Urban Sax – Os Saxofones do Apocalipse (concerto)

Pop Rock

27 MAIO 1992

OS SAXOFONES DO APOCALIPSE

As Festas da Cidade começam ao ritmo do Fim, do Apocalipse. Com o espectáculo multimédia, no Rossio, dos Urban Sax, agrupamento de saxofones sinfónico-minimal que redimensiona o espaço (arquitectónico e mental) de actuação em teatro cosmológico das cidades em agonia.

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1 de Junho / 22h00 / Rossio

Urban Sax é a projecção cénico-musical de um pesadelo. Em “technicolor”, uma superprodução nascida do cruzamento de Cecil B. de Mille com David Lynch. Os Urban Sax são cerca de meia centena de saxofonistas mascarados, umas vezes mais, outras menos, criadores da sinfonia de Babel. A cidade, com as suas paranóias, os seus gritos, os seus jogos de gente, mais do que palco, é elemento participativo da música e da encenação dos Urban Sax. Eles são a cidade. O maestro presidente da Câmara é Gilbert Artman. Os outros músicos podem ser quem imaginarmos. Figuras abstractas, monstros de forma humana, mutantes envergando escafandros pós-nucleares, ligados entre si por conexões electrónicas que permitem a sincronização e a disseminação dos seus estertores pelo espaço circundante.
No Rossio não se sabe bem como vai ser. Mas pode-se fazer conjecturas a partir da anterior e memorável actuação do grupo, na Central Tejo, em 1987. Haverá músicos espalhados pelos telhados da Praça. Outros surgirão do subsolo. Dois ou três poderão estar mesmo atrás das nossas costas e roçar o nosso medo sem pedir licença para o sobressalto. Fogo de artifício, bombas e sirenes contribuirão para fazer subir o nível de adrenalina e de excitação.
A música é mais previsível: um contínuo abrasivo de saxofones, ora próximo do trovão ora do sussurro de angústia. Um sopro único multiplicado e distribuído por dezenas de vias. Noção de continuidade, de obra intemporal, de uma matriz e de uma torrente sonora sem início nem fim, que a obra em disco testemunha. Uma só peça, obrigada a dividir-se – pela insuficiência temporal da “duração” – por quatro álbuns, qualquer deles imprescindível: “Urban Sax”, “Urban Sax 2”, “Fraction sur le temps” (título elucidativo do que atrás foi dito) e “Spiral”, este último distribuído em Portugal pela Dargil.
Decerto que a actuação dos Urban Sax no Rossio não será menos espectacular do que muitas outras realizadas noutros locais por esse mundo fora: Veneza, em gôndolas e suspensos sobre os canais. Na Expo 86, em Paris, na Bastilha, em Barcelona, em todo o lado, sempre com a força de um circo sobre-humano, sempre perante o espanto e o assombro de dezenas de milhares de pessoas, atraídas pelo insólito da apresentação, pela hipnose do som ou simplesmente pelo abismo.
Gilbert Artman, antigo membro da banda francesa de “free rock”, Lard Free, explica que a intenção e as motivações dos Urban Sax são “a criação de música mecânica, música do mundo moderno”. Saxofone Urbano? “O saxofone reflecte a vida urbana melhor do que qualquer outro instrumento, mas só a multiplicidade combinada com a mobilidade pode captar o quadro inteiro.” Planificação e estudo prévio dos locais onde actuam fazem parte da estratégia dos Urban Sax. Tudo assenta no espaço, num ambiente particular, em que a música se insere de forma harmoniosa, se o termo “harmonia” é lícito neste caso. Os Urban Sax são a voz desse espaço, a tradução amplificada dos resíduos sonoros acumulados pela História e pela poluição no cimento e no metal, parafraseando a ideia de um conto do escritor de ficção científica, J. G. Ballard. Artman organiza esse caos de som residual em sinfonia, ordena mil pequenas ansiedades num grito imenso e maior, potencia o medo em pânico, a fogueira em holocausto, o espectáculo projecta-se, planetário, por dentro do cosmo do inconsciente. Comparados com a orquestração totalitária a quatro dimensões dos Urban Sax, o assalto aos sentidos dos La Fura dels Baus reduz-se ao espalhafato de saltimbancos. Os saxofones e as máscaras dos franceses (devem ser franceses…) atingem-nos mais fundo e de forma mais subtil, subliminar. Nietzsche seria sensível a esta forma de poder.



Peter Hammill – O Jogador de Xadrez (concerto em Portugal)

Pop Rock

27 MAIO 1992

O JOGADOR DE XADREZ

Para muitos considerado quase um deus, Peter Hammill tem sido o companheiro de muitas vidas, de odisseias interiores, uma espécie de tradutor do que nos vai cá dentro de mais profundo e secreto.

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Desde sempre as palavras constituíram o centro, o ponto de partida e de chegada do universo deste autor e compositor. Há mesmo quem queira ver nele um dos maiores poetas ingleses vivos. Dispensem-se os sons, que mesmo assim as palavras de Hammill vibram e explodem-nos na cara, nas colectâneas de poemas “Killers, Angels, Refugees” e “Mirrors, Dreams & Miracles”.
Mas falar de Peter Hammill é falar dos Van Der Graaf Generator, expoente mámixo, na década de 70, do rock progressivo, designação neste caso insuficiente para definir um som original que foi capaz de erguer a música popular à altura dos grandes épicos. Três álbuns (descontando a estreia incipiente “The Aerosol Grey Machine”) definiram numa primeira fase da banda todo um mundo exploratório de sons – entre o free-jazz, a electrónica e o rock – e dos fantasmas que sempre assombraram o se líder, pianista, guitarrista e vocalista, Peter Hammill: “The Least We Can Do Is Wave to each Other”, “H to He, who Am the only One” e “Pawn Hearts”, este último talvez uma das maiores obras de sempre da música popular, levando às últimas consequências o jogo de xadrez travado entre um coração aprisionado e o absoluto, entre as trevas e a luz.
Neles, a poesia de Hammill é o fio condutor que permite avançar por entre um quadro de horror e paranóia onde anjos e demónios de digladiam e tecem o destino do indivíduo à deriva nas suas próprias emoções. O amor eclode como um intruso neste universo que se diria encenado por H. P. Lovecraft, mas sempre parasitado por uma lucidez exacerbada que impede o mínimo gesto de espontaneidade.
A segunda fase dos Van Der Graaf é mais violenta, a energia mais directa, as palavras, tão complexas como sempre, demandam a impossível totalidade: “Godbluff”, “Still Life” e “World Record”, trilogia do psiquismo humano em combustão, colorida a fogo pelos saxofones em fúria de David Jackson, o órgão litúrgico de Hugh Banton e as deflagrações de dinamite de Guy Evans , na bateria. “The Quiet Zone/The Pleasure Dome” é igual à vertigem da capa, onde uma mulher suspensa num baloiço sobre a Terra é empurrada pelos ventos do cosmos.
A solo, Hammill construiu uma obra longa e diversificada, em registos sempre servidos por vocalizações únicas, entre o grito e o gemido ou massacradas pelo ácido da electrónica do inferno, como na câmara de tortura de “Magog (In Bromine Chambers)”, em “In Camera”, monumento mais alto e acabado da sua obra, ponto limite e coincidente do humano com o transcendente, o grito de desespero final, a súplica e o orgulho do último herdeiro dos grandes românticos do século XX.
Em Peter Hammill cruzam-se múltiplas experiências e caminhos de procura dessa modalidade difícil que é o ser humano, registados numa discografia que deixou marcas e cicatrizes: “Fool’s mate” e a procura da juventude perdida, “Chameleon in the Shadow of the Night” e “The Silent Corner and the Empty Stage”, sangue e alucinações, o artista devorado pela sua visão, jogos de poder, “Nadir’s Big Chance”, avô de todos os “punks”, “Over” e o amor, o amor inteiro desbaratado em desencontros, “The Future now”, “Ph7” e “A Black Box”, a obra modernista a preto e branco, a janela aberta desta feita para o mundo de fora, viagens aéreas, metáforas sobre o homem algébrico, prisioneiro dourado do admirável mundo novo.
Depois, infelizmente, tem sido a queda progressiva, esse “longo adeus” já antes anunciado pelos seus companheiros de aventura – de “Sitting Targets” ao recente “Fireships”, passando pela manipulação de computadores de “Spur of the Moment” (com Guy Evans) e a ópera “The Fall of the House of Usher”, inspirada no conto homónimo de Edgar Allan Poe, em gestação durante mais de 20 anos e que, finalmente, se revelou aquém das expectativas. Seja como for, valerá decerto a pena assistir ao vivo, nos dias 17 e 18 de Junho no São Luiz, em Lisboa, a este teatro da crueldade centrado numa só figura e nas suas infinitas máscaras.

Dias 17 e 18 Junho, às 22h00, São Luiz



Telectu – “Evil Metal”

POP ROCK

27 DEZEMBRO 1992
DISCOS PORTUGUESES DE 1992
ALTERNATIVA

TELECTU
Evil Metal

Edição Área Total

Os Telectu progridem por avanços e recuos. Mudam de géneros e conceitos como quem muda de camisa – inconstância que tem, porventura, obstado à exploração de uma linha musical definida. Seja como for, “Evil Metal” é um tiro em cheio no panorama das músicas alternativas feitas em Portugal, podendo ombrear com obras da escola nova-iorquina representada por David Linton, David Fulton, J. A. Deane e Elliott Sharp, entre outros nomes. Jorge Lima Barreto tira o melhor partido dos timbres e estruturas repetitivas electrónicos, Vítor Rua navega entre as ondas frippianas e as fragmentações de Robert Musso. Elliott Sharp aparece num par de temas, mas a sua presença era escusada.
“Evil Metal” divaga e transtorna. Brinca, destrói e refaz géneros como o rock sinfónico, o art rock, o jazz mutante e a “systems music”, com uma mão cheia de acentos numa espécie de etno-traficada. A propósito, haja a esperança de que, desta vez, nenhum “p” atrevido transforme “raga” em “praga”. Mesmo que o tema em questão de indiano pouco tenha. Monstro devorador de músicas e ideias feitas, “Evil Metal” passa a liderar o pequeno pelotão dos discos nacionais que se posicionam orgulhosamente à margem. Das negociatas e do vil metal.