-Feira, 09.10.1991

A ESQUERDA NO PODER

Robert Wyatt e Billy Bragg, assumem-se ambos de esquerda, anti-situacionistas e anti-imperialistas. A diferença principal entre os dois está em que, enquanto Billy Bragg não passa de um músico vulgar, para quem gravar discos se resume a um meio eficaz de fazer passar o discurso contestário, Robert Wyatt é um artista genial, preocupado com o universo em que vive, mas também com a criação de novas formas para a música. O primeiro põe-se em bicos de pés para se fazer ouvir. Ao segundo, basta abrir a boca e soltar a voz trémula, para que os corações caiam a seus pés. Billy Bragg é membro de todas as associações políticas, subscritor de todas as siglas e de todas as campanhas “contra”. Robert Wyatt dedica-se aos copos, à sua mulher polaca, pintora e activista, à paixão pelo jazz e `gravação de obras-primas em disco. Nas barricadas da rua ou na quietude tensa de uma cadeira de rodas, a luta prossegue, impulsionada pelos sonhos de um mundo que julgam ser o melhor. “Dondestan” e “Don’t Try this at Home” aí estão para o provar.



ROBERT WYATT
A Queda De Um Anjo



É possível dividir a carreira de Robert Wyatt em dois períodos distintos: antes e depois da queda. O acidente, ocorrido em 1973, durante uma festa, quando, devido aos efeitos perniciosos do álcool, caiu para a rua da janela de um quarto andar, condenou-o para sempre à cadeira de rodas e à condição de paraplégico, e obrigou-o a um corte radical com o passado. Até à data fatídica, Wyatt era o baterista dos Soft Machine, banda que, ao lado dos Pink Floyd, constituía um dos pilares do movimento vanguardista ocorrido em Canterbury, na Inglaterra, nos finais da década de 70.
A formação original dos Soft Machine incluía, para além de Wyatt, David Allen (mais tarde fundador dos Gong), Kevin Ayers (excêntrico, detentor de uma fase inicial de carreira imaculada) Mike Ratledge e Hugh Hopper. Com estes músicos, os Soft Machine gravaram um par de álbuns, em que procedem à fusão inusitada de uma pop tipicamente inglesa com desmultiplicações rítmicas características do jazz.
“Third”, o duplo álbum seguinte, representa o culminar de um estilo demasiado avançado para a época. Neste disco, Wyatt assina e canta a longa melopeia “The moon in June”, na qual estão já presentes os germes da sua música futura. Consumado o abandono dos Soft Machine, demasiado complexos e intelectuais para o seu gosto, (ainda cumpriu as sessões de gravação correspondentes a um dos lados do álbum número quatro, enquanto trabalhava já no seu primeiro disco a solo, “The End of na Ear”), Wyatt reúne novos músicos e forma os Matching Mole (tradução fonética do francês “machine molle” – precisamente o mesmo que Soft Machine…). “Matching Mole” e “Little Red Record” são os dois testemunhos brilhantes deixados por esta formação, já com sinais evidentes da futura militância, aqui ainda limitados a uma paródia ao imaginário e iconografia maoístas.
Depois, o momento de viragem. A queda e um futuro obrigatoriamente diferente. Impossibilitado de tocar bateria, Wyatt afirma que o acidente acabou por lhe ser vantajoso: “A estadia no hospital deixou-me livre para sonhar.” O resultado deste corte abrupto com o passado, “Rock Bottom”, é, sem exagero, uma das obras musicais máximas deste século. Mergulho na loucura e no fundo do abismo. Vocalizações patéticas sobre uma electrónica sombria e obsessiva. Exorcismo traumático da dor. Experiência do limite da solidão humana.
“Ruth Is Stranger than Richard”, o disco seguinte, funciona num registo mais “cool”, constituindo uma série de exercícios alógicos sobre sonoridades tão variadas como o jazz, a música afro-cubana ou o “muzak” ambiental. Fred Frith, Brian Eno e John Cale são alguns dos músicos presentes na sessão. Entre estes dois discos, um “hit” inesperado, com a versão do tema dos Monkees, “I’m a believer”.
Em 1980, cada vez mais preocupado com o agravamento da situação mundial e com os problemas do Terceiro Mundo, Robert Wyatt entra para o Partido Comunista. Em termos de produção musical, a opção salda-se pelo álbum “Nothing Can Stop Us”, paradoxalmente violento e delicado manifesto anticapitalista, onde temas como o tradicional cubano “Guantanamera”, “Strange fruit” de Billie Halliday, o hino estalinista “Stalin wasn’t stalin” ou a Internacional adquirem uma intensidade a um tempo perversa e demolidora.
A seguir, um mini-álbum com a banda sonora de “The Animals”, documentário que denuncia as atrocidades cometidas sobre os animais, em nome da investigação científica, de mais um single nos tops (Shipbuilding”, composto especialmente para si por Elvis Costello, a propósito das vítimas da guerra das Malvinas) e um EP, “Ambe rand the Amberines”, contendo versões de “Biko”, “Yolanda” e “Te recuerdo”, respectivamente de Peter Gabriel, Pablo Milanês e Victor Jara. Depois Robert Wyatt regressa aos álbuns, com “Old Rottenhat”, preocupado com problemas como a ocupação de Timor-Leste ou a prepotência dos “united states of amnesia”, tornados senhores do mundo.
Para trás, ficavam colaborações com Michael Mantler, Bem Watt e os Working Week, ou a aliança com o activista dos Specials / Special Aka, Jerry Dammers, e cantores da SWAPO, traduzida noutro single, “Winds of Change” (1985), em que se condena a ocupação da Namíbia pelo exército sul-africano, e uma canção, “The lst Nightingale”, destinada à angariação de fundos a favor da greve dos mineiros ingleses.
Wyatt credita realmente que a música pode contribuir para as mudanças do mundo. Pensa, por exemplo, que o concerto de homenagem a Nelson Mandela contribuiu de alguma maneira para a sua libertação, “embora não fizesse desaparecer o ‘apartheid’”. Segue-se o exílio voluntário para o sol da Catalunha, na companhia de Alfie (diminutivo de Alfreda Benge, a quem dedica o tema final de “Old Rottenhat” – “Poor little Alfie”), o reatar de relações com o jazz, à sua maneira – “sou um turista do jazz, não um participante activo” – e, finalmente, o regresso a Inglaterra e a assunção das origens pop, no novel e notável “Dondestan” (onde estão?” – pergunta, a propósito dos refugiados palestinianos e do Kurdistão). Sempre ao lado desses e doutros refugiados, do mundo e da vida, Robert Wyatt continua a lutar, em combustão lenta. Contra as prepotências do destino e a estagnação do espírito. Nos seus discos a dor é redimida, consubstanciada em liberdade. É o seu testemunho e a sua vingança.

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BILLY BRAGG:
Cantor A Martelo



Billy Bragg canta mal, toda a gente que o ouviu o sabe. Mas não é isso que interessa: “Não sou um cantor, nunca serei um Pavarotti, nem sequer um Rick Astley” – reconhece, para logo adiantar: “O mais importante é o conteúdo”. Billy Bragg é militante empenhado do RAR. (Rock Against Fascism). Cerra fileiras ao lado da CND (Campaign for Nuclear Disarmament). Faz horas extraordinárias na YTS (Youth Training Scheme). Almoça todos os dias na cantina do YTUR (Youtj Trade Union Rights Campaign). Além disso, tem assinatura na GLC (Gas Light Chanticleer) e costuma frequentar o clube privado da SEX (Sociological Entertainment Xenogamy). É aquilo a que se costuma chamar um “camarada”.
De facto, para Billy Bragg, o mundo é uma m***a, resumindo-se a questão essencial à proverbial luta de classes e à exploração dos fracos pelos fortes. Billy, fanático do futebol, não admite contudo a existência de uma linha média. Suporta-a só enquanto esta lhe for comprando discos. A subida ao poder de Margaret Thatcher foi, para si, providencial. É preciso ter um inimigo contra quem lutar, que sirva de estímulo – “É impossível escrever uma boa canção política se não houver o ambiente apropriado.” Com a “dama de ferro” no poleiro, foi-lhe mais fácil fazer álbuns como “Life’s a riot with spy vs. Spy” ou “Brewing up” ou “Talking with the Taxman about Poetry”.
Embora não o encare como um poço de virtudes, aderiu ao Labour Party – “Tem no seu seio tantos reaccionários que se fica a pensar se não se terão enganado na escolha do partido.” Mas, como em tudo, é preciso escolher, escolheu o que lhe pareceu melhor. “Madonna usa os ‘soutiens’ pontiagudos, eu uso o Partido Trabalhista. A diferença é que o partido é mais sexy.” O sexo é, de resto uma das suas principais preocupações. No álbum acabado de sair, “Don’t try this at home”, um dos temas intitula-se, sem ambiguidades, “Sexuality”. Diz assim: “Safe sex doesn’t mean no sex, it just means use your imagination” – para, de seguida, agitar a bandeira do Maio de 68 e do amor livre: “Sexuality – strong and warm and wild and free, sexuality – we can be what we want to be.” Não está mal visto.
O que faz correr Billy Bragg, fundador da Red Wedge, uma agremiação de músicos pop de que fazem parte músicos como Gary Kemp, dos Spandau Ballet – presença um pouco suspeita, a deste neo-romântico da treta; mas, como Billy faz questão de frisar, “quer queiram quer não, temos que trazer as classes médias do mundo connosco” – e Paul Weller (The Jam, Style Council) destinada a apoiar o partido nas eleições? Quer dizer, para além de, como ele próprio diz, “ter relações com raparigas de muitas nações”, vibrar com o futebol e, como todo o bom inglês, beber litros e litros de chá?
“Quando da greve dos mineiros, não fui muito bem recebido” – resmunga, sentido. “Perguntaram-me o que é que estava a fazer ali, de guitarra em punho. Respondi-lhes que era eu quem atraía os jovens de 18 anos e lhes chamava a atenção para ouvir aquilo que eles, mineiros, tinham a dizer. Fiz-lhes ver que é esta a minha profissão.” Billy Bragg, porta-voz das minorias, devia ser eleito. Já.

BILLY BRAGG
Don’t Try This At Home
LP duplo / CD / Go! Discs, distri. Polygram

Nem em casa nem noutro lugar qualquer. Billy Bragg prossegue a sua saga contra as injustiças do mundo, com os ocasionais interlúdios amorosos de permeio. Em relação a discos anteriores, assiste-se a um refinamento da produção (uma concessão ao “music-hall” que chegou ao ponto de o próprio produtor se chamar “Showbizz”), e até (pasme-se) do desempenho vocal deste “cantor de protesto”, para quem a música pop é o meio ideal de propaganda de uma boa (ou má) ideologia. As referências musicais são variadas, para que a mensagem seja destilada de forma o menos enfadonha possível. Há um pouco de tudo em “Don’t try this at Home”: ecos de Leonard Cohen, (“Moving the Goalposts”), dos Moody Blues (será possível? – em “Cindy of a thousand lives”), de Julian Cope (“Trust”, “Sexuality”), juntamente com as cordas, plenas de dramatismo, de “Rumours of war” ou o encosto à country em “You woke up my neighborhood”. Entre a vulgaridade mais ou menos bem disfarçada, o melhor acabam por ser as letras, um catálogo completo das obsessões e procupações do autor. Para dourar a pílula, não falta sequer a ajuda de nomes como Michael Stipe e Peter Buck (dos REM), Kirsty MacColl, Johnny Marr e Donny Thompson, em “Dolphins”, uma das poucas canções verdadeiramente belas de um álbum subjugado pelo peso da “mensagem”.
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Robert Wyatt – “Dondestan”

Pop-Rock Quarta-Feira, 09.10.1991


ROBERT WYATT
Dondestan
CD, Rough Trade, import. Contraverso


A primeira impressão recolhida diz respeito à vaga de fundo do órgão – o mesmo de “Rock Bottom”, um velho órgão Riviera, que o músico voltou a pôr a funcionar, como que dando um acordo tácito a esse reviver de um passado traumático que acabou por resultar numa obra, sob todos os aspectos, fabulosa. Mas não só o órgão omnipresente traz de novo à superfície os rasgos e a visão amarga desse álbum – temas como “The sight of the wind”, “Catholic architecture” (onde não faltam os perturbantes suspiros de “Alifie / Alifib”, no álbum de 74) e “N.I.O (new information order)” remetem de imediato para as sombras e para a mejestosidade de “Rock Bottom”. “Worship” opta pela via “jazzy” de “Ruth is stranger than Richard”. Em “CP jeebies” e “Dondestan”, curiosamente, Robert Wyatt recupera o estilo silabado e o timbre da vovalização no seio dos Soft Machine. No primeiro caso próximos da serena desolação de “Moon In June”, no segundo das palpitações pop dos volumes 1 e 2.
“Left on man” e “Lisp servisse” (composto de parceria com Hugh Hopper) partem dos pressupostos deixados em aberto por “Old Rottenhat”, com uma maior amplidão nos arranjos, a voz projectada de forma mais solta e extrovertida. “Shrinkrap” apresenta p “rap” (a quem Wyatt se declara rendido) de acordo com a sua visão pessoalíssima, alternando as sacudidelas da voz e a experimentação de estúdio com o piano e delírios fonéticos semelhantes aos de Ivor Cutler, na sequência final de “Rock Bottom”.
Com a particularidade de os primeiros quatro temas terem sido compostos por Alfreda Benje (que, como de costume, assina também a pintura da capa), “Dondestan” funciona, ao nível de textos, no previsível registo de comentário sociológico a que a sensibilidade do músico empresta conotações intimistas. A ironia prevalece sobre a demagogia. Como nos versos de “New Information order”: “Privatizem o mar. Privatizem o vento. O próprio tempo é para se bender. Devia pagar-se imposto para respirar.”
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Vários (Bob Dylan, Jim Morrison, Doors, John Lennon, Pete Sinfield, King Crimson, Ian Curtis, Joy Division, Prince, Elvis Costello, Robert Wyatt, Edwin Starr, Bruce Springsteen, The The, Matt Johnson) – “Guerra À Guerra” (artigo de opinião)

Pop-Rock 23.01.1991


GUERRA À GUERRA


O rock pode ter-se internacionalizado, mas mantém-se, tal como na sua origem, uma forma de expressão musical e artística de predomínio anglo-saxónico e norte-americano, em particular. Pela sua própria natureza, é agressivo e violento, assumindo inclusive tonalidades marciais e vandalistas. A conjugação destes dois traços torna-o assim favorável à instrumentalização como tónico para as cruzadas bélicas “yankees” e, desse modo, foi usado no passado no Vietname, como mesmo agora para o ataque ao Iraque, para cuja frente de batalha foram enviados milhares de cassetes. Música anglo-saxónica, o rock erigiu-se, todavia, contra o seu sistema, e foi desde sempre na contestação dos seus (e os outros) “senhores da guerra” que tomou posição. Tornou-se, assim, estandarte do pacifismo por negação da negação ou por declarar imperativo fazer guerra à guerra. E, a esse respeito, 20 anos depois de marcar pontos na frente de batalha contra as batalhas, em quase nada mudou.
Mas este novo episódio da dissidência musical que, desde a agudização da crise no Golfo, se começou a escrever traz um desenvolvimento inédito. O “mentor” da primeira represália rock à linguagem das armas foi Lenny Kravitz, o neo-“hippie” por excelência, e os seus parceiros directos são a esposa e um dos filhos do patriarca do pacifismo John Lennon. O projecto que os fez reunir, por sua vez, foi uma nova versão de “Give Peace A Chance”. Ou seja, uma estratégia de intervenção aparentada à usada no Live Aid, em 1985, tomando por pano de fundo uma canção de 69. O mesmo é dizer que, em 1991, a causa pacifista assumida pelo rock não pode mais encarada como um caso de moda, não é pontual ou aleatória, mas inspira-se e alicerça-se na sua própria história, sendo hoje a sua autoridade e credibilidade a de um contrapoder instituído. É impossível nestas páginas reconstituir essa história ou fazer o balanço completo do que nela correu bem ou mal. Mas é aliciante recapitular as fundamentais correntes antibelicistas que têm assomado à ribalta rock, apresentando-as através de algumas das suas letras mais eloquentes. É claro assim que, apesar de haver consenso, não há nesta selecção uniformidade, mas diferentes perspectivas, algumas delas contraditórias entre si.
Luís Maio

SENHORES DA GUERRA
BOB DYLAN

Vós, senhores da guerra
Que construís todas as armas
Que construís aviões da morte
Que construís grandes bombas
Que vos escondeis atrás de muros
Que vos escondeis atrás de secretárias
Quero que saibam
Que vejo através das vossas máscaras
Vós, que jamais fizestes outra coisa
Para além de construir para destruir
Brincais com o meu mundo
Como se fosse o vosso brinquedo privado
Dais-me uma arma para a mão
E escondei-vos do meu olhar
E virais costas e fugis para longe
Quando as rápidas balas traçam o ar

Como o velho Judas
Mentis e enganais
Quereis que acredite Que uma guerra mundial pode ter vencedor
Mas vejo através dos vossos olhos
E vejo através da vossa mente
Como vejo através da água
Que escorre pelo ralo

Preparais os gatilhos
Para que outros disparem
Depois recostai-vos e assistis
Ao crescer do número de mortos
Escondei-vos nas vossas mansões
Enquanto o sangue escorre
Dos corpos dos jovens
E se mistura com a lama

Suscitatstes o pior medo
Alguma vez provocado
Medo de trazer crianças
Ao mundo
Por ameaçardes o meu filho
Ainda sem corpo e sem nome
Não sois dignos do sangue
Que vos corre nas veias

O que é que eu sei
Para falar sem licença
Podeis dizer que sou novo
Podeis dizer que sou ignorante
Mas, duma coisa estou certo
Embora eu seja mais novo que vós
Nem Jesus perdoaria
Aquilo que fazeis

Deixai que vos faça uma pergunta
O vosso dinheiro é assim tão bom
Que vos compre o perdão
Acreditais isso possível
Quando chegar a vossa vez
Creio que descobrireis
Que nem todo o dinheiro que arrecadastes
Vos restituirá a alma

Espero que morrias
E que chegue depressa a vossa morte
Seguirei a vossa urna
Na tarde pálida
E estarei vigilante quando vos baixarem
Para o leito da morte
E ficarei sobre a vossa campa
Até estar seguro da vossa morte

“Masters of War” foi primeiro editada em “The Freewheelin’ Bob Dylan”, segundo álbum do cantor-compositor, datado de 1963. A canção é geralmente apontada pelos exegetas como exemplo, por excelência, do que é uma má canção de intervenção. Argumento: Dylan produz uma dicotomia crua entre os “senhores” de um lado e ele do outro, e as suas palavras são de todo destituídas de conteúdo político objectivo, sendo o seu ataque baseado em nada, para além do puro insulto.

O SOLDADO DESCONHECIDO
JIM MORRISON, DOORS

Espera até que a guerra acabe e sejamos ambos um pouco mais velhos
O soldado desconhecido treina-se onde as notícias são lidas
Na televisão, crianças por nascer, já mortas, vivas, vivas, mortas
As balas atingem a cabeça, por debaixo do capacete
E, para o soldado desconhecido, tudo acabou
Tudo acabou para o soldado desconhecido

COMAPNHIA: ALTO!
APRESENTAR ARMAS.

Preparem uma sepultura para o soldado desconhecido
Aninhado sobre o vosso ombro desguarnecido
O soldado desconhecido treina-se enquanto se lêem as notícias
Na televisão, crianças mortas, as balas atingem a cabeça, sob o capacete
Tudo acabou. A Guerra terminou.

“The Unknown Soldier” aparece pela primeira vez em 1968, no formato de single, antes de fazer parte do terceiro álbum da banda, “waiting For The Sun”. Vítima por excelência, longe de todos os heroísmos, o “Soldado Desconhecido” representa um dos símbolos mais tipificados do discurso pacifista. Na época do Vietname, cristalização e tudo o que a geração do “Flower Power” odiava. A televisão difundia então imagens de crianças mortas. Hoje, no pequeno ecrã, a guerra parece-se mais com um “videogame”.

DÊEM UMA OPORTUNIDADE À PAZ (1)
JOHN LENNON

Toda a gente fala de
Devastismo, desgrenhismo, pressionismo, louquismo,
Desordismo, rotulismo
Ismo para isto, ismo para aquilo, ismo, ismo, ismo
Tudo o que estamos a dizer é
Dêem uma oportunidade à paz.

Toda a gente fala de
Ministros, sinistros, balaustradas
Latas, bispos, peixarias,
Rabinos e olhos pop, adeus, adeus, adeuses
Tudo o que estamos a dizer é
Dêem uma oportunidade à paz

Deixem-me agora falar de
Revolução, evolução, masturbação,
Flagelação, regulação, integrações,
Meditações, Nações Unidas,
Parabéns.
Toda a gente fala de
John e Yoko, Timmy Leary, Rosemary,
Tommy Smothers, Bobby Dylan, Tommy Cooper,
Derek Taylor, Norman Mailer,
Alan Ginsberg, Hare Krishna,
Hare
Krishna.

“Give Peace A Chance” surgiu como single em 1969, assinado sob o rótulo “The Plastic Ono Band” (nome dado por John a várias formações com que gravou, esta incluindo Petula Clark e Allen Ginsberg). O tema foi escrito durante o chamado “período da cama”, forma de protesto do casal Lennon contra o belicismo, que se tornou em hino definitivo dos pacifistas. Já não pertence ao domínio da poética Beatles, mas ao estilo de jornalismo pragmático que o músico viria a colmatar em “Sometime In New York City”. A melodia e o refrão sloganístico justificam a popularização, o simplismo legitima as críticas de vazio fundante.
—-
(1) Texto basicamente intradutível, pelas constantes “invenções” e associações de palavras envolvidas. Na primeira estrofe, Lennon cria palavras acrescentando “ismo” a palavras que se podem traduzir por “devastação”, “desgrenhamento”, “pressão”, “loucura”, “desordem” e “rotulação”. Na segunda estrofe forma as palavras com os sufixos ingleses “ters” (“ministers”, “banisters”) e “Hops” (“bishops”, fishops”) que não permitem efectuar operação semelhante em português sobre os seus correspondentes. Já se pode fazer qualquer coisa, na terceira estrofe, traduzindo o sufixo inglês “tion” por “ção”, menos com “United Nations”.

PAZ – UM COMEÇO, PAZ – UM FIM
PETE SINFIELD, KING CRIMSON

Sou o oceano
Que a chama ilumina
“Paz” – é o meu nome.
Sou o rio
Que o vento aflora
Sou a história
Sem fim

“Paz” – é uma palavra
Do mar e do vento
“Paz” – é uma ave que canta
Enquanto sorris
“Paz” – é o amor
De um inimigo convertido em amigo
“Paz” – é o amor que dás
A uma criança.

Quando me buscas
Procuras por todo o lado
Esquecendo-te de olhar para o teu lado.
Quando te buscas
Procuras por todo o lado
Esquecendo-te de ver dentro de ti.

“Paz” – é um rio
Que brota do coração de um homem
E um homem do tamanho da aurora
“Paz” – é uma aurora
De um dia sem fim
A Paz é o fim, tal como a morte,
Da guerra.

“Peace – A Beginning” e “Peace – na End” constituem respectivamente a abertura e fecho de “In The Wake Of Poseidon”, segundo álbum de originais dos King Crimson, lançado em 1970. A guerra como metáfora do eterno retorno – morte e renascimento, somente transcendido pelo amor -, mensagem poética de Peter Sinfield, que acabaria por soçobrar diante da violência musical, estóica e luciferina de Robert Fripp.

MARCHAVAM EM FILAS
IAN CURTIS, JOY DIVISION

Bebiam e matavam por entretenimento
Fardados em uniformes impecáveis
Exibindo a vergonha dos seus crimes
Marcando passo marchavam em fila
Marchavam em fila

Traziam retratos das esposas
E chapas numeradas para se saberem vivos
Marchavam em fila
Marchavam em fila

Cobertos de glória nunca vista
Triunfaram através de toda a engrenagem
Para nunca mais questionarem
O hipnótico transe nunca visto
Marchavam em fila
Marchavam em fila

“They Walked In Line” do primeiro disco (o de estúdio, o outro é ao vivo) do duplo álbum “Still” dos Joy Division, compilação póstuma editada em 1981, na sequência do suicídio do cantor e autor das letras, Ian Curtis. Aparentemente, é uma condenação da guerra, mas a um nível mais profundo, em particular na articulação da sonoridade possessa da voz com o tom assombrado dos instrumentos, verifica-se que na atrocidade da chacina militar, como de resto em tudo o que é cruel, há um estranho e perverso fascínio para Curtis e companhia. Isso é, aliás, patente no nome da banda, inspirado na designação de um campo de concentração nazi no romance “A Casa Das Bonecas”.

1999
PRINCE

Estava a sonhar, quando escrevi isto.
Desculpem se devaneio,
Mas ao acordar hoje de manhã
Era capaz de jurar que era o dia do juízo final.
O céu estava todo púrpura, havia gente a correr por todo o

[lado]
Tentavam escapar à destruição e, sabes,
Eu nem sequer me preocupei porque, é como eles dizem…
2000 zero zero, a festa acabou, ups, o tempo esgotou-se.
Portanto, esta noite vou festejar como se fosse 1999.
Estava a sonhar, quando escrevi isto.
Por isso desculpem-me se alucino.
Mas a vida não passa de uma festa
E as festas não foram feitas para durar.
A guerra circunda-nos por todos os lados,
O meu espírito diz-me que me prepare para combater.
Então, se vou morrer, vou escutar o meu corpo porque, é como

[eles dizem…
2000 zero zero, a festa acabou, ups, o tempo esgotou-se.
Portanto, esta noite vou festejar como se fosse 1999.
Se tu não vieste para festejar,
Não vale a pena bateres-me à porta,
Tenho um leão no bolso
E, querida, ele está pronto a rugir.
Toda a gente tem uma bomba,
Podemos todos morrer um dia destes.
Mas antes que deixe que isso aconteça
Vou morrer a dançar porque, é como eles dizem,
2000 zero zero, a festa acabou, ups, o tempo esgotou-se.
Mamã— Porque é que toda agente tem uma bomba?

“1999” do duplo LP homónimo, de 1982. Foi o disco que lançou Prince na primeira divisão dos tops mundiais, o que se deve atribuir, em particular, à faixa do mesmo nome. Dois traços originais e complementares: a articulação da síndrome da guerra com a diversão, a orquestração do terror do genocídio com ritmos infectadamente dançantes. Muitas estrelas pop reflectiram sobre a pop, mas poucas, como sua alteza de Minneapolis, propuseram uma solução. Pela provocação: se a guerra pode rebentar a cada instante, o melhor é não esperar e começar já a aproveitar a vida. Dionísios contra Apolo em versão acção directa.
——
Nota: uma vez que a primeira prensagem em CD incluía menos uma faixa que a edição original em vinil (para caber num só compacto), a Warner acaba de lançar uma reedição integral em laser.

CONSTRUÇÃO NAVAL
ELVIS COSTELLO / ROBERT WYATT

Valerá a +ena?
Um casaco de Inverno, novo, e um par de sapatos para a mulher
É uma bicicleta pelo aniversário do rapaz
Não passa de um boato que as crianças e as mulheres espalham pela cidade
Em breve construiremos navios
Vejam bem
O rapaz disse: “Papá, vão dar-me emprego
Mas estarei de volta pelo Natal”.

Não passa de um boato espalhado pela cidade
Alguém disse que houve quem ficasse com cadastro
Só por dizer que as pessoas morrem
Em consequência da construção naval.
Francamente…
Mergulhar por uma questão de sobrevivência
Quando podíamos fazê-lo para apanhar pérolas…

Não passa de um boato espalhado pela cidade
Culpa de um telegrama ou de um postal ilustrado.
Dentro de semanas voltarão a abrir o estaleiro
E a notificar os parentes mais próximos.

“Shipbuilding”, original de Elvis Costello incluído no álbum “Punch The Clock”, de 1983, transformou-se em melancólico grito de protesto na voz de Robert Wyatt, editado em single no mesmo ano e posteriormente na minicolectânea “1982-1984”. Comentário à guerra das Malvinas que a cadência lenta e cinzenta do ex-baterista dos Soft Machine e actual comunista convicto tornou imortal. A Inglaterra crepuscular ou o mundo que envia os seus filhos para o naufrágio, com palmadinhas nas costas e promessas de medalhas. “The United States of Amnesia” e “East Timor” são outras tantas canções de Wyatt. Mas só “Shipbuilding” atingiu os tops…

A GUERRA
EDWIN STARR / BRUCE SPRINGSTEEN

A guerra
Serve para quê?
Absolutamente para nada

A guerra é, para mim, desprezível
Porque implica a destruição de vidas inocentes
A guerra faz brotar lágrimas dos olhos de milhares de mães
Cujos filhos vão combater, sacrificando a vida.

A guerra
Limita-se a destroçar corações
A guerra só interessa aos cangalheiros
A guerra é inimiga da Humanidade inteira.
Só de pensar nela, enlouqueço
É um legado que, de geração em geração,
Induz à destruição.
Quem quererá morrer?

A guerra reduziu a pó os sonhos de muitos jovens
Ao torna-los deficientes, amargos e mesquinhos
A vida é demasiado preciosa para ser desperdiçada em guerras, todos os dias
A guerra não pode dar a vida só tirá-la

Limita-se a destroçar corações
A guerra
Só interessa aos cangalheiros
Paz, amor, compreensão
Tem de haver um lugar, hoje, para estas coisas
Dizem-nos que temos de lutar para preservarmos a nossa liberdade
Mas, Senhor, tem de existir um processo melhor
Melhor que a guerra.

A “War”, segundo o original de 1970 de Edwin Starr, passou, sem que a levassem muito a sério, pelos Frankie Goes To Hollywood, até atingir a notoriedade, em 1985, na voz cristã e muito americana de Bruce Springsteen. Foi a leitura de “Borna t the 4th of July” de Ron Nevic que levou o “boss” à elaboração de “Born in the USA”, enésimo exorcismo dos fantasmas complexos, não resolvidos, do Vietname. Qual o sentido que faz hoje gritar que a guerra é “desprezível” e “não serve absolutamente para nada”? O rock servirá ainda para despertar os adormecidos?

OS DIAS DE ARMAGEDÃO ESTÃO À PORTA (DE NOVO)
THE THE

Estão a oito mil metros de altura voando em linha recta, deixando
[um rastro de vapor contra um céu vermelho de sangue.
Vêm de Oriente para Ocidente com gorros Balaclava (1) nas
[cabeças… Sim!

Mas se pensas que Jesus Cristo está para regressar,
Meu amor, é outra coisa a chegar.
Se alguma vez ele descobrir quem lhe contrabandeou o nome,
Extirpará o coração e revolver-se-á na campa.

O Islão está a crescer.
Os Cristãos mobilizam-se.
O mundo está de rastos,
Esqueceu a mensagem e idolatra os dogmas.

“É a guerra”, gritou ela…
“É a guerra”, gritou ela…
“Isto é a guerra!”
Larga os teus bens, ó povo simples.
Hás-de combatê-los nas praias… em roupa interior.
Hás-de agradecer ao bom deus por erguer a bandeira britânica.
Hás-de ver os barcos sair da barra e os cadáveres voltarem a
[boiar.

Se o verdadeiro Jesus Cristo hoje se erguesse,
Seria alvejado a sangue frio pela CIA,
Oh, as luzes que agora mais brilham por trás de vidros coloridos
Projectarão as mais negras sombras sobre o coração humano.
Mas Deus não edificou para si esse trono.
Deus não vive em Israel ou Roma.
Deus não pertence ao cabaz do dólar ianque.
Deus não lança bombas contra o Hezbollah.
Deus nem sequer vai à igreja.
E Deus não nos manda morrer por Alá.
Não, Deus lembrar-nos-á o que já sabemos – Que a raça humana está prestes a colher o que semeou.

O mundo está de rastos,
Esqueceu a mensagem e idolatra os dogmas.
Os dias de Armagedão estão à porta… de novo

“Armageddon Days Are Here (Again)” de “Mind Bomb”, terceiro álbum de Matt Johnson, sob a designação The The, datado de 1989. Até ao momento, o álbum mais comprometido do autor é, nas suas palavras, “acerca das forças ocultas que estão por trás de todas as coisas”. Parte crucial desse álbum conceptual, a faixa que aqui se refere, constitui uma das melhores reflexões de origem musical sobre as causas do escaldante ambiente no Médio Oriente, colocando judiciosamente o acento nas fricções de ordem religiosa e opondo a verdadeira espiritualidade ao cego fanatismo gregário, tanto a Ocidente como a Oriente.
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(1) Espécie de gorros, em malha metálica, vulgarizados pelos guerreiros da Idade Média.

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS
DE: FERNANDO MAGALHÃES E LUÍS MAIO