Arquivo da Categoria: Ambient

Maria João e Mário Laginha – “Cor ” + Carlos Barreto – “Suite Da Terra” + Frei Fado D’el Rei – “Encanto Da Lua”

Sons

22 de Maio 1998
PORTUGUESES


Saber a lição de cor

ff

Maria João é uma voz que afirma e que procura. Mário Laginha é um dos maiores pianistas portugueses da actualidade. Dos mais lestos de imaginação e dos mais atentos aos fluxos que brotam um pouco por todo o lado da sua música. Nos últimos tempos tem estado sobretudo atento aos sons que nascem da voz de Maria João, que no seu piano tem encontrado trapézio seguro e à sua altura. Maria João e Mário Laginha chegaram a uma encruzilhada que explicitamente se revela em “Cor” e, em parte, fabrica as suas próprias contradições.
“Cor” é um álbum de fusão que só não é idêntico a milhares de outros álbuns de fusão que todos os dias se fazem e desfazem sem glória, um pouco por toda a parte, porque os seus artífices sabem desde há muito os terrenos que pisam. Pessoais e intransmissíveis. A “Cor” foram impostas, à partida, senão condições, pelo menos fronteiras, resultantes de uma encomenda que pedia música oceânica, pronta a navegar nas águas da Expo. Maria João e Mário Laginha ancoraram no Índico, buscando alimento nas suas margens. O canto de Maria João oscila entre a espontaneidade, quando “scata” com o coração em África e no Brasil, e a disciplina das composições que o piano de Laginha lhe impõe. Ou dispõe. No primeiro caso encontramos o mesmo rio de sempre, rico de caudal, mas onde nadam os peixes habituais. Continuam a impressionar os movimentos de barbatanas, a respiração, a variedade de cores e tamanhos, do minúsculo arenque à carpa que não pára de crescer, do tubarão escuro ao arco-íris do peixe-papagaio, da piranha voraz ao doce peixe de aquário. E impressionam porque na sua renovada autodescoberta, Maria João se entrega de alma e coração à alma e ao coração que tem.
Mas há riscos, nesse abandono, de uma voz que a si própria se contempla, mesmo quando a quantidade de espelhos é enorme. É então que Mário Laginha corre a salvá-la. “Cor” avança pistas e oferece descobertas, não quando o discurso de João flui fácil pelas veredas tropicais, mas quando a escrita de Laginha se organiza e organiza a voz em quadraturas que, além de acatarem o correr das emoções, obrigam ao trabalho da razão. Aspectos que em “Cor” se iluminam em temas como “Horn please”, “Nazuk”, “Charles on a sunday with sunday clothes” e “A forbidden love affair”. Baladas, pois. Mas fundas. Cheias, umas vezes de calma, outras de inquietação. Cheias das águas do Ganges, dos lagos da Europa, das seivas do corpo. A abarrotar de sentimento. Disciplinadas pelo rigor. O resto é familiar, étnico q. b. (nota mais alta em “Nhlonge yamina”), com a contribuição preciosa de Trilok Gurtu, nas percussões, e inapelavelmente agradável. Há mar e mar, há ir e voltar. Não foi Vasco da Gama quem o disse, mas Alexandre O’Neill, quando fazia de publicitário. (Verve, distri. Polygram, 7)

Carlos Barreto é um estimável contrabaixista de jazz. Ou foi. Também ele decidiu que a árvore das patacas estava noutro lugar que não o interior de si próprio. Inventou em conjunto com o guitarrista Mário Delgado e o baterista e percussionista José Salgueiro, uma “Suite da Terra”, quer dizer, um caldo em que cabem os tambores de Rui Júnior e o Ó Que Som Tem, a voz de Janita Salomé (em “Mediterraneando”, de longe o melhor tema do álbum) e muitos ritmos portugueses a obrigarem o compasso à simplicidade. Assoma, como é da praxe em ano da Expo, o Oriente, em “Let’s Goa”, sem esquecer uma ponta de ecologia. Mário Delgado faz exercícios ditados por Bill Frisell, curiosamente, fazendo lembrar também o anti-swing introspectivo de Phil Lee (Gilgamesh) ou de Phil Miller (Caravan), dois estetas da guitarra do mundo perdido de Canterbury. Salgueiro, que é pau para toda a obra, dá o seu pequeno “show”. Barreto aguenta o barco. “Suite da Terra” é bom para fazer oó. (Ed. e distri. Farol, 5)

No seu mais recente álbum, “Encanto da Lua”, os Frei Fado d’el Rei buscaram abrigo e alento numa época de inquestionável sedução: A Idade Média. Inspirados pela Lua e inspirando os ares dos Dead Dan Dance, no tema de abertura, “Mediantal”. E, se os Amazing Blondel fizeram há quase 30 anos o mesmo que os Frei Fado d’el Rei fazem em “Ramo verde” (com participação vocal de Vitorino), já em “Bailia de Vigo” as gaitas-de-foles (de Amadeu Magalhães, dos Realejo) e o ritmo popular reinventam em moldes atraentes a tradição celta do Norte da península. Os antigos Madredeus emergem em “Encanto da Lua”, com o acordeão de Helena Soares. Janita Salomé empresa a sua voz e o seu bendir a “Perdido em miragem” no habitual registo árabe, enquanto Uxia canta em “O anel do meu amigo” com um arranjo e uma produção do tipo das que Júlio Pereira não dispensava quando se encarniçava a polir cada nota do seu cavaquinho. E serão propositados os desníveis de volume do tema final, “Onde pára o mar?” O movimento das ondas, talvez? É, em todo o caso, um dos momentos mais originais de um disco… bonitinho. (Columbia, distri. Sony Music, 6)



Fuschimuschi Math-Ice – “Short Stories”

Sons

19 de Setembro 1997

MUNDO CÃO


Fuschimuschi Math-Ice
Short Stories (9)
Maniffature Criminali, distri. Ananana


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O que se pode fazer com um gravador de quatro pistas e sem “overdubs”? No caso do alemão residente em Düsseldorf Fuschimuschi Math-Ice, tudo. Ele fica-se por uma intenção mais modesta: resgatar a música pop. Para mais informações, pede para escreverem à mãe dele. Passemos aos factos. Os factos demonstram, por ínvios caminhos, uma evidência: “Short Stories” é um dos grandes discos do ano. Drum’n’bass, trip hop, scratch, pop, experimentação livre, humor devastador, numa combinação órfã de compromissos, fazem-nos abrir a boca de espanto. Procurem Arthur Russell, Steve Fisk, Negativland, R. Stevie Moore, Holger Hiller. Por mais longe que tenham ido, Fuschimuschi vai ainda mais longe.
“Short Stories” inclui uma sessão de “scratch” com o forro de umas calças. Amantes latinos dissertam sobre queijo mozzarella. A teoria da comunicação minimalista. Filigranas de metal e luzes, fortes e pequenas. Um bongo e mais nada. Bem-vindos à música do espaço arrumada em gavetas. Easy-listening difícil de ouvir. Tive um gato que fazia “au” quando se tocava o “mi” de uma marimba. Trip hop é hop trip. Só trip. Samplar heavy metal faz mal? “De súbito, uma frase italiana veio-me à cabeça: ‘Un panello com scritta fise.’” E “I viel gut”? “Não há mais nenhuma frase, como esta, em toda a história da pop.” “Short Stories” é “música para o futuro e música para o passado”. Criancinhas brincam no pátio. After Dinner. “A música foi o meu primeiro sorriso.” Hermeto Pascoal faz música com galinhas. Fuschimuschi faz música com conceitos, a festa de Babette da hermenêutica do absurdo, enquanto ontologia do cosmo. “A música é o meu único divertimento.” E o nosso. Fuschimuschi Math-Ice, como ele mesmo se define, é um “voyeur”.

L@n – “L@n” + Wabi Sabi – “Wabi Sabi”

Sons

5 de Dezembro 1997
DISCOS – POP ROCK


Electrões em mutação

L@N
L@N (8)

A-Musik, distri. Matéria Prima/Ananana

Wabi Sabi
Wabi Sabi (7)


ws

lan

A Alemanha vem sendo palco de alguns dos mais interessantes projectos de música electrónica dos últimos tempos. Basta recordar a obra recente de grupos como os Oval, Mouse on Mars, Microstoria, Kreidler ou To Rococo Rot, todos eles geralmente conotados com o pós-rock, para se compreender que nunca se desfez a cadeia cujo elo inicial remonta à geração dos anos 70 do “krautrock”. As noções associadas a este tipo de música alargam-se na perspectiva da editora alemã A-musik, para a qual gravam, além dos L@N e dos Wabi Sabi – cujos primeiros trabalhos acabam de chegar ao mercado português –, os F.X. Randomizer, com ligações aos Microstoria.
No caso dos dois primeiros grupos citados, as respectivas propostas diferem nos diferentes enunciados, tanto estéticos como ideológicos, de uma música que, de uma forma geral, se designa por “electrónica”. Os L@N, Rupert Huber e Otto Müller, dividiram as gravações do seu disco de estreia pelo estúdio e por registos de palco. Em termos sonoros, as diferenças são mínimas, já que a música resulta de uma manipulação exaustiva das máquinas e dos seus automatismos, num registo de abstracção que, uma vez mais, remete para as propostas pioneiras dos Cluster. Todos os temas, num total de sete, ostentam a designação L@N, seguida por um número ou uma espécie de patente.
Se os Cluster são o pilar, o carácter impiedoso e sequencial desta música que dispensa qualquer tipo de intervenção das emoções humanas remete, de igual forma, para os To Rococo Rot ou para os espanhóis Esplendor Geometrico. Embora evidenciando sempre marcas que o tornam indissociável dos seus meios de produção, o som consegue ter elasticidade suficiente para manter os acontecimentos musicais em constante mutação, numa escala cuja nitidez contrasta com as metamorfoses subliminares dos Microstoria. Música palpável, apoiada na matemática e na irredutibilidade dos estímulos sensoriais a que recorre, “L@N” contextualiza sem desvios uma certa paranóia urbana e contemporânea, conduzida por uma moral que, nascendo da tecnologia, não deixa de ser idealista. As máquinas também sonham?
Os Wabi Sabi não serão tanto um grupo como um dos múltiplos projectos saídos da mente distorcida de Markus Schmikler, cabeça pensante de bandas como os POL, Kontakta e Microstoria. O mundo em que se movimentam as partículas sonoras de “Wabi Sabi” (dois termos que expressam o poder artístico compreendido “entre o silêncio e o ‘decay’”) é o da música encarada, em primeiro lugar, como um espaço aberto a acontecimentos acústicos ou psicológicos, programados de acordo com uma lógica de contornos pouco perceptíveis.
O primeiro tema, “Wabi sabi”, é uma “composição espacial” para dois canais que evoca a música de computador de François Bayle. Sobre uma trama de “white noise” obsessivo, nascem e morrem detritos radiofónicos, intercalados por estática pura, tornando a audição quase penosa. O segundo tema, “Param”, igualmente desenhado para dois canais, redimensiona a música de uma composição mais extensa, “Drift/Dense”, feita em 1995, sendo os parâmetros sonoros sensivelmente os mesmos de “Wabi sabi”. As “drones” tornam-se, todavia, mais suportáveis, ganhando uma pulsação que chega a dar a ilusão de que nelas habita qualquer coisa vagamente parecida com a vida. Um comboio avança do nada, esmagando o som à sua passagem. Imaginamos formas vagas e obscenas a dançarem no escuro, formando um ente composto por uma acumulação de peças autónomas, animadas de um perturbante movimento. Já perto do fim, a loucura instala-se e uma voz humana dissolve-se no miasma electrónico. A máquina dos L@N parece o paraíso, comparada com o lugar pantanoso, onde o cérebro se afunda, de “Wabi Sabi”.