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Dead Can Dance – “Aion”

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 25 JULHO 1990 >> Videodiscos >> Pop


NOITE ANTIQUÍSSIMA

DEAD CAN DANCE
Aion
LP e CD, 4AD



Música antiga. Sons eternos. Longe, muito longe das convulsões epiléticas do rock, da pop e do restante entulho dos tops. Emoção concebida de silêncios e pequenas eternidades partilhadas. Música do Silêncio. O álbum anterior, “The Serpent’s Egg”, deixava adivinhar a fuga em direção ao tempo das catedrais, mas ainda não o definitivo adeus às notas do presente. Os Dead Can Dance habitam uma realidade anterior, refratando cores astrais, reinventando instantes e mitos ancestrais. Brendan Perry e Lisa Gerrard dão corpo a uma arte sem corpo material. As formas do seu sonho recuam à Idade Média, a trovadores, a castelos de reis suspirando porque as princesas suas filhas são presas do dragão. “Aion” foi gravado na Irlanda, terra das verdes lendas e da magia. Afasta-se deliberadamente do ritmo frenético dos dias atuais e citadinos. Renega sem apelo a cultura pop que se podia esperar estivesse na sua origem. Alicerça-se num passado revisto à luz da sensibilidade de dois jovens do século 20, para quem fazer música é a constante reatualização de uma dádiva de amor.
A voz de Lisa Gerrard não encontra paralelo no resto do mundo das músicas para consumo das massas. Nem a sua maneira de cantar. A não ser que franqueemos as portas do outro mundo, da música antiga dos mestres Clemencic, Paniagua, Kecskes e das cantigas de amor e amigo de Figueras ou Esther Lamandier. “The Arrival and the Reunion”, “The End of Words”, “Wilderness” são magníficos exemplos da arte de vencer, pelo canto, a gravidade. Seria cântico gregoriano se não fosse interdito ao sexo que, como Duras literalmente define, “ocupa totalmente o espaço”, ao contrário do “forte” que “por ele passa e o atravessa” – o trespassa. Lisa Gerrard ocupa todo o espaço, abraçando com a alma inteira a essência dos primórdios do cantar. “The Song of the Sybil” (referenciada na capa como tradicional catalã do século 16, mas cuja origem remonta à Roma antiga, sucessivamente recuperada pelos monges ao longo de toda a Idade Média e interpretada em disco por Monserrat Figueras, acompanhada pelos Hesperyon XX) demonstra até que ponto a voz feminina pode abarcar as vastidões. Longa e solene reverberação vibrando na noite antiquíssima. E “Radharc”, mais mediterrânica e solar, de sugestões árabes, tão próximas também do berço medievo.
Ao homem só foi concedido o privilégio de dizer as palavras de Luis de Góngora em “Fortune Presents Gifts not According to the Book” e ofuscar a luz divina em “Black Sun”, dos poucos temas em que a eletrónica nos recorda que vivemos no século da técnica e das grandes realizações inúteis. Porque no resto repicam os sinos de igreja e gemem as gaitas-de-foles em “As the Bell Rings the Maypole Spins” ou rangem profundamente as sanfonas em “Radharc”. “The Garden of Zephirus” é um interlúdio ambiental cantado pelos pássaros, pelo vento e pelos pequenos seres da Natureza. Sem palavras. Como “Saltarello”, dança italiana de autor anónimo do século 14, de fazer saltar bruxas, fadas, virgens pálidas e douradas e o ouvinte frente às colunas, se despreconceituado e capaz de compreender que o tempo, como Parménides dizia, é uma mera ilusão. A capa é belíssima – um pormenor do fresco de Hyeronimus Bosch, “The Garden of Delights” e “Aion”, a mais bela e inebriante flor desse jardim.

Dead Can Dance – “Wake”

(público >> y >> pop/rock >> crítica de discos)
13 Junho 2003


DEAD CAN DANCE
Wake
4AD, distri. MVM
7|10



Aos Dead Can Dance se deve o enobrecimento do “gótico”, que em grupos como os The Cult ou Bauhaus era sinónimo de vampiros amantes de “rock”, cruzes e olheiras. Os Dead Can Dance cobriram-no com o manto dourado da realeza, em “Dead Can Dance” (84), “Spleen and Ideal” (85) e “Within the Realm of a Dying Sun” (87), contraponto pop de uma estética marcada por tons mais carregados em nomes como Brian Lustmord ou The Zone. ”Aion”, de 90, é o corolário do aprofundamento do “gótico”, através da apropriação da música antiga de teor erudito. Na fase mais recente os Dead Can Dance incorporaram elementos da “world music”, como em “Spiritchaser”, ganhando em universalidade o que perderam no apelo inicial de banda de culto para rituais pagãos. A antologia “Wake”, reduzindo a dois CDs a caixa de 4, “Limited Box Set”, editada em 2001, acompanha esta evolução, na altura em que também o vídeo “Toward the Within” (antes apenas disponível na mesma caixa) é editado em separado, em formato PAL. O DVD reúne, além das imagens dos concertos de 93 no Mayfair Theatre, Santa Monica, cinco temas-extra não incluídos no vídeo original.



Dead Can Dance – “Spiritchaser”

Pop Rock

12 de Junho de 1996
poprock

Rituais na câmara secreta

DEAD CAN DANCE
Spiritchaser (8)
4AD, MVM


dcd

O primeiro tema chama-se “Nierika” e o título é igual ao de um álbum do mexicano Jorge Reyes, mas as coincidências entre a banda de Brendan Perry e Lisa Gerrard e o autor de “Mexican Music Pre-Hispanic” não se ficam por aqui. “Spiritchaser” é de todos os álbuns gravados até à data pelos Dead Can Dance aquele que leva mais fundo e mais longe a vertente ritualista, num registo idêntico ao praticado por Reyes. Nesse tema, como nos dez minutos de “Song of the stars”, Perry, gerrard e uma equipa seleccionada de convidados, utilizam instrumentos rituais, percussões de pedra e chuva, ruídos de animais, cânticos étnicos. Mas o lado atmosférico, mais que os habituais sombreados góticos, aligeira o que poderia confundir-se com uma das alquimias invertidas (das quais bandas como Death in June, Current 93 ou Sol Invictus foram pioneiras) que caracterizam uma das vertentes da música do final deste século. Na contracapa, ao lado de uma invocação vodu, pode ler-se: “Nas culturas onde a música ainda é usada como força mágica, a construção de um instrumento envolve sempre o sacrifício de um ser vivo. A alma desse ser vivo fica a fazer parte do instrumento, permitindo deste modo que os sons dos ‘mortos que cantam’, sempre presentes ao nosso lado, se façam ouvir [de “Harmonies of heaven and earth” de Joscelyn Godwin].” Os Dead Can Dance não vão tão longe, mas o poder manipulatório da sugestão faz efeito. “Indus” mistura Diamanda Galas sob a acção de narcóticos com música antiga e indiana, e “Song of the dispossessed” poderia ser o encontro de Sting com os Tuxedomoon. “Song of the Nile” é um transe, sonho, em câmara lenta, viagem astral pelo interior de uma pirâmide em estado de vida suspensa que se prolonga até à Idade Média virtual da derradeira cerimónia, “Devorzhum”, “drone” de mil reflexos e murmúrios à luz da lua. O melhor Dead Can Dance desde “Aion”.