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Scott Walker And The Walker Brothers – “No Regrets, The Best Of”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 20.05.1992


A GRANDE ARTE DAS SOMBRAS

SCOTT WALKER AND THE WALKER BROTHERS
No Regrets, The Best Of
LP / CD, Fontana, distri. Polygram



Mais um génio para a galeria dos imortais da música pop. Secção: incompreendidos na época, recuperados para a posteridade décadas mais tarde, salvadores da pop desenterrados do museu, enfim, um dos melhores. Scott Walker é hoje objecto de todas as homenagens (mais discretas, claro, que as de Freddy Mercury, até porque ainda é vivo e grava discos) e do aplauso unânime da parte da crítica.
“No Regrets” recupera o reportório do artista, a solo ou com o grupo onde ganhou notoriedade, sem especificar anos nem discos, um pouco a querer dizer que todas as canções são imortais.
O talento de Scott Walker tocou e influenciou cantores importantes como Julian Cope, Nick Cave, Marc Almond, Scott McKenzie e, menos directamente, Jim Foetus e Peter Hammill. Logo por aqui se vê a sua importância. Vocalmente falando, o estilo de Walker é inconfundível: uma mistura de Elvis, Sinatra e Jacques Brel em registo barítono. As canções falam de amor, de amores que por vezes acabam mal, transformados em odisseias orquestrais tecidas com a minúcia e o luxo de um Phil Spector. Os Walker Brothers – Scott e John Maus, aos quais se juntou mais tarde Gary Leeds – formaram-se em 1964, tendo começado por actuar na zona da Califórnia. Não haja, porém, equívocos. O próprio Scott logo se encarregou de os desfazer ao declarar-se anti “flower power”: “Quero que as pessoas enfrentem as realidades da vida, não que fujam delas.” Apesar disso, a palavra “amor” aparece logo no primeiro “hit”: “Love her”, produzido por Jack Nietzsche e integrado na presente colectânea – uma tentativa de recriar o som dos Righteous Brothers, numa dimensão épica e com maior profundidade e complexidade ao nível dos arranjos. Os irmãos Walker separaram-se em 1967, devido a “tensões” no seio do grupo – já então era assim. Foram três anos que chegaram para criar a lenda. No mesmo ano, Scott Walker grava o primeiro disco a solo, intitulado simplesmente “Scott”, sobre o qual teceu o seguinte comentário: “É uma obsessão minha. Pus tudo aquilo em que acredito neste disco.” É o álbum da solidão amorosa e do encontro com Brel, dos arranjos para cordas lacrimosas e dos golpes de orquestra sentimental. “Montage terrace (in blue)” é um bom exemplo, incluído em “No Regrets”. No ano seguinte, surge “Scott 2”, representado na colectânea por “Jackie”, um tema de Brel que levou palavras proibidas como “Whorehouses” e “Opium” ao Top 25. Do mesmo ano, o single “Joanna”, cartão de visita a atirar para o foleiro que atingiu o Top Tem. “Scott 3”, de 1969, explode em orquestrações luxuriantes, aqui exemplificadas por “It’s raining today” e “If you go away”, faltando o antepassado das canções gay que é “Big Louise”.
“Lights of Cincinatti”, outro êxito de Scott, foi retirado das séries para televisão que gravou em 1969. “Scott 4”, do mesmo ano, mostra a crescente inclinação do autor para os estados depressivos que o levam a ter uma visão do mundo bastante escura para a época, em canções inspiradas no “Sétimo Selo” de Ingmar Bergman e corroboradas por declarações do estilo: “Está tudo perdido, fomos condenados mesmo antes de começarmos.” Deste disco, a colectânea apenas inclui o tema “Boy Child”. O resto de “No Regrets” apenas recolhe temas da banda, deixando de lado a discografia posterior a solo de Walker, gravada no período compreendido entre 1970 a 1973, para alguns o menos inventivo do autor, representado pelos álbuns “Til the Band Comes In”, “The Moviegoer”, “Any Day Now”, “Stretch” e “We had it All”. Mais grave é o esquecimento em relação a “Climate of Hunger”, de 1984, que apresenta uma versão de “Tiny Children”, de Julian Cope (Cope, por seu lado, compilou um álbum de canções do mestre: “Fire Escape in the Sky”) e assinala o retorno em forma de Scott Walker. O álbum foi um fracasso em termos de vendas (cerca de 1500 exemplares), mas nem por isso deixa de ser um notável testemunho artístico da “grande arte das sombras” que o cantor tão bem soube reinventar. A presente colectânea, pelo contrário, já atingiu os tops, esperando-se para breve a reedição da estreia a solo – “Scott” -, bem como de toda a obra dos Walker Brothers gravada para a Philips, enquanto se espera pelo novo disco de originais com que o génio se prepara para, de novo, assombrar o mundo. Diz-se, entretanto, que Scott Walker trabalhou com David Sylvian, Brian Eno e Daniel Lanois. Para trás terá ficado o “clima de desejo”, substituído pela serenidade. (8)

Scott Walker – “Tilt”

Pop Rock

24 de Maio de 1995
álbuns poprock

Um gafanhoto no cérebro

SCOTT WALKER
Tilt (Classificação: Qualquer uma de 0 a 10)

Fontana, distri. Polygram


sw

Há aqui algo de errado. Algo de muito estranho e perturbador. Um desequilíbrio doentio, simultaneamente assustador e atraente. “Tilt” é um termo que se aplica à paralisia instantânea, à cessação de todas as funções de uma máquina de “flippers” quando o seu utilizador lhe aplica uma pancada, um choque superior ao que a sua programação aceita. A máquina de “flippers” – “flipper”, traduzido à letra significa “barbatana”, órgão de locomoção num meio aquático, como por exemplo, o pensamento… – é, neste caso, o cérebro de Scott Walker. Antes de entrarmos nos seus meandros, façamos, porém, em nome da prudência e de alguma cautela, um pouco de história. Scott Walker, então com o nome de Scott Engel, fez parte, ainda na primeira metade dos anos 60, dos Walker Brothers, um trio da Costa Oeste norte-americana cujos singles, como “My ship is coming in” ou “The sun ain’t gonna shine anymore”, alcançaram bastante sucesso do outro lado do Atlântico. Baladas, quase sempre narrando desgraças amorosas, que eram interpretadas em tons épicos e melodramáticos, num estilo de produção próximo do de Phil Spector. As vocalizações torturadas do então jovem Scott inspirariam, mais tarde, gente de exageros como Marc Almond, Julian Cope e David Bowie. Em 1967, Scott abandonou o grupo e partiu para uma carreira a solo.
Era a continuação de um trajecto que, a partir desse momento, se desviaria para alamedas bastante mais sombrias. Canções de Jacques Brel, um “hit”, com “Joanna” (incluído, juntamente com outros êxitos, seus e do grupo, na colectânea “No Regrets”, título de um tema de Tom Rush) e álbuns com títulos premonitórios como “Night Flights” e “Climate of Hunger” – este já uma obra ao negro que, na época (1984), com o selo Virgin, alertou para um dos universos mais originais da música popular – prenunciavam o estado geral de loucura que, onze anos mais tarde, se viria a concentrar neste seu novo trabalho. Antes de mergulharmos no poço de “Tilt”, digamos ainda que Scott Walker pode ser encarado como a sombra, o negativo, o lado trágico de Brian Wilson, outro dos mestres californianos, mentor dos Beach Boys, que apanhou demasiado sol na cabeça e, por isso, sucumbiu, também ele, à paranóia.
“Tilt” é um objecto único, desconfortável, impermeável tanto à análise distanciada como à adesão efectiva. Não dá prazer ouvir mas obriga a escutá-lo do princípio ao fim, com o coração no estômago e um arrepio na espinha. A ideia que dá é que, durante todos estes anos, Scott Walker não ouviu qualquer espécie de música e se fechou num quarto às escuras, a sós com as suas elocubrações. Não se pode falar de uma tradição, de uma continuidade, de nada que inspire segurança. O choque deriva em grande parte do contraste entre a voz e a música. Scott Walker, aos 52 anos, canta como sempre cantou, num estilo semideclamado e monótono, com súbitas inflexões que vão do tom de tragédia fotonovelesca à puerilidade de um adolescente. Ao ouvi-la, pensa-se em seres imaginários como um Frank Sinatra sob os efeitos de heroína, Elvis Presley regressado do além-túmulo, David Sylvian com 90 anos ou Bryan Ferry a falar durante o sono. “Crooner” dos abismos sentimentais, Scott Walker reina num país sem entrada nem saída para o comum dos mortais. A música é outro choque. Soa, como dizer, a nada que se conheça. Numa entrevista dada na edição deste mês à revista “Mojo”, Scott afirma que quis fazer um “nowhere record”. Conseguiu. Electrónica, industrial, minimalista, tribal, orquestral, hipnótica, repetitiva, tem tudo, incluindo um órgão de igreja (um dos seus instrumentos favoritos), o que caracteriza certas vanguardas das trevas. Podemos buscar auxílio na recordação da “Sinfonia industrial”, de Ângelo Badalamenti, do “filme negro” de Barry Adamson, em “Moss Side Story”, de David Bowie, no segundo lado de “Low”, ou no “The End”, dos Doors (Scott gravou uma sessão de temas de “American Prayer”, de Jim Morrison), na versão de Nico. Podemos pensar em ritos ocultos de Las Vegas ou num Festival da Eurovisão no mundo dos mortos. Talvez uma Hollywood espectral. Para baralhar ainda mais, lá estão dois convidados da “folk”, Andrew Ceonshaw, em sopros vários e concertina, e Nigel Eaton, um ex-Blowzabella, cuja sanfona é aproveitada em “Bouncer, see bouncer”, para imitar o ruído de gafanhotos (!)… Refira-se ainda que Scott Walker gravou há tempos uma sessão com Brian Eno e Daniel Lanois, nunca editada até hoje, porque, segundo diz, as letras são o mais importante. Os textos, de canções que se estendem com languidez ao longo de seis, sete ou oito minutos cada, são ainda mais elípticos. “Farmer in the city” repete obsessivamente o número 21, a idade de quem, de quê, em Vigo, no Rio, em Ostia, em “escuras casas de quintas recortadas contra o céu”. “The cockfighter” é digna de um filme de David Lynch. Os primeiros versos, “It’s a beautiful night from here to those trembling stars”, ainda sugerem uma normalidade que logo se perde em coisas do estilo “That ribbon [fita] cracks like this one and this one cracks like those over there and those over there crack like these two” ou, ainda mais “fora”, “And out of the rim [aro, orla, margem], all the calcium planets growing in the darkness all over the body, the flapping [no sentido de asas ou velas que batem e se agitam] body, clickety click, clickety click”. Em “Bouncer see bouncer”, fala da “auréola de um gafanhoto”… É sempre assim, num disco cuja capa dá a ver uma mão negra a esmagar olhos não humanos. Uma viagem nocturna pelos corredores do pretensiosismo ou da loucura, nunca saberemos ao certo, naquele que é, provavelmente, o disco mais estranho da década.