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Miguel Azguime + Irene Schweizer + Carlos Zíngaro + Paul Lovens + Jean Marc Montéra – “Música Improvisada Em Lisboa Um Passo Em Frente, E Outro, E Outro…”

cultura >> segunda-feira >> 20.06.1994


Música Improvisada Em Lisboa
Um Passo Em Frente, E Outro, E Outro…


“A VERDADE do efémero”. Assim define Miguel Azguime – organizador e participante no ciclo “Improvisação na música do séc. XX”, integrado no programa de Lisboa-94, que hoje e amanhã vai ter lugar no Teatro S. Luiz, em Lisboa – o essencial da música improvisada.
Seis concertos, divididos pelos dois dias, mostrarão o que Azguime enuncia como “uma praxis metodológica que consagra rigor e liberdade, num sempre reinventado ‘work in progress’, verdadeiro acto de criação no presente, que pode estar ligado a qualquer estética, estilo ou cultura”. Participam neste ciclo, hoje, Miguel Azguime, que apresenta a peça para percussão solo “Ícones”, a pianista suíça e nome importante do “free jazz” europeu, Irene Schweizer, em piano solo, e oo trio formado pelo violinista português Carlos Zíngaro com Jean Marc Montéra na guitarra e Paul Lovens na percussão.
Amanhã será a vez de improvisarem o trio de Denis Colin, com Denis Colin no clarinete baixo, Didier Petit no violoncelo e Pablo Cueco no “zarb”, seguido de Giancarlo Schiaffini, na composição para trombone solo e electrónica, Édula”, e os portugueses Idéfix Generator – Sérgio Pelágio, guitarra eléctrica, Paulo Curado, saxofones, Thomas Kahrel, guitarra eléctrica e percussão, Ricardo Cruz, baixo eléctrico e Bruno Pedroso, bateria – a finalizarem o ciclo.
Azguime, percussionista dos Miso Ensemble de rara intuição, atento às texturas, cores e vibrações da natureza; Irene Schweizer, figura de proa do “Feminist Improvising Group”, ex-companheira de aventuras com Peter Brotzmann, Evan Parker, Derek Bailey, Willem Breuker, Hank Bennink e Alexander Von Slippenbach, em excentricidades levadas ao gozo absoluto de tocar na colaboração actual com o acordeonista Rüdiger Carl; Carlos Zíngaro, um dos maiores violinistas da vanguarda europeia actual, músico do mundo, português por acaso que não por acaso tocou lado a lado com Andrea Centazzo, Barre Phillips, Christian Marclay, Derek Bailey, Evan Parker, Joelle Leandre, Jon Rose, Ned Rothenberg, Shelley Hirsh, toda uma galáxia de foragidos da normalidade apostados em reformular o universo e a filosofia dos sons; Jean Marc Montera, o mesmo que dirigiu a ópera “free rock”, “Helter Skelter”, com Fred Frith; Paul Lovens, inventor de sons e objectos percussivos, criador de ritmos sem fronteiras no seio da fabulosa Globe Unity Orchestra.
A lista prossegue: Denis Colin, tão à vontade a tocar com “monstros” como Steve Lacy, Archie Shepp e Cecil Taylor como a fazer música para teatro, televisão, desenhos animados e poesia; Didier Petit, companheiro de Colin nos Celestria Communication Orchestra e participante, entre outros projectos, no inclassificável Un Drame Musical Instantané (por onde aliás já também já passou Carlos Zíngaro). E Pablo Cueco que apesar do apelido já mostrou o que vale com Luc Ferrari e dispersa os seus talentos pelo jazz, a música contemporânea, a salsa, a música antiga e a música tradicional, Giancarlo Schiaffini apresenta em Lisboa uma obra “comestível”. Viajou e viaja da música renascentista até ao convívio com os mestres da cinética, Cage Merce Cunningham e Nono.

Losadas e Chano Dominguez – “O Instinto Do ‘Matador'”

pop rock >> quarta-feira >> 15.06.1994


O Instinto Do “Matador”



Losadas e Chano Dominguez são por enquanto artistas de flamenco pouco conhecidos em Portugal. Situação que poderá ser alterada muito em breve, uma vez que se trata de duas propostas bastante originais nesta área, como de resto se poderá verificar no próximo concerto de ambos no nosso país ou nos álbuns “Chano”, de Chano Dominguez, e “Pa Llorar de Momento”, dos Losadas, ambos da editora Nuba, com próxima distribuição nacional pela Dargil.
Chano Dominguez, pianista natural de Cádis, integra o grupo de intérpretes de flamenco praticantes da fusão deste género musical com o jazz, na tradição de grandes nomes como Paco de Lucia, Carlos Benavent, Jorge Pardo, Pedro Iturralde e Toti Soler, entre outros.
Vencedor de vários prémios de interpretação em Espanha e no estrangeiro, Chano tocou com Philippe Catherine e fez parte do grupo CAI, uma mistura de rock com flamenco. Entre os subscritores da aliança jazz/flamenco estão Chick Corea, Miles Davis, com “Flamenco Sketches” e John Coltrane, com “Oie”. Qualquer deles soube retirar do flamenco elementos enriquecedores para a sua música.
É assim que as estruturas rítmicas e harmónicas do flamenco (“palos”) e em particular das “bulerias”, tangos, “alegrias” e “soleás”, se casam com o discurso improvisacional do jazz. Em “Chano” um “standard” como “Naima”, de Coltrane, transforma-se num tango, citações de Monk diluem-se nos meandros de uma “buleria”. McCoy Tyner e Bill Evans, outras duas referências no estilo do pianista, entontecem-se com as tablas e palmas que marcam os andamentos íntimos da Andaluzia. A ideia da capa do álbum de Chano Domínguez, que em breve estrá disponível em Portugal, é esclarecedora: Um touro mira de longe, preparando-se para investir sobre a silhueta de Manhattan.
Mais tradicionalistas nos sons e na atitude, os Losadas, apelido dos três irmãos guitarristas Vaky, Diego e Tito, membros de uma família cigana de Madrid, têm já uma larga reputação. Fizeram apresentações para a família real inglesa e participaram em espectáculos de flamenco como “La Misa Flamenca”, com a companhia de Paco Pena, apresentado no Carnegie Hall de Nova Iorque e em Londres, no Robert Albert Hall, “Cumbre Flamenca”, “Flamenco Fusion” e o Festival internacional de guitarra de Córdova. Tito, um dos elementos do clã Losadas, colaborou igualmente em espectáculos de flamenco, como a versão da ópera “Carmen” apresentada no Estádio Yoiogi, em Tóquio. No Japão, a obra desta família cigana é particularmente apreciada, ao ponto de ter levado à colaboração dos Losadas com Terumasa Hino, no espectáculo “On the road with Terumasa Hino”, apresentado em várias cidades nipónicas.
“Pa Llorar de Momento” é, sem sombra de dúvida, um disco recomendável a todos os apreciadores de um género que entre nós vem ganhando cada vez mais adeptos. Os “palos” preferidos dos Losadas são as “balerías”, o “taranto”, a rumba, a “granaina”, a “soleá” e o tango. Há quem encontre na sua música o cruzamento da tradição de Camarón de la Isla com a modernidade dos Ketama. Vale a pena escutá-los e apanhar esse momento único que é o “instinto gitano”.
17 de Junho, Teatro de S. Luiz, Lisboa, às 21h30

El Cabrero e Paco El Gastor – “O Cantador De Flamenco El Cabrero, Abre Capital Ibero-Americana Da Cultura – As Sílabas Do Fogo”

cultura >> sábado >> 01.05.1994


O Cantador De Flamenco El Cabrero, Abre Capital Ibero-Americana Da Cultura
As Sílabas Do Fogo



SUBLIME. Não há outra palavra para definir a arte de José Dominguez, El Cabrero, e do seu companheiro, na guitarra e na vida, Paco El Gastor. Sexta-feira À noite, no Teatro S. Luiz, em Lisboa, no espectáculo de abertura do ciclo “Lisboa, Capital Ibero-Americana da Cultura”, que prosseguirá até 12 de Maio, o público lisboeta assistiu à verdade do flamenco. Não o “flamenco” dos cifrões e das modas, dos Ketama, Jaleo, Pata Negra e quejandos, com que “nuestros hermanos” partiram à conquista dos mercados discográficos, mas a pureza religiosa do verdadeiro “canto hondo”, fogueira do Sul cujas chamas consomem a alma guerreira do povo cigano. Quem faltou à chamada tem oportunidade de remediar o facto uma vez que El Cabrero regressa a Portugal já no próximo dia 21, em concerto integrado na programação do festival “Cantigas do Maio”, cuja quinta edição decorrerá, como o ano passado, no Seixal.
El Cabrero canta e guarda cabras. O seu templo é a serra. As fontes e os rios. A liberdade das grandes altitudes. Em palco, vestido de negro, chapéu curvado sobre os olhos, lenço ao pescoço, a voz irrompe-lhe directamente do fundo. Nas malaguenhas, soléas, fandangos, bulerias e outras modalidades do flamenco que oferta ao público como uma dádiva de Deus. Enquanto canta, possuído pelo “duende”, as mãos de El Cabrero unem-se em oração, apontam, aprumam, esmagam, desenham os contornos dos corpos interiores e ilustram a voz do fogo. A arte do flamenco é a arte de dominar o fogo, de silabar, pôr ordem no movimento impreciso da labareda – no grito, na corrente, na síncope, no intervalo de silêncio. Por isso a água, a água da serra e da lua, está sempre presente nas metáforas – “as metáforas resiste ao calor”, disse um dia El Cabrero -, refrigério de uma música que consome e seca. Água que se confunde nas volutas e condutas do Inconsciente dos povos árabes do Mediterrâneo. No oásis de um lago. Nas sombras do mítico pátio andaluz. Que é o coração senão um pátio onde a luz brilha de dia e se acendem fogueiras nas noites de lua-nova?

Arte E Vida

Para este flamenquista e guardador de cabras de Aznacollar, localidade situada perto de Sevilha, arte e vida confundem-se. “A linha da arte é de tal maneira estreita que é preciso muito equilíbrio para nos aguentarmos sobre ela sem cair”. O mesmo se aplica à vida. Talvez por isso, talvez por dizer coisas como “as palavras da universidade parecem-me mesquinhas (…) os velhos do lugar são os meus livros”, há quem lhe chame iconoclasta e anarquista. No S. Luiz tornou-se evidente que El Cabrero não respeita outras regras senão as que lhe são impostas pelo corpo e ordenadas pelo espírito.
Paco El Gastor é outro assombro. Quais Vicente Amigo e, perdoe-se-me a heresia, Paco de Lucia. El Gastor alia uma técnica espantosa a uma intuição e sentimento não menos notáveis. O seu estilo difere da ortodoxia de outros guitarristas, no modo como o polegar direito e assume como chefe de orquestra de uma mão de mil dedos. Mago imbuído na sagrada missão para todo o alquimista de manter o fogo na altura certa. A sua música tem sal, sol e músculo. Sobre e com ela a voz ganha inteira liberdade para se expor, morrer e renascer À luz branca e excessiva do mar do centro. Onde a razão naufraga ou – havendo método e vontade – se coroa, e os sentidos mordem.
Rendeu-se, igualmente inflamada, a assistência. Gritos de incitamento aos músicos, lançados por portugueses e pelos muitos espanhóis presentes na sala: “Olé”, “Viva el cante hondo, vante grande de Espana”. “Bendita seja tu madre!” “Viva al-andalus!” Viva para sempre o caminho real do flamenco, onde El Cabrero prossegue a sua rota, “desde a raiz até à mais alta das folhas”.