Mouse On Mars – “Instrumentals” + Microstoria – “Model 3, Step 2”

Y 29|DEZEMBRO|2000
discos|escolhas


MOUSE ON MARS
Instrumentals
Sonig, distri. Ananana
8|10

MICROSTORIA
Model 3, Step 2
Sonig, distri. Ananana
7|10

Criaturas da entropia



Colónia, final dos anos 90. Um dia de trabalho como outro qualquer. Homens e mulheres de expressão vazia no rosto percorrem sem parar corredores sem fim, descem e sobem elevadores, entram e saem de escritórios ao som aconchegante de máquinas úteis ao bom funcionamento do edifício. Poder-se-ia ver neste movimento auto-suficiente de corpos, luzes, paredes, maquinismos, plástico, tubagens e monitores, unidos numa simbiose atómica, a dança que nem sequer os Kraftwerk conseguiram profetizar na sua dimensão mais demoníaca. A música de “Instrumentals”, álbum dos Mouse on Mars (Andi Toma e Jan St. Werner) compreendido cronologicamente entre “Autoditacker” e “Niun Niggung”, até agora apenas disponível em vinilo, e “Model 3, Step 2”, dos Microstoria (Markus Popp, dos Oval e, de novo, Jan St. Werner) são a banda sonora encravada deste filme mudo onde apenas os gestos, repetidos até ao absurdo, sinalizam as margens entre a vida e a morte.
“Instrumentals” difere em absoluto de qualquer outro dos álbuns da discografia recente dos Mouse on Mars. É um mundo de abstrações e aberrações sónicas que emergem para logo se dissolverem numa massa amorfa de programas a funcionar em circuito fechado, até a entropia finalmente os reduzir a uma sucessão infinita de zeros. Entre os miasmas digitais assomam aqui e ali fragmentos de “groove” dispersos (“Owai” mantem-se a funcionar quase sem falhas durante nove minutos), como órgãos separados do corpo que, à semelhança da cauda arrancada do lagarto, se agitam ainda em movimentos reflexos. Um mundo morto, sem dúvida, mas ainda assim repleto de despojos e peças soltas que giram e acendem e apagam num simulacro de festa, como as filas de lâmpadas coloridas que decoram o antro de demência e agonia dos monstros em “The Texas Chainsaw Massacre”.
Mas se “Instrumentals” é uma selva de criaturas incompletas e anti-natura, a eletrónica residual dos Microstoria é um deserto onde já só rastejam vermes digitais alimentando-se de restos de energia. Popp e St. Werner constroem, como sempre, as suas paisagens artificiais a partir de polaridades invertidas ou simplesmente distorcidas. Uma falha do sistema, ilustrada pelo erro de impressão propositado do grafismo da capa. Em “Model 3, Step 2” a corrente elétrica circula mole e devagar, como pasta de dentes, por entre resistências, filtros e interruptores ocultos no teto, no chão e nas paredes de edifícios doentes, misturando-se com a poeira, acumulando-se nas frestas e interstícios, formando nós e abcessos até provocar curto-circuitos. Seria dramático catalogar esta música como música ambiental da cidade ocidental moderna. Mas de que outra maneira se poderá conviver com este sons que, em definitivo, parecem dispensar o convívio com o humano?



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