Joni Mitchell
Taming the Tiger (7)
Reprise, distri. Warner Music
Autobiográfico ao ponto do delírio, “Taming the Tiger” retoma o convívio de Joni Mitchell com a indústria musical que ela diz detestar. Como sempre, o ponto de partida é a vida que surge como ponto de partida para a composição, mas a vida encarada como “história”, ou seja, ficção. Só assim se compreende que a canadiana que recentemente integrou digressões com Bob Dylan e Leonard Cohen junte na sua escrita a figura da mãe asfixiante (“Face lift”) ou os remorsos por ter posto na rua o seu gato “Man from Mars” depois de este começar a “agir como um animal” e a urinar por toda a casa (“Man from Mars”), passando apenas ao de leve, em “Stay in touch”, pelo reatamento de relações com a sua filha Kilauren, após 35 anos de separação.
Mas “Taming the Tiger” é também o espaço de abertura à “inspiração divina” e de experimentação com um novo modelo de guitarra electrónica que lhe permitiu abrir o leque de sonoridades, aproximando-se de um disco como “Wild Things Run Fast”, por sinal dos mais fracos e comerciais da sua discografia, com a diferença de que, neste seu novo trabalho, Joni Mitchell “domesticou o tigre”, ou seja, a indústria, recusando, em definitivo, qualquer tipo de facilidade, para se dedicar em exclusivo ao inventário das suas experiências pessoais.
Repartindo a sua intervenção pela já citada guitarra, pelos teclados e, ocasionalmente, pelas percussões, dispensando em muitos casos o tradicional acompanhamento de baixo e bateria, Joni Mitchell aposta num som em suspensão que depende dos tapetes de sintetizador e do fraseado, mais afirmativo, do saxofone de Wayne Shorter. As dúvidas instalam-se no modo como toda a lógica pessoal de Joni Mitchell dependeu sempre de um conjunto de regras que começam e acabam no carácter único das vocalizações e que, em última análise, se fecharam sobre si próprias. “Taming the Tiger” afirma-se, deste modo, “apenas” como mais um bom disco da compositora, valor seguro mas incapaz de provocar surpresa ou inquietação. Excelente continua a ser a sua evolução como pintora, revelada na série de quadros reproduzidos na capa, na sequência do que já acontecera com o anterior “Turbulent Índigo”.
Porque Lisboa já não está só no mundo, também a sua música, o fado, foi forçada a expandir-se e a ganhar novo fôlego. Ovelha Negra, Mísia, Amélia Muge e Camané vestiram-lhe roupas novas. Mas a velha guarda também não ficou esquecida.
Se é verdade que Mísia e, sobretudo, Paulo Bragança foram os primeiros a romper o xaile e a limpar o pó às guitarras (os Madredeus fizeram de outro modo, criaram uma outra espécie de fado, enquanto, numa escala bem mais reduzida, Maria Ana Bobone, João Paulo e Ricardo Rocha propuseram em “Luz Destino” a fusão do fado com os cravos barrocos…), recebendo em troca uma boa dose de escândalo e de indignação, é um facto quer foi este ano que as portas e os preconceitos se abriram em definitivo à inovação e à ruptura. Talvez por culpa da Expo, talvez por culpa dessa outra abertura, do mercado português ao marcado europeu. A própria Mísia lançou este ano “Garras dos Sentidos”, enquanto Bragança, além da participação em “Red, Hot + Lisboa”, se estreou como actor no filme “Tráfico”, de João Botelho, onde também canta uma versão do hino nacional.
Sucederam-se as experiências, umas mais radicais do que outras. Foram mais longe os Ovelha Negra, de Pedro Paulo Gonçalves, um ex-Heróis do Mar que emigrou para Londres e regressou, instigado pela saudade, para fazer um disco intitulado “Por Este Andar ainda Acabo por Morrer em Lisboa”, onde o fado rejuvenesce através da ironia, de forma brutal.
“Só depois de uma pessoa emigrar é que começa a olhar para Portugal com outros olhos”, confessou Pedro Paulo Gonçalves, que uma vez, levado pela mão de Pedro Ayres Magalhães, “chorou” ao ouvir cantar o fado numa das suas casas da especialidade. Consumado o desvio da Ovelha Negra, o fado ainda entrará nas discotecas, contagiado como está, em “Por este Andar…”, por loops, guitarras eléctricas, jungle e tecno.
Mas outros sinais há que indiciam a metamorfose que a música mais tradicional de Lisboa está a sofrer. Escute-se, por exemplo, uma das canções do mais recente álbum de Amélia Muge, “Taco a Taco”, um fado “sui generis” intitulado “Há quem te chame menina”. A menina que Lisboa há muito deixou de ser.
Também a guitarra portuguesa andou em bolandas no ano que passou. A um dos seus mestres, António Chainho, deram um punhado de mulheres para acompanhar a sua guitarra. O álbum chama-se “A Guitarra e Outras Mulheres” e nele as vozes de Teresa Salgueiro, Filipa Pais, Nina Miranda (dos Smoke City), Elba Ramalho e Marta Dias brilham, embora não consigam esconder a fonte instrumental de onde brota a arte maior deste disco. Aliás, pouco se falou da voz da sexta participante neste projecto, curiosamente aquela que m ais fundo interiorizou a emoção do fado. Referimo-nos a Sofia Varela, que já impressionara com a sua participação num espectáculo de fado e flamenco realizado recentemente no Centro Cultural de Belém (CCB).
Outro mestre incontestado da guitarra portuguesa, Carlos Paredes, viu sair outra compilação sua, intitulada “Guitarra – O Melhor de Carlos Paredes”. Sobre ele foram feitas algumas considerações interessantes pelo amador José Rocha Ferreira, que numa edição de autor, de genérico “Memoriam”, faz uma homenagem a Paredes, interpretando algumas das suas composições e tecendo sobre o sujeito comentários, no mínimo, curiosos: “O estilo e a técnica são únicos e a sua precisão torna quase hercúlea a leitura integral do que ele tocava. (…) a inspiração do mestre pedia mais qualquer coisa que o instrumento não podia dar.”
Ainda no capítulo das edições discográficas, Camané prosseguiu no seu segundo álbum, “Na Linha da Vida”, o difícil trilho que conduz da ortodoxia à descoberta de outros fados. Composições de José Mário Branco e João Ferreira Rosa, textos de Pessoa, Antero e Manuela da Freitas, com uma verdade na mira, de que “o fado é uma coisa espiritual” e “uma maneira diferente de cantar a vida” que “não é uma coisa racional”.
Mas a velha guarda também não tem razões de queixa, com a publicação de diversas colectâneas e “Biografias do Fado” de fundo de catálogo que de novo nos trouxeram vozes como as de Alfredo Marceneiro, Lucília do Carmo, Max, Carlos Ramos, Maria Teresa de Noronha, Hermínia Silva e Fernando Farinha, entre outros. Interessante foi assistir a uma nova vaga de interesse do mercado francês pelo fado (ainda o efeito Expo?…). Assim, foram editados em França “Fado Lisboa-Coimbra, 1926-1931”, pela Frémeux & Associes, reunindo velhos discos de 78 rotações de registos de Artur Paredes, por exemplo, e dois volumes da série Canta Portugal, pela EMI francesa, onde se podem escutar as vozes, entre outras, de Amália, Tony de Matos e Maria da Fé. “Music from the Edge of Europe” propõe uma leitura mais contrastante do fado, colocando lado a lado Carlos Paredes e os Madredeus.
O ano fadista terminou com um duplo espectáculo ao vivo no CCB de Carlos do Carmo, a festejas de forma apoteótica os 35 anos de carreira do autor de “Um Homem na Cidade” e do recente “Margens”. Na ocasião, Carlos do Carmo trouxe consigo, como convidados, além de Camané, uma das decanas do fado de Lisboa, Argentina Santos, de quem começa a ser urgente a edição de um novo álbum. Com fado do que se escreve com maiúscula.
Maria João é uma voz que afirma e que procura. Mário Laginha é um dos maiores pianistas portugueses da actualidade. Dos mais lestos de imaginação e dos mais atentos aos fluxos que brotam um pouco por todo o lado da sua música. Nos últimos tempos tem estado sobretudo atento aos sons que nascem da voz de Maria João, que no seu piano tem encontrado trapézio seguro e à sua altura. Maria João e Mário Laginha chegaram a uma encruzilhada que explicitamente se revela em “Cor” e, em parte, fabrica as suas próprias contradições.
“Cor” é um álbum de fusão que só não é idêntico a milhares de outros álbuns de fusão que todos os dias se fazem e desfazem sem glória, um pouco por toda a parte, porque os seus artífices sabem desde há muito os terrenos que pisam. Pessoais e intransmissíveis. A “Cor” foram impostas, à partida, senão condições, pelo menos fronteiras, resultantes de uma encomenda que pedia música oceânica, pronta a navegar nas águas da Expo. Maria João e Mário Laginha ancoraram no Índico, buscando alimento nas suas margens. O canto de Maria João oscila entre a espontaneidade, quando “scata” com o coração em África e no Brasil, e a disciplina das composições que o piano de Laginha lhe impõe. Ou dispõe. No primeiro caso encontramos o mesmo rio de sempre, rico de caudal, mas onde nadam os peixes habituais. Continuam a impressionar os movimentos de barbatanas, a respiração, a variedade de cores e tamanhos, do minúsculo arenque à carpa que não pára de crescer, do tubarão escuro ao arco-íris do peixe-papagaio, da piranha voraz ao doce peixe de aquário. E impressionam porque na sua renovada autodescoberta, Maria João se entrega de alma e coração à alma e ao coração que tem.
Mas há riscos, nesse abandono, de uma voz que a si própria se contempla, mesmo quando a quantidade de espelhos é enorme. É então que Mário Laginha corre a salvá-la. “Cor” avança pistas e oferece descobertas, não quando o discurso de João flui fácil pelas veredas tropicais, mas quando a escrita de Laginha se organiza e organiza a voz em quadraturas que, além de acatarem o correr das emoções, obrigam ao trabalho da razão. Aspectos que em “Cor” se iluminam em temas como “Horn please”, “Nazuk”, “Charles on a sunday with sunday clothes” e “A forbidden love affair”. Baladas, pois. Mas fundas. Cheias, umas vezes de calma, outras de inquietação. Cheias das águas do Ganges, dos lagos da Europa, das seivas do corpo. A abarrotar de sentimento. Disciplinadas pelo rigor. O resto é familiar, étnico q. b. (nota mais alta em “Nhlonge yamina”), com a contribuição preciosa de Trilok Gurtu, nas percussões, e inapelavelmente agradável. Há mar e mar, há ir e voltar. Não foi Vasco da Gama quem o disse, mas Alexandre O’Neill, quando fazia de publicitário. (Verve, distri. Polygram, 7)
Carlos Barreto é um estimável contrabaixista de jazz. Ou foi. Também ele decidiu que a árvore das patacas estava noutro lugar que não o interior de si próprio. Inventou em conjunto com o guitarrista Mário Delgado e o baterista e percussionista José Salgueiro, uma “Suite da Terra”, quer dizer, um caldo em que cabem os tambores de Rui Júnior e o Ó Que Som Tem, a voz de Janita Salomé (em “Mediterraneando”, de longe o melhor tema do álbum) e muitos ritmos portugueses a obrigarem o compasso à simplicidade. Assoma, como é da praxe em ano da Expo, o Oriente, em “Let’s Goa”, sem esquecer uma ponta de ecologia. Mário Delgado faz exercícios ditados por Bill Frisell, curiosamente, fazendo lembrar também o anti-swing introspectivo de Phil Lee (Gilgamesh) ou de Phil Miller (Caravan), dois estetas da guitarra do mundo perdido de Canterbury. Salgueiro, que é pau para toda a obra, dá o seu pequeno “show”. Barreto aguenta o barco. “Suite da Terra” é bom para fazer oó. (Ed. e distri. Farol, 5)
No seu mais recente álbum, “Encanto da Lua”, os Frei Fado d’el Rei buscaram abrigo e alento numa época de inquestionável sedução: A Idade Média. Inspirados pela Lua e inspirando os ares dos Dead Dan Dance, no tema de abertura, “Mediantal”. E, se os Amazing Blondel fizeram há quase 30 anos o mesmo que os Frei Fado d’el Rei fazem em “Ramo verde” (com participação vocal de Vitorino), já em “Bailia de Vigo” as gaitas-de-foles (de Amadeu Magalhães, dos Realejo) e o ritmo popular reinventam em moldes atraentes a tradição celta do Norte da península. Os antigos Madredeus emergem em “Encanto da Lua”, com o acordeão de Helena Soares. Janita Salomé empresa a sua voz e o seu bendir a “Perdido em miragem” no habitual registo árabe, enquanto Uxia canta em “O anel do meu amigo” com um arranjo e uma produção do tipo das que Júlio Pereira não dispensava quando se encarniçava a polir cada nota do seu cavaquinho. E serão propositados os desníveis de volume do tema final, “Onde pára o mar?” O movimento das ondas, talvez? É, em todo o caso, um dos momentos mais originais de um disco… bonitinho. (Columbia, distri. Sony Music, 6)